Entrevista

Na captura da complexidade 

Redação O Tempo

Por Daniel Oliveira
Publicado em 24 de julho de 2016 | 03:00
 
 
Rogério Reis / Tyba / divulgação

De “Justiça” a “Futuro Junho”, atualmente em cartaz na capital, o cinema da diretora brasiliense antecipou a maioria das questões que vieram à tona na crise política vivida pelo país. Atualmente filmando um documentário sobre o processo do impeachment, Maria Augusta achou tempo para falar com o Magazine sobre ritos, o fazer documental e seu encontro com a presidente afastada

Você conversou com a Dilma na quinta?

Sim.

Como foi?

Estou fazendo um documentário sobre o impeachment. Comecei a filmar duas semanas antes da votação no Congresso, e agora, no Senado. E houve um tribunal internacional de juristas no Rio de Janeiro nesta semana. Eles foram a Brasília entregar uma sentença à presidenta, e eu filmei isso. Achei que ela estava bem, falou muito bem. Me pareceu forte, não a senti abatida, pelo contrário, bastante confortável. A gente não conversou muito, mas minha impressão é de que ela continua acreditando que esse processo pode ser revertido.

E você já tem claro que filme é esse, ou está descobrindo ao fazer?

Todo filme é um processo de descoberta. O produto final é um resultado desse processo. Nos meus filmes anteriores, eu tive um tempo de pré-produção, pesquisa, encontrar personagens. Nesse agora, não tive porque foi uma decisão de última hora. Resolvi vir para Brasília e fui descobrindo os personagens à medida que filmava. Tenho tentado retratar os dois lados do processo porque acho importante. Não é um filme partidário, mas é a minha visão do que está acontecendo. É subjetiva, mas não está ligada a nenhum partido. O filme tem que ser mais que a minha opinião, deve ser um retrato desse momento extremamente complexo. Só minha opinião seria um filme unidimensional, e a proposta do meu cinema sempre foi retratar a realidade de vários pontos de vista.

Por que você decidiu fazer o filme?

Primeiro, porque sou documentarista. E segundo, porque é um momento urgente e traumático que o país está passando. Em geral, eu faço filmes sobre assuntos que me despertam uma série de sentimentos. No caso do “Justiça”, foi uma preocupação intensa com a questão do judiciário. Esse filme agora me pega por esse viés de tentar entender o que está se passando no país.

E seu cinema tem uma fascinação com ritos.

Sim. E a comissão é um tribunal. Estão ali julgando a presidenta A questão jurídica e da instituição me atraiu bastante. Acho instigante investigar as relações humanas e políticas dentro das instituições, como elas nos definem e nos afetam.

O “Futuro Junho” toma seu título das jornadas que foram, de certa forma, a origem desse processo político no país. Como você enxerga o filme diante do que está acontecendo?

Quando fiz o filme, estava no meio do furacão. Agora estamos no meio de outro furacão, do impeachment. É só depois das filmagens, na edição, que as coisas vão se clareando. Certamente, ver o longa hoje ganha uma dimensão que, naquele momento, eu não tinha como perceber. Ele é capaz de nos levar a um entendimento, uma clareza sobre aquele momento e, por tabela, esse que a gente está vivendo agora. Eu revi o filme aí em Minas, na semana passada. E para mim, como diretora, descobri paralelos e elementos que ainda não tinha percebido. É muito bacana porque esse é o fazer cinematográfico, o fazer documental. Captar aquilo que, talvez no momento, você não se dê conta. Ter essa complexidade no material, na maneira de filmar e estruturar o filme.

O que você estava tentando entender ao fazer o “Junho”?

O filme se originou depois da crise do mercado financeiro em 2008. Comecei a ler bastante sobre ela, sobre o crescimento econômico brasileiro e nossas contradições como nação. Na origem, havia essa tentativa de entender como o mercado estava influenciando e afetando o trabalhador e as relações de trabalho. Como elas estavam num processo de transformação, e como o Brasil ia lidar com esses desafios da terceirização e de várias questões no filme. Era uma tentativa de entender esse momento econômico brasileiro e, de certa maneira, o neoliberalismo, principalmente numa cidade como São Paulo, centro financeiro e industrial do país. Todos os personagens estão ligados a um movimento: carro, moto, metrô, que é o movimento do mercado financeiro.

Essa influência ficou bem clara nesta semana com o projeto de reforma trabalhista enviado pelo Temer ao Congresso.

Acho que a gente sabia, sempre soube, e o filme traz isso de maneira muito clara: como o mercado financeiro é um poder muito essencial. Não só no Brasil, no mundo todo. Os interesses do mercado acabam se sobrepondo aos interesses do trabalhador e da população. É um fato.

Você se formou em música. Como foi parar no documentário?

Estudei música a vida inteira, fiz mestrado em Londres. Mas sempre tive uma paixão por cinema. E quando fui morar na Holanda, vi essa chance de ingressar na Escola Nacional de Cinema. Fui aceita, fiz quatro anos, foi uma mudança de carreira. Meu cinema traz muito da minha formação como musicista. A atenção forte à questão formal certamente vem da música. Acredito que o cinema documental não é simplesmente conteúdo. Acima de tudo, estamos falando de linguagem. Documentário é linguagem, e o material bruto dele é a realidade. Só que cinema é uma representação, não é a realidade em si. É uma representação subjetiva, existe uma escolha formal na edição, na maneira como eu filmo, e essas escolhas definem o conteúdo, como ele é percebido pelo público, e isso é fundamental no meu trabalho. Não sei o que vai acontecer, mas sei como vou filmar. Se a polícia vai bater em alguém, isso é inesperado, mas a gente tem que estar pronto para o inesperado. Para conseguir captar 50% daquilo que estamos filmando, o que já é difícil. Os outros 50% vão fugir das nossas habilidades.

Você fez uma trilogia (“Justiça”, “Juízo” e “Morro dos Prazeres”) sobre a elitização da Justiça e o descompasso entre ela e a população, que ficou bastante evidenciado na atual crise política.

Em 2004, o “Justiça” já era muito urgente, essa coisa corporativa do sistema judiciário. A gente vive ainda em uma sociedade dividida. Existe um abismo muito grande entre esses dois opostos. Entre a classe média intelectual, culta, educada, que tem acesso a uma série de coisas, e do outro lado, uma população, não pobre porque houve uma melhoria nos últimos anos, mas são pessoas mais carentes, que normalmente não tiveram muito acesso e têm perspectivas de vida diferentes, outro tipo de experiência. No “Justiça” e no “Juízo”, você vê essa dificuldade de diálogo, uma impossibilidade, devido a esse abismo entre campo e contracampo, operadores da lei e acusados. Muitas vezes, o juiz fala e o acusado não entende, e vice-versa. Duas línguas diferentes, duas experiências de mundo muito diversas. No “Morro dos Prazeres”, existe uma tentativa de diálogo entre a comunidade e o operador. O longa questiona se é possível essa comunicação. Não tem como falar do Brasil sem falar desse abismo.

E qual dos seus filmes teve o resultado de que você mais se orgulha?

Eu gosto muito do “Justiça”. Ele deu uma guinada no meu cinema e rendeu uma trilogia muito importante para mim. Também gosto muito do “Junho”, de revê-lo. Em geral, não revejo meus filmes. Acho que algumas cenas são surpreendentes, presentes que ganhei da realidade. Os personagens são muito bacanas. Tratando com pessoas reais, tudo pode acontecer a qualquer momento. E eu tenho um carinho muito grande por todos os nossos quatro homens, pela generosidade deles. Não é qualquer pessoa que está pronta e deixa filmar sua intimidade. Sou muito grata porque sem eles, sem sua dedicação e confiança, meu cinema não existe.