Artes visuais

O confronto do encontro

Radicado em Berlim, o mineiro Marcellvs L. fala de seu trabalho com videoinstalações baseadas em teorias filosóficas

Por Fábio Corrêa*
Publicado em 23 de abril de 2017 | 03:00
 
 
O artista de audiovisual Marcellvs L. acervo pessoal

BERLIM, ALEMANHA. Se, num primeiro momento, a obra de Marcellvs L. surge quase enigmática, tampouco o artista radicado em Berlim e na Islândia exige do espectador algo além do próprio encontro com suas videoinstalações. “O que me interessa é que as pessoas tenham a coragem de confrontar o trabalho. Gostar ou entender é secundário”, diz, em seu estúdio no bairro de Kreuzberg, na capital alemã.

Há 11 anos, o artista audiovisual belo-horizontino chegou à capital do país germânico pouco depois de vencer o grande prêmio do Festival Internacional de Curtas-Metragens de Oberhausen, na Alemanha – um dos mais importantes do mundo. A obra vencedora era “man.road.river.” (2004), uma sequência ininterrupta que mostrava a lenta travessia de um homem por um rio, com manipulações de imagem, mas sem concessões a uma narrativa tradicional. Na essência, o espectador se encontrava com o que o próprio título previa: um homem, uma estrada e um rio.

O vídeo era parte da série “Videorizoma”, em que obras semelhantes eram enviadas, à época em VHS, para endereços de desconhecidos em Belo Horizonte, sem remetente e marcados apenas com um número, escolhido com um simples rolar de dados. Além de “man.road.river”, havia outras 26 peças que traziam desde um homem caminhando por um acostamento em uma estrada até um cavalo sendo lavado no mar – simplificadamente, ações solitárias e encontros (ou confrontos) inesperados com a câmera.

Baseados na teoria do rizoma, desenvolvida pelos filósofos franceses Felix Guattari e Gilles Deleuze, os vídeos da série são um recorte de uma realidade cujos eventos mais simples podem revelar novos sentidos aos olhos de quem assiste. Pode parecer complicado para um leigo, porém os cenários e as ações que se desenrolam frente às lentes de Marcellvs L. são dotados de uma beleza quase selvagem, fruto exatamente do deslocamento desses eventos aparentemente banais.

Filosofia. Depois de todos esses anos de vivência além-mar, o artista de 36 anos segue perseguindo objetivos semelhantes. “É claro que a minha forma de fazer arte mudou desde que estou aqui, mas a lógica é a mesma”, diz Marcellvs, que, na recente videoinstalação “Resiliência”, continua integrando a filosofia na linguagem do vídeo. “O conceito de resiliência significa voltar a um estado de normalidade após um caos ou uma tensão”, explica.

O vídeo, por sua vez, traz insólitas imagens de uma usina hidrelétrica construída para gerar energia para indústrias de alumínio na Islândia, acompanhadas de sons que variam entre extremos de graves e agudos. Em contato com as imagens e com o áudio, o espectador, sem perceber conscientemente, sente, fisiologicamente, o conceito de resiliência aplicado em seu corpo. “Esses cortes de áudio aumentam os batimentos cardíacos e também os fazem retornar para a pulsação normal”, explica o artista.

A escolha pela Islândia na obra também não foi por acaso. Na ilha gélida, o artista tem uma casa num fiorde, na cidade de Seydisfjordur, que, mesmo com apenas 500 habitantes, é sede de duas residências artísticas. É durante o inverno e o verão, quando há, respectivamente, o mínimo e o máximo de luz natural, que Marcellvs se muda para o país. No resto do ano, ele vive em Berlim, onde está a galeria que representa seu trabalho.

Sem planos de retornar definitivamente para o Brasil, Marcellvs é conciso em explicar o sentido de seu trabalho. “A arte tem a ideia de se expandir como linguagem. Antes do (Marcel) Duchamp, as pessoas não o entendiam como arte”, diz. “Aos 36 anos, não tem por que tirar o pé do acelerador no sentido de criação de linguagem, aumento os limites do que pode ser compreendido como arte. Viver disso é um privilégio absoluto para mim”, justifica.

Inhotim. No Brasil, obras de Marcellvs L. compõem o acervo do Inhotim, em Belo Horizonte, e da Galeria Luisa Strina, em São Paulo.

* Bolsista do programa para jornalistas latino-americanos da Fundação IJP

FOTO: acervo pessoal
“Slow Ontology” é um dos trabalhos mais recentes do artista e mostra canais perto de Birmingham


Composição musical para acompanhar o trabalho em vídeo

Pode-se dizer que é na música que está a outra faceta do trabalho do mineiro Marcellvs L., não fosse pelo fato de que, na verdade, o interesse pelo vídeo começou com ela. Foi adolescente, quando ainda morava em Belo Horizonte, que o artista radicado em Berlim, começou a produzir videoclipes para as bandas nas quais tocava.

Um pouco mais tarde, Marcellvs L. se juntou à pexbaA, extinta banda experimental de Belo Horizonte. No conjunto, ele era uma espécie de “integrante audiovisual”, revezando-se entre a câmera e a iluminação.

Como compositor, no entanto, a concretização veio na capital alemã. Foi em Berlim que Marcellvs lançou álbuns autorais de música concreta, usando e abusando de gravações e manipulações de sons para transformar suas peças. Por exemplo: em “Klavierwellen” (“Ondas de piano”, em alemão), lançado em 2011 pelo selo germânico Tochnit Aleph, de Daniel Löwenbrück, os sons vieram a partir de gravações captadas por microfones dentro de um piano transportado em uma gôndola pelos canais de Veneza.

O projeto musical mais ousado, porém, ficou por conta de “Stallgewitter”, (“tempestade de estábulo” em alemão), de 2014, feito em parceria com Löwenbrück. “São gravações de eventos em que há uma tempestade, que também pode ser metafórica, e animais reagindo a elas”, conta Marcellvs. “Na primeira, colocamos microfones debaixo das tábuas de um estábulo na Islândia e gravamos a reação das cabras durante uma tempestade que chegou a arrancar o teto do curral”, explica.

Método. No trabalho de Marcellvs, porém, a ideia da composição, com ritmos e cadências predefinidas, não fica circunscrita apenas ao terreno da música, mas surge em videoinstalações, como “Slow Ontology” (2014), por exemplo. Para a sequência, o mineiro viveu por alguns meses em um pequeno navio nos canais próximo a Birmingham, no Reino Unido.

Com uma câmera na proa do pequeno navio, Marcellvs L. gravou, à noite, a ação que desenrola: navegar pelo canal até chegar a um dique, abrir a válvula até ele encher de água e passar por uma espécie de porteira para que a viagem continue. “Para mim, é uma espécie de composição, pois os tempos entre o abrir dessas porteiras e a navegação eram quase rítmicos”, diz o artista.