Livros

Entre a arte e o ativismo

Zezé Motta e Martinho da Vila têm trajetória detalhada em obras que reforçam o compromisso deles com a negritude

Por Carlos Andrei Siquara
Publicado em 12 de janeiro de 2019 | 03:00
 
 
“Zezé Motta: Um Canto de Luta e Resistência”, de Cacau Hygino, é publicado pela Companhia Editora Nacional. A biografia possui 256 páginas e está à venda nas livrarias por R$ 39,90 Daniel Fontana/divulgação

Até 1969, Zezé Motta, 74, costumava usar uma peruca chanel nas peças de teatro. Mas, ao chegar aos Estados Unidos, no momento em que a comunidade negra difundia o movimento cultural Black Is Beautiful, tornando o cabelo black power símbolo de autonomia e liberdade, a artista foi confrontada por um grupo de militantes. Na biografia, “Zezé Motta: Um Canto de Luta e Resistência” (Companhia Editora Nacional), o também ator e escritor Cacau Hygino relata que os negros do Harlen ficaram chocados com o visual da atriz e cantora, e o diretor Augusto Boal, com quem a atriz viajava em turnê, saiu em defesa dela.

Daquele momento em diante, Zezé mudou o modo como percebia a si mesma e, de volta ao Brasil, resolveu fazer parte do Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU). Publicado recentemente, o livro narra, assim, não só a trajetória artística, mas o modo como ela construiu um percurso de compromisso com a valorização da negritude. Proposta semelhante é apresentada pela escritora e pesquisadora Helena Theodoro no título “Martinho da Vila: Reflexos no Espelho” (Pallas), em que a autora não só reivindica a importância do cantor, escritor e poeta para a luta em prol da igualdade racial, mas também o lugar dele entre os intelectuais que contribuíram para o pensamento social brasileiro.

Para escrever a biografia de Zezé, Hygino reuniu depoimentos de vários nomes próximos dela, entre eles o diretor Cacá Diegues, com quem a artista trabalhou no filme “Xica da Silva” (1976) – um dos ápices de sua carreira. Ele também conversou com outros artistas, como Lázaro Ramos, Alessandra Maestrini, Lúcia Veríssimo, Silva Pfeifer e Taís Araújo. Ramos relatou que foi Zezé a responsável por facilitar os caminhos para ele dar seus primeiros passos no cinema e na teledramaturgia.

“Quando ele chegou ao Rio, Zezé logo estendeu a mão para ele. Ela havia criado um site (Centro Brasileiro de Informação e Documentação do Artista Negro) e o colocou na rota dos testes. Ele é muito grato a ela, porque Zezé abriu caminhos para os artistas negros no Brasil, e nós sabemos que ainda é difícil para esses profissionais se inserirem no mercado”, diz Hygino.

Da mesma forma, Helena ressalta a atuação de Martinho da Vila, 80, na valorização do trabalho de outros artista negros e da criação de laços entre comunidades, desde as Folias de Reis de Duas Barras (RJ), onde ele nasceu, até as cenas de sambistas no Rio de Janeiro, onde ele passou a viver ainda na infância. “Ele divulgou todas a formas de manifestação das tradições de matriz africana. Além de compor música para a folia de reis, ele gravou composições de Donga, João da Baiana, entre outros grandes baluartes da música popular brasileira. Ele fez um disco só de sambas-enredo, e hoje, graças ao Martinho, nós temos um registro de músicas que não existem mais”, diz a biógrafa.

Helena conta que “Martinho da Vila: Reflexos no Espelho” foi um desdobramento de uma longa pesquisa, que iniciou durante desenvolvimento de sua tese de doutorado em filosofia, na década de 80. Em seu trabalho acadêmico, ela já tomou o artista como referência para discutir “o ideal de pessoa humana na cultura negra e suas implicações com a moral social brasileira”. Para ela, o resultado, é uma biografia diferente das tradicionais, uma vez que traz uma contextualização grande da história e das tradições em torno da comunidade negra no Brasil. “Não é só uma biografia de Martinho. Acho que o livro não deixa de apresentar a história do negro no Brasil. Falar dele é, inevitavelmente, tratar de aspectos que atravessam toda essa comunidade, como os preconceitos e as dificuldades”, diz Helena.

Além disso, ela sublinha que o título pretende estimular o reconhecimento do papel de Martinho como intelectual, junto com os louros de ele ser um dos maiores músicos e compositores do país. “Ele é um pensador, um acadêmico, tanto que o departamento de letras da UFRJ entrou com uma proposta de pedido de título de ‘doutor honoris causa’ para ele, e Martinho, assim, vai abrir o semestre letivo com uma palestra no salão nobre da universidade”, completa Helena.