Cinema

Picassos que não deram certo

“Amores Urbanos faz retrato autêntico e apaixonado dos erros e da falta de rumo dos chamados “millenials

Por Daniel Oliveira
Publicado em 19 de maio de 2016 | 03:00
 
 
Amigos. Da esq. para dir., Vera Egito e seu elenco Maria Laura, Thiago Petit e Renata Gianfranco Briceño / divulgação

Com a facilidade de filmar hoje em dia, e a máxima “escreva o que você sabe” dos professores de roteiro, o que mais existe são jovens realizadores fazendo longas sobre o próprio umbigo – leia-se, a falta de rumo da geração “millenial”. O grande problema é que quase nenhum deles tem algo a dizer a respeito – um ponto de vista, uma opinião.

Felizmente, esse não é o caso de “Amores Urbanos”, que estreia hoje. O primeiro longa da diretora Vera Egito (roteirista de “À Deriva” e “Serra Pelada”), inspirado em causos dela e de amigos, enxerga esses marmanjos de trinta e poucos anos que ainda não sabem bem o que querem da vida como uma geração de erros: que, apesar de viver batendo a cabeça na parede, cagando regras e fazendo o oposto, ainda aspira à perfeição e acredita que vai fazer “algo importante”. Preferimos ser o esboço de um Picasso nunca finalizado a um Romero Britto completo – o potencial de algo que talvez nunca se realize a uma mediocridade acomodada.

“É uma geração que não cresceu para casar e ter filhos, mas aí chega nos 30 e não sabe o que fazer. Porque o roteiro não está predeterminado, o que é bom, mas também gera um vazio”, define Egito, 34. Se você se enxerga nessa descrição, vai sentir que “Amores Urbanos” é a transcrição do papo no bar com seus amigos no sábado passado. Se é daqueles que sabia o nome dos filhos aos 18 anos, vai querer jogar uma pedra nos protagonistas – três amigos e vizinhos em um prédio paulistano.

Julia (Maria Laura Nogueira), depois de tentar mil empregos e carreiras, tenta se afirmar como assistente da estilista Emmanuelle Junqueira enquanto se recupera de um baita pé na bunda do namorado de dois anos – mas que do que ela gosta mesmo é fazer bolos e postar no Instagram. No apê ao lado, moram Diego (Thiago Petit), gay um tanto machista que quer a segurança do namorado, e também sair toda noite, encher a cara e beijar quem aparecer; e Mica (Renata Gaspar), lésbica insegura e em crise com a namorada bissexual Duda (Ana Cañas), que não sente necessidade de assumir sua sexualidade ou o relacionamento.

Nenhum dos três é exatamente agradável, muito menos um modelo de ser humano. E o maior mérito de Egito é que, em algum momento, você vai odiar cada um e, cinco minutos depois, identificar-se com aquela mesma pessoa. O que não é por acaso. A cineasta reescreveu o roteiro do ponto de vista de cada personagem, com o objetivo de não tomar partido de ninguém, e para que todos tivessem sua razão.

“Em relações amorosas, todo mundo tenta, acha que está certo. A brincadeira do filme é entender que, em cada momento da vida, você já foi um deles: já brigou, deu pé na bunda, tomou. É uma ciranda, e eu queria que o espectador fosse todos, inclusive os pais”, explica a diretora.

Essa mistura do retrato de uma geração com personagens tão desagradáveis quanto identificáveis e o visual “indie hipster” do longa gera comparações inevitáveis com o seriado “Girls”. E elas não são de todo injustas. Além de Julia ter um pouco do privilégio narcisista e egoísta da Hannah de Lena Dunham, “Amores” tem um elenco que não é excelente, mas representa perfeitamente seus personagens, e cenas meio de sitcom, como quando Mica tem uma briga com Duda enquanto os amigos entram e saem da sala do apartamento compartilhado. “Tem um pouco da geração fracassada e do excesso de possibilidades que acaba paralisando, mas não foi uma referência direta”, reflete Egito.

A série que ela admite re<CW-15>almente ter influenciado o longa é uma que os protagonistas (como qualquer bom millenial) assistem em maratona em uma cena: “Looking”. Assim como o ótimo seriado de Andrew Haigh, o maior mérito do texto e da direção de Egito é capturar a autenticidade, não só de seus personagens, mas de algo bem mais difícil: da amizade entre eles. Captar um laço tão intangível – e tão fundamental para uma geração que não se casa – não é fácil, e a cineasta sabia disso quando escreveu o roteiro pensando nos amigos Maria Laura e Pethit para Julia e Diego. Os dois sugeriram a amiga Renata para viver Mica – e os três trouxeram a amizade de anos para a tela.

“A relação deles na vida não é igual à do filme. São pessoas diferentes, o Thiago é mais doce, a Maria Laura é mais aberta. Só que a intimidade é a mesma, a dinâmica já existia”, explica Egito. A câmera da diretora não tem a mesma fluidez e a sensibilidade à flor da pele de Haigh ao filmar as relações de seus personagens, mas é porque o espírito independente é o mesmo: “Amores” foi filmado em 17 dias, no prédio da assistente de direção Renata Racy, que calhou de ser vizinha de parede com uma amiga como no roteiro, em planos médios e quase sempre únicos, com câmera no tripé, sem muita firula nem lero-lero – porque não havia dinheiro e, principalmente, porque Egito confiava no roteiro e no elenco.

“É um filme de texto e de ator, não é para perceber que tem uma câmera ali”, argumenta. De fato, “Amores Urbanos” vale pela paixão por esses personagens que, com todos os seus defeitos e incoerências, lidam com gays, lésbicas, bissexuais e abortos como partes indiferentes do mundo, que não são uma “questão”, muito menos da conta de ninguém. Uma paixão que, no (belo) plano final, após um velório simbólico de um país ultrapassado e a promessa do surgimento de uma vida nova, parece acreditar que, mesmo com uma economia que não será tão generosa com essa geração de sonhadores e com o retrocesso conservador atual, o mundo é deles. “Me assusta essa ascensão do conservadorismo querendo impor valores religiosos aos outros. Espero que o filme reafirme que tem uma galera que vive do jeito que quer, homem com mulher, homem com homem, mulher com mulher e, se você acha bonito ou feio, o problema é seu. Aconteça o que acontecer, você votando ou não, a gente vai continuar aqui”, afirma a diretora.