ENTREVISTA

Esmiuçando o nazismo

Eduardo Szklarz autor do livro “Nazismo: Como Ele Pôde Acontecer?, fala do processo de pesquisa, suas descobertas e opiniões sobre o tema

Por Vinícius Lacerda
Publicado em 15 de fevereiro de 2015 | 04:00
 
 

 
O título de seu livro, “Nazismo: Como Ele Pôde Acontecer”, apresenta uma pergunta. Você consegue entregar uma resposta? O livro tenta chegar perto da resposta. Durante décadas, o mundo olhou para o nazismo como se ele não passasse de um surto de loucura. Um desvario coletivo. Afinal, uma ditadura que transformou prisioneiros em cobaias humanas, que esterilizou à força cegos, surdos e alcoólatras para “purificar a sociedade”, e que usou inseticida para eliminar judeus em massa não podia ser mesmo normal. Mas hoje os historiadores sabem que o nazismo não foi uma insanidade sem sentido ou explicação. Na verdade, foi a consequência de ideias que já estavam em voga na Europa muito antes de Hitler chegar ao poder. Ele apenas juntou-as para produzir um coquetel explosivo.
 
Que ideias?
Por exemplo, a eugenia – uma pseudociência que emergiu na Inglaterra do século 19 propondo usar a genética para criar indivíduos mais capazes. No início do século 20, cientistas de universidades como Harvard e Stanford já propunham barrar a reprodução dos “degenerados” em nome da raça superior. Os nazistas levaram essa ideia ao extremo. Como dizia Hudolf Hess, o vice de Hitler, “o nacional-socialismo não é nada mais do que biologia aplicada”. Outra ideia, o antissemitismo, é ainda mais antiga. Vem do início da era cristã, quando pregadores como João Crisóstomo culparam os judeus pela morte de Jesus – acusação que a Igreja só retirou formalmente em 1965, no Concílio Vaticano II. Assim como a eugenia, o antissemitismo sofreu uma mutação: nasceu religioso e se tornou racial. Teólogos do século 19, como o alemão Paul de Lagarde, já chamavam judeus de “bacilos” e “vermes”. Hitler nem precisou inventar essas comparações.
 
Em termos jornalísticos, foi um desafio?
Sim, com certeza. Tive cerca de 1 ano para escrever o livro, incluindo a pesquisa e a edição dos capítulos. Em certo sentido, porém, o livro começou bem antes. Leio sobre nazismo desde muito jovem e no ano 2000 comecei a entrevistar imigrantes que chegaram ao Brasil fugindo da guerra. Minha ideia era um dia publicar um livro que contasse a história dessas pessoas que deixaram tudo para trás – inclusive suas famílias – para sobreviver. Fui por exemplo à casa de Lisa Maier e Moses Bardfeld, ambos já falecidos. Eles eram judeus alemães e refizeram suas vidas em BH. Também entrevistei reconhecidos historiadores do nazismo, como Robert Gellately, Martin A. Ruehl e Edwin Black. Algumas dessas entrevistas eu já havia feito para reportagens publicadas nas revistas “Superinteressante”e “Aventuras na História”.
 
As marcas do nazismo estão presentes e devem prosseguir por um tempo na produção cultural, de artes plásticas passando por literatura e afins. Quando pensou no livro, não temia que o tema, mesmo complexo, já tenha sido abordado em todas suas vertentes?  
Tive plena consciência disso. A bibliografia sobre o nazismo é tão massiva que parece impossível produzir algo original sobre o tema. Por isso, meu maior desafio foi selecionar os livros que precisava ler – cerca de 100 – e, ao mesmo tempo, escrever sabendo que seria impossível dar conta de todo o assunto. Muita coisa ficaria de fora, claro. Mas a proposta do livro não é inventar a pólvora, e sim falar sobre o nazismo de forma acessível. Sem tecnicismos. De um jeito que o estudante de 14 anos entenderá. E acho que a originalidade do livro é justamente essa: explicar um tema complexo com simplicidade.
 
O que te motivou pesquisar a fundo as questões que motivaram o nazismo?
Uma das perguntas que me intrigam é como uma sociedade decide abraçar um projeto autoritário. Costumamos achar que o nazismo se limitou a meia dúzia de líderes dantescos, mas hoje é consenso entre os historiadores que a ampla maioria da população alemã apoiou o nazismo. A Gestapo (polícia secreta do Reich) era pequena demais para controlar a ação de todos. Por isso ela contou com a ajuda de cidadãos comuns: o sujeito que delatava a vizinha por não fazer a saudação Heil Hitler!, o dentista que denunciava o paciente por ser gay, e por aí vai. Alguns desses delatores foram motivados por ideologia, mas outros agiram por motivos triviais, como briga com vizinhos e disputas com ex-marido. E boa parte da população não fez nada diante dos abusos por mera indiferença. Ou mesmo por pressão dos pares: você sabe que terá mais chances na carreira se aderir ao jogo autoritário, então acaba aderindo. Isso ajuda a explicar por que 45% dos médicos alemães pertenciam ao Partido Nazista.
 
Qual adjetivo melhor definiria Hitler para você?
Egocêntrico. Junto com outras características típicas de um psicopata: impulsivo, mentiroso, manipulador, encrenqueiro, teatral. Hitler era o ator, o roteirista e o diretor de sua própria saga megalomaníaca. Ele se achava muito melhor do que os outros. Desde pequeno dizia que seria um grande artista, mas zombava dos professores, foi expulso de escolas e fracassou duas vezes ao tentar entrar na Academia de Belas Artes de Viena. Aos 20 anos, ele passava a maior parte do tempo sem fazer nada num alojamento austríaco. Enquanto seus companheiros de alojamento trabalhavam, Adolf fantasiava com o próprio triunfo sem fazer por onde. É incrível pensar que esse jovem maltrapilho se tornou o líder mais adorado da Alemanha e arrastou o mundo para uma guerra que matou 50 milhões.
 
Qual das influências que o nazismo teve que você acredita que a maior parte da população desconhece e que você deixa claro na obra?
O 3o Reich condicionou a atuação de praticamente todas as categorias profissionais. Sociólogos, artistas, professores, atletas, sindicalistas... todos se moldaram à doutrina do regime. Isso ficou conhecido como Gleichschaltung (“Coordenação”). Mas ao contrário do que muita gente pensa, essa “coordenação” não se deu apenas na base da força. Também houve um amplo consentimento popular durante o nazismo. Isso porque o terror foi seletivo, sobretudo no início: começou vitimando comunistas e social-democratas, depois atingiu judeus, gays, testemunhas de Jeová, deficientes físicos e mentais, bandidos e outros grupos impopulares. O alemão médio foi preservado. Os nazistas não precisaram demitir jornalistas arianos. Apenas os cooptaram. O mesmo aconteceu com a burocracia estatal. Ao formar a Gestapo, o regime aproveitou 90% dos soldados das antigas polícias políticas da Alemanha. Em vez de eliminá-los, deram a eles um poder descomunal – desde que se mantivessem fieis. É o que Gellately chama de “tentação totalitária.”
 
No início do livro, você explica que o povo judeu já era perseguido muito antes do nazismo. Mas o que aconteceu durante a segunda guerra, com certeza , potencializou isso. Você conseguiria exprimir o peso do nazismo para o povo judeu?
Dois de cada três judeus europeus foram mortos pelo nazismo. Povoados judaicos inteiros sumiram do mapa em países como Ucrânia e Lituânia. A experiência do trauma passa através das gerações. Inclusive fica impressa no DNA, como sugere um estudo da cientista israelense Zahava Solomon. Ela acompanhou veteranos da Guerra do Líbano (1982) que tiveram transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), uma condição que inclui ansiedade e pesadelos relacionados à lembrança do trauma. Solomon analisou 96 soldados cujos pais eram sobreviventes do Holocausto e os comparou com os outros. Conclusão: os filhos de sobreviventes desenvolveram mais TEPT após a guerra que os demais soldados. Por outro lado, a história judaica ensina que o humor é a melhor forma de sanar as feridas. E o povo judeu demonstra todo dia – seja através da música, da culinária, de festas como Purim ou de rituais como o casamento – que continua alegre e celebrando a vida.
 
 O livro aponta para uma possível ideologia na América do Sul vinda de criminosos alemães que fugiram após a guerra. Conte um pouco sobre essa questão levantada no livro?
De fato, Brasil, Argentina, Paraguai e outros países da América do Sul se transformaram em refúgios seguros para criminosos de guerra nazistas. Mas há também mitos nessa história. Um deles diz que Josef Mengele, o médico carrasco de Auschwitz, viveu absolutamente escondido por essas bandas, fugindo de serviços secretos e de autoridades alemãs. Pouca gente sabe que Mengele assumiu a verdadeira identidade na Argentina. O historiador argentino Carlos De Napoli me levou ao Arquivo Geral da Nação, em Buenos Aires, onde há documentos preservados numa pasta identificada com as letras “Dr. M”. Eles revelam que o “Anjo da Morte” de Auschwitz viveu praticamente às claras no país do tango. Inclusive se casou no Uruguai publicando anúncio no jornal, como era praxe na época. E embaixada alemã em Buenos Aires sabia o tempo todo que ele estava lá.
 
Até que ponto o neonazismo é uma preocupação para sociedade atual?
O neonazismo é o nazismo com outra cara. Um nazismo de botox. Ilias Kasidiaris, porta-voz do partido grego Aurora Dourada, já elogiou Hitler no Parlamento e tem uma suástica tatuada no braço. Mas jura que não é nazista. Do mesmo jeito, organizações neonazistas e neofascistas florescem desde a Hungria até a Mongólia com discurso maquiado. O alvo não é só um grupo específico, como negros ou gays, mas também qualquer imigrante. E a dinâmica está mais confusa também. Muitos imigrantes árabes são alvos da xenofobia na França, mas saem em marchas em apoio a radicais islâmicos que pregam a destruição de judeus. “Hamas, Hamas, judeus para as câmaras de gás!” – gritam eles. É uma salada mista.
 
Você acha que mesmo depois do que aconteceu na Alemanha no século passado outra nação poderia aderir a ideias similares?
O nazismo chegou ao poder pelas urnas. Quando o marechal Hindenburg indicou Hitler para o cargo de chanceler, estava seguindo o caminho constitucional. Mas logo depois os nazistas implodiram tudo. Usaram a democracia para depois destruí-la. Nomes de empresas comuns para nós, como Siemens e IBM, também foram fundamentais para a máquina de destruição nazista. E as ideias que serviram de base para o nazismo – eugenia, nacionalismo e antissemitismo – continuam vivas entre nós. Portanto, acho que nenhum país está livre de cair na armadilha que a Alemanha caiu lá trás.