Livro

No ritmo que o diabo gosta

Daniel Ferro organiza coletânea que traz depoimentos de Erasmo Carlos, Supla, Pitty e outros roqueiros brasileiros

Por Raphael Vidigal
Publicado em 05 de agosto de 2017 | 03:00
 
 
Acir Galvão

Motoqueiros em fuga pela ameaça de uma pistola, a experiência de quase morte num voo internacional, brigas com uma gangue de filipinos em Nova York e o batismo da filha em “homenagem” à maconha. Essas e outras passagens ilustram as páginas do livro “Contos do Rock”, cuja organização ficou a cargo de Daniel Ferro, canadense naturalizado brasileiro que se desloca – como bom entendedor do assunto – entre a produção, a direção e o jornalismo, tendo sempre a música no radar. Se para esses apreciadores meia palavra basta, é possível dizer que Ferro vive em seu habitat natural nessas plagas.

“Todo mundo que já foi parte de uma banda de rock passou por esse tipo de perrengue, a identificação é imediata, são situações que parecem absurdas, mas são muito comuns para quem está na estrada levando essa vida, faz parte do organismo do gênero esse tipo de aventura”, descreve o entrevistado. Produtor de documentários, DVDs e clipes para nomes tão dissonantes quanto populares, casos de Chico Buarque, Michel Teló, Mr. Catra, Ivete Sangalo, Sepultura e Jota Quest, Ferro idealizou o programa de TV que inspirou a publicação recém-lançada. As duas premiadas temporadas, em 2010 e 2012, na categoria melhor programa musical, dão a medida do sucesso da iniciativa.

“Eu sempre achei que essas histórias faltavam nas biografias e nos documentários feitos sobre artistas, e são, justamente, as mais interessantes, inusitadas, divertidas. Além disso, quem não tem acesso a essas informações não compreende realmente o espírito de ser músico de uma banda de rock”, assegura Ferro, que indica o longa-metragem de ficção “Quase Famosos”, lançado em 2000 e dirigido por Cameron Crowe, como exemplo.

Excessos. Além das personagens que aparecem como depoentes, casos de Erasmo Carlos, Nasi, Fernanda Takai, Pitty, Fausto Fawcett, Supla, Andreas Kisser, Clemente e tantos outros destacam-se ilustres figuras citadas, do porte de Freddie Mercury, Lou Reed e Alceu Valença. Se o clima insólito marca quase todas as narrativas, o tom varia entre a irreverência e a pura graça, no típico estilo de “agora parece engraçado” o que no passado foi dramático, ou seja, tudo depende do filtro temporal em que se estabelece a situação.

“A década de 80 foi, inegavelmente, marcada por escândalos e excessos, havia até um certo glamour nesse tipo de comportamento, mas isso também rendeu letras muito políticas e incisivas. Quando, a partir dos anos 90, a temática afetiva toma conta, eu penso que as histórias captam essas diferenças”, aponta o organizador, que entre os vários relatos confessa divertir-se com um em especial, sem entregar a vítima. “Olha, muita gente não sabe que em jatinho não tem banheiro, e quem ler o livro vai se deparar com esse tipo de situação desesperadora”, brinca.

Sobre o que o impressiona no cenário atual do estilo, Ferro traça um recorte e separa as letras que considera de tom íntimo e confessional das denominadas por ele de “engajadas”. “Na primeira categoria admiro muito o Lucas Silveira, da Fresno, que é um cara com um discurso diferenciado, além de dominar muito bem todo o processo. Já nesse lado mais agressivo e inconformado, sou fã do Rodrigo Lima, vocalista do Dead Fish”, elogia.

Documento. Além do valor de entretenimento, Ferro sustenta que a coletânea produziu um documento de interesse para muitas gerações. “Eu acho que esse é um livro atemporal, único e pode render, inclusive, um segundo volume. Pelo simples fato de que essas histórias estão acontecendo agora com garotos que começaram a montar sua banda de rock e estão cheios de sonhos e desejos, e vão acontecer sempre. Esse tipo de problema que você passa em conjunto, o aprendizado da convivência num grupo forma todo o caráter de uma geração”, ratifica o organizador, que não tem dúvidas quando perguntado sobre sua principal referência.

“Eu ainda sou um garoto punk-rock, o mesmo que descobriu Nirvana na adolescência, e levo essa ética até hoje comigo e toco as canções da banda para o meu filho no violão. Acabei de ser pai e estou curtindo muito, é o maior barato essa ligação”, declara este recente “pai coruja” com espírito jovial intacto.


Atitude

Rock para enfrentar a crise econômica

Mutantes, Vímana, Secos & Molhados. Para Daniel Ferro, essas três bandas surgidas na década de 70 já desenhavam, naquela época, uma identidade nacional para o rock, o que se confirmou, segundo ele, com a ascensão internacional de grupos como o mineiro Sepultura e o paulistano Ratos de Porão (do vocalista João Gordo). “Eu discordo que seja tudo adaptado da ‘gringa’, acho que não, tem uma força do discurso e de uma expressão cultural que só poderia acontecer aqui, uma atitude de desbravamento e, ao mesmo tempo, assimilação, o que não significa cópia, muito pelo contrário”, avalia o produtor.
Como exemplo, enumera alguns ícones do calibre de Cazuza (1958 -1990), Renato Russo (1960-1996) e a cantora Cássia Eller (1962-2001). “Eles deram vazão a um pensamento de rebeldia do qual sinto falta às vezes, são letras que te pegam no nervo, brutais, políticas, até hoje me arrepiam. Não foi à toa que se tornaram ídolos”, assevera Ferro, que, além de sublinhar a “inteligência acima da média no discurso”, nutre uma esperança para estes dias, que não se apresentam como os mais abonados. “Nesses momentos de crise, o rock te oferece uma escola igual nenhuma outra. Porque ele é descarrego, lazer e questionamento. Tem sangue nos olhos, e é o que precisamos agora”, diz. (RV)