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Quem tem medo de Beckett?

No dia do seu centenário de nascimento, o Magazine lança a pergunta para descobrir o que ainda causa tanto fascínio e receio na obra de Samuel Beckett.

Por SORAYA BELUSI
Publicado em 13 de abril de 2006 | 00:01
 
 
No dia do seu centenário de nascimento, o Magazine lança a pergunta para descobrir o que ainda causa tanto fascínio e receio na obra de Samuel Beckett.

Quando "Esperando Godot", peça de Samuel Beckett (1906-1989), estreou nos Estados Unidos, em 1956 , o crítico Walter Kerr, do "The New York Times", escreveu: "uma peça em dois atos onde nada acontece".

Opinião que o mesmo crítico perceberia como equivocada 25 anos depois, proclamando o escritor irlandês e sua história em dois atos na qual só aparentemente nada acontece "como a obra mais genial do século 20".

Cem anos após seu nascimento, o ganhador do Nobel de literatura continua fascinando alguns criadores e deixando outros com receio de levar a sua obra para os palcos.

No dia em que completaria cem anos, o Magazine conversou com diretores que já levaram os textos do dramaturgo para o palco e lança a pergunta: Quem tem medo de Beckett"

Os desafios para encenar as peças do escritor irlandês, que escolheu a França para passar a maior parte de sua vida e o francês como língua para sua escrita, continuam sendo diversos. A crítica considera sua obra fascinante, mas irretocável, inadaptável.

E, para aumentar ainda mais o receio dos criadores, poucas montagens brasileiras foram consideradas pela mesma crítica especializada como coerentes com a proposta e o pensamento de Beckett.

Avesso a holofotes, mas de competência já reconhecida, o diretor Rubens Rusche já encenou nove peças de Beckett. Adaptou "Fim de Jogo" em 1996, recebendo o prêmio de melhor diretor pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), além de ter sido indicado aos prêmios Mambembe e Shell na mesma categoria.

Organizou no Centro Cultural São Paulo o evento "Beckett 90 Anos", naquele mesmo ano. E sua estréia como diretor, em 1986, aconteceu com a montagem de quatro peças curtas de Beckett ("Eu Não", "Comédia", "Cadeira de Balanço" e "Catástrofe"), reunidas no espetáculo "Katastrophé".

Segundo Rusche, um dos elementos que pode causar arrepio nos diretores é a necessidade de não desassociar o conteúdo do texto com a forma proposta nas rubricas.

"O que acontece com Beckett em especial é que ele cria um novo tipo de teatro, através de uma escrita dramática que, de certo modo, já traz as indicações de encenação. De maneira que forma e conteúdo fiquem entrelaçados. Trata-se então de uma nova linguagem e um novo tipo de teatro. Por isso que, se não levar em conta essa questão, o diretor não estará fazendo o teatro do Beckett e, nesse caso, estará fazendo nada", opina Rusche, que este ano se desdobra entre as capitais de São Paulo e Rio de Janeiro, cumprindo ciclos de palestras e workshops em comemoração ao centenário do dramaturgo.

Ainda nos festejos dos cem anos do nascimento de Beckett, Rusche começa os trabalhos para encenar "Fragmento de Monólogo" e "Passos", para o próximo semestre.

"O Beckett vai estabelecer uma ruptura brutal com o teatro burguês do final do século 19 e início do século 20, após o Pirandello e toda aquela teoria poética de Artaud. E ele surge num momento em que está se buscando uma revolução da arte cênica, no início da década de 50. A contribuição dele nesse sentido é singular, única. Talvez esteja aí o dilema de lidar com ele, uma proposta de artes cênicas que tem todo um passado atrás e levando essa proposta do novo a um limite de possibilidades", opina.

Cacilda Becker
A obra de Beckett teve, até, fama de maldita. Pura superstição, mas que no Brasil foi fortalecida pelo aneurisma cerebral que matou Cacilda Becker durante o intervalo do primeiro para o segundo ato de "Esperando Godot", na temporada que estreou em 8 de abril de 1969.

Walmor Chagas, que foi marido e era companheiro de cena de Cacilda, presenciou o incidente e garante que Cacilda sofreu uma fatalidade.

"Diziam que essa peça era maldita, que quem fazia morria. Mas podia ter acontecido em qualquer peça, com qualquer um, o que aconteceu com ela. Não houve nada de anormal ou estranho. Ela não foi mais fundo com Estragon do que foi com outros personagens anteriores. Ela ia ao extremo de tudo", garantiu Walmor.

O ator que deu vida a Vladimir, na montagem que entrou para a história do teatro brasileiro, alega ainda mais um fator para que Beckett provoque receio nos diretores.

"Talvez o medo que alguns diretores tenham de montá-lo é que o público não compareça porque não há apelos para agradá-lo, não é teatro de entretenimento. E, também, porque é aparentemente de difícil compreensão. Na nossa temporada (que teve 42 apresentações), o público ficava tão quieto, que não sabíamos se estavam prestando atenção ou dormindo", brinca.

Gabriel Vilella estreou sua versão para "Esperando Godot" em fevereiro deste ano, na capital paulista. Para ele, esse texto de Beckett é um divisor de águas.

"O sentido, o significado de Godot é, por excelência, uma incógnita. Se o é, você preenche com valores. É o sentido da espera, da metafísica, uma coisa muito delicada porque também é a síntese da humanidade. "Do útero para o túmulo, um parto difícil". Um resumo da vida. E temos que tratar isso com um espírito muito livre. Porque "Hamlet" e "Godot" são os dois novos evangelhos. Dois textos que norteiam e guiam a humanidade. Tem antes e depois. Tudo foi escrito a partir disso", afirma.