Cinema

Premiado em Berlim, "Pendular", de Julia Murat, estreia em BH

Filme estreia nesta quinta-feira e foi concebido em um momento de exorcismo de relacionamentos afetivos de direto e roteirista

Por ASSINA]DANIEL OLIVEIRA
Publicado em 21 de setembro de 2017 | 03:00
 
 
Filme de Julia Murat traz história de uma dançarina e um escultor VITRINE/DIVULGAÇÃO

BRASÍLIA. Iniciar um relacionamento nunca é fácil. Especialmente se você já teve muitos outros e começa a pensar em tudo que pode dar errado, em todos os problemas e impedimentos que inevitavelmente vão surgir. É por isso que, pouco depois de se conhecerem, a diretora Julia Murat e o roteirista Matias Mariani resolveram exorcizar esses demônios escrevendo um filme sobre a relação afetiva e criativa entre dois artistas. “Quando começamos o roteiro, tínhamos esse desejo de construir uma relação que se tornasse claustrofóbica, que fosse se impondo e abrindo poucos espaços”, descreve Murat.

Mariani reconhece, no entanto, que o grande risco de criar algo tão autorreferente é que o resultado acabe ficando pela metade – algo que Fellini discute em “Oito e Meio”. “Mas, quando começamos, mal nos conhecíamos. Não tivemos uma relação e depois paramos para escrever. E isso nos defendeu de um intelectualismo excessivo, de pensar o que colocar ou o que representar. Era algo que estávamos vivendo, e escrever foi alimentando nossa experiência”, explica.

O resultado desse processo é “Pendular”, que foi exibido na competitiva do 50º Festival de Brasília no domingo e pode ser conferido nos cinemas a partir de desta quinta-feria (21). A claustrofobia foi transformada na história de dois artistas que passam a viver e a trabalhar juntos no mesmo galpão. E o excesso de autorreferência foi evitado ao fazer dela uma dançarina (Raquel Karro) e dele um escultor (Rodrigo Bolzan), que nunca são nomeados e encaram os desafios causados pela interferência mútua entre seus diferentes processos criativos e sua relação amorosa.

E, para construir esses processos criativos de forma verossímil, Julia e Mariani passaram dois meses trabalhando o roteiro com a coreógrafa Flávia Meireles e as escultoras Elisa Bracher e Marina Kosowski. “A Elisa cedeu muitas obras dela antigas para o filme e criou várias novas. E a Flávia, junto com a Raquel e o Neto (Machado, ator), construiu uma performance para ser apresentada no filme”, conta a diretora. As questões e os obstáculos encontrados pelas artistas nesse processo acabaram incorporados ao próprio longa, e as obras resultantes serão expostas no Museu de Arte Moderna do Rio após o lançamento do filme.

Já com os atores, a preparação teve um objetivo e um foco diferente: a criação de intimidade. Isso porque toda a tensão que vai surgindo entre os dois protagonistas e as fricções artísticas e pessoais não resolvidas, que vão desequilibrando o pêndulo do título, são canalizadas para o sexo – encenado de forma não explícita, mas realista e apaixonada, como a disputa por espaço e controle que os personagens nunca verbalizam. “Muita gente filma sexo apenas para falar que os personagens estão transando, sem reconhecer como ele diz muito de uma relação e como ele muda ao longo dela. E a gente queria trazer o sexo como um elemento que falasse do relacionamento como um todo”, argumenta a diretora.

O que Julia e sua equipe não imaginavam é que isso se tornaria a grande polêmica do filme – que, dentro da onda conservadora que o país atravessa, acabou recebendo a classificação de 18 anos. “Vamos recorrer, pela importância política. Mas a distribuidora já avisou que não vamos ganhar”, reconhece Murat.

Por sua vez, a atriz Raquel Karro, que nunca tinha feito uma cena de sexo antes, acredita que a perversão, na verdade, está na fetichização que se cria em torno dessas sequências. “Lembro do primeiro dia e das pessoas me perguntando como eu queria a luz e o que queria proteger. E aquilo me parecia uma perversão. Fui percebendo que atrapalhava o tesão que eu precisava acessar. Se, como atriz, eu me deixo atravessar por tantas emoções sem pudor, acessando lembranças doloridas e lugares perigosos, por que teria limitações com o sexo?”, questiona a atriz, que havia acabado de dar à luz, com um bebê de quatro meses durante as filmagens.

Já Rodrigo Bolzan questiona os critérios usados pelos censores. “Tem arte que eu acho ruim e pornografia que eu acho elevadíssima. Esses critérios indicativos são uma loucura. Sexo faz parte da vida da gente, de maneira muito íntima. Pensar o que é positivo ou saudável para qual idade não faz sentido”, dispara.

Por fim, o roteirista Matias Mariani, que processa e exorciza em “Pendular” questões do próprio relacionamento, afirma que a verdade, a potência e a essencialidade do sexo no filme já estavam ali desde o roteiro. “Se você não se excita ao escrever aquilo, se não te dá tesão ao filmar, é porque não funciona. Não vale a pena”, provoca.

(*) O jornalista viajou a convite do festival

 

Filme faz retrato da disputa que permeia relações

BRASÍLIA. Relacionamentos têm a ver com espaço. Não só com a delimitação do próprio espaço, suas fronteiras e até onde você está disposto a deixar alguém entrar, mas com o desejo e a curiosidade de investigar o do outro, de conhecê-lo e estar nele. É uma negociação e uma disputa constantes, que são a própria matéria-prima de “Pendular”, que estreia nesta quinta.

Não por acaso, o filme da diretora Julia Murat começa com os seus dois protagonistas – um escultor (Rodrigo Bolzan) e uma dançarina (Raquel Karro), nunca nomeados – dividindo ao meio o galpão onde vivem e trabalham, delimitando o espaço de criação de cada um. É aquela ilusão do início de um relacionamento de que tudo vai ser respeitado e organizado, de que você não vai perder o controle sobre sua identidade e que vai existir um equilíbrio perfeito de forças. Mas, de repente, ela contamina o espaço dele, ele invade o dela, e a relação acaba criando uma confusão tão grande que, a certa altura, não se sabe mais onde um começa e o outro termina. Uma invasão e dominação tais que pode ser difícil se lembrar de quem você realmente é. Às vezes, isso é bom. Outras, nem tanto.

“Pendular” faz o retrato disso, usando o processo artístico – e o sexo – como representação dessa dinâmica. O fato de que os dois personagens decidem viver e trabalhar no mesmo local deixa claro como essas diferentes esferas vão inevitavelmente se contaminar. A disputa e a negociação interpessoais acabam se refletindo na criação dos dois, e o cotidiano se torna uma performance-extensão das fricções artísticas – chegando a um ponto tal que os dois só conseguem expressar sua frustração e sua dor em seus trabalhos, encenando um teatro defensivo fora dele. E o sexo passa a ser o canalizador de toda essa tensão não resolvida, sempre um jogo de poder que encena essa eterna tentativa de penetrar totalmente, de dominar o espaço-corpo do outro.

E uma das grandes sacadas do roteiro de Julia, com seu marido Matias Mariani, é que todo esse conflito tem origem na própria natureza do ofício dos dois. Ele é um escultor que pensa a arte sempre como um produto, como um trabalho manual cujo resultado é um objeto físico externo, que vai ocupando e tomando o espaço. E, de certa forma, ele quer usar o corpo dela como uma ferramenta para (re)produzir isso.

Só que, para ela, seu corpo é a própria obra de arte. Não se trata de um produto final, mas do processo pelo qual esse corpo vai passar. E sua ocupação do espaço é por meio do movimento desse corpo. Por isso, ela precisa dos dois livres – e ressente tanto a invasão gradual do parceiro quanto a tentativa dele de controlar seu corpo.

O choque entre esses universos opostos é representado por Julia tanto no som de Daniel Turini, que opõe a música do processo dela ao barulho mecânico e caótico do dele, quanto na fotografia de Soledad Rodriguez, que contrapõe os planos fixos e abertos do trabalho de criação dele aos movimentos íntimos e próximos da parceria dela com seu coreógrafo – uma intimidade e um movimento de que ele se ressente, o que faz com que tente dominar no sexo esse corpo indomável. Esse embate se manifesta ainda em como os dois buscam relaxar – ela no futebol, mostrada sempre em movimento, não em função de uma vitória; ele no videogame, em busca de um objetivo constante, um resultado.

São visões de mundo diferentes e conflitantes, que se chocam num espaço fechado, claustrofóbico, do qual a câmera só sai na penúltima sequência – e essa talvez seja a síntese perfeita do que significa estar em um relacionamento.