Vladimir Safatle

Sobre afetos e corpos políticos

Sempre Um Papo traz o escritor e filósofo chileno radicado no Brasil para debate e lançamento de seu mais recente livro

Por Lucas Buzatti
Publicado em 23 de maio de 2016 | 03:00
 
 
Novos paradigmas. Safatle sugere que o desamparo deve ser visto como afeto político central e que propõe a despossesão do indivíduo HERMANO TARUMA/divulgação

Quais conceitos norteiam a construção de sentido do que é uma sociedade? Como entender os vínculos que afetam corpos, impulsionam desejos e acirram antagonismos? E como construir, por meio da filosofia, uma teoria política de transformação, que reveja esses vínculos e instaure novas corporeidades e formas de ser? Esses são apenas alguns dos questionamentos levantados em “O Circuito dos Afetos – Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”, livro de Vladimir Safatle, cuja segunda edição acaba de ser lançada pela editora Autêntica. Filósofo, escritor e professor da USP, o chileno radicado no Brasil é o convidado da edição do Sempre um Papo que acontece hoje, no Palácio das Artes.

Autor de livros que versam sobre temas ligados aos universos da filosofia, da arte, da psicanálise e da política, Safatle busca, agora, “pensar as dinâmicas da ação social e da desconstituição de identidades, sejam individuais, sejam coletivas, a partir de uma teoria dos afetos”. “A base do livro é insistir que a sociedade não se baseia somente em circuitos de bens e riquezas, mas também em circuitos de afeto. É moldada por círculos sociais e modalidades de ações produzidas através de afeto”, explica o pensador. “Para pensarmos como a sociedade se transforma, temos que pensar quais são os afetos que constituem laços sociais de forma hegemônica”, completa.

Mas o que são os afetos, para a filosofia? “O afeto é o modo de implicação dos sujeitos. São as maneiras pelas quais sou implicado pelo exterior, que passam pela experiência sensível e corporal”, explica Safatle, relacionando afeto e política. “Enquanto atores políticos, somos sujeitos corporificados. Por um lado, nos julgamos e agimos a partir da maneira como somos afetados; por outro, no interior da política, tentamos constituir corpos. Há toda uma dinâmica de corporificação que é central para entender a política”, sublinha.

Safatle questiona se os afetos políticos centrais – que, atualmente, são o medo, a segurança e a esperança –, de fato, permitem à sociedade pensar experiências políticas transformadoras. “Se a gente quiser entender a política hoje, temos que entender como o medo circula através da gestão e da produção contínua da insegurança como prática de governo”, assinala. “A esperança é outro afeto complementar ao medo. Um não existe sem o outro. A política baseada na esperança é, também, baseada no medo. É uma política que esvazia o tempo, que parte do pressuposto de que devemos nos defender de tudo que é inesperado”, completa.

Partindo dessa premissa, o filósofo chileno-brasileiro volta às teorias de Freud para sugerir o desamparo como afeto político central, “não apenas por ser o que nos abre às relações sociais, mas por ser uma espécie de afirmação da contingência e da despossessão”. “O desamparo deve ser visto não como algo que o poder deve ouvir e saber responder, mas como algo que mostra a fraqueza de toda forma de poder. É preciso pensar a política que reconhece a fraqueza do poder”, sugere.

Safatle defende, também, que os indivíduos devem ser “despossuídos de seus atributos e predicados, permitindo com isso a configuração de outras formas de sujeitos políticos”. “Pensar política é pensar, acima de tudo, a célula elementar de compreensão da vida social. Hoje em dia, tendemos a pensar que essa célula é o indivíduo, que a sociedade é uma associação de indivíduos, que a relação com o poder é contratual, que agimos na política com foco em anseios pessoais”, reflete.

“Eu insisto que uma das travas maiores que limitam nosso imaginário político é não pensar na sociedade para além de uma associação de indivíduos”, continua o filósofo. “Isso parte da ideia de liberdade como autonomia individual, que ganhou muita força com o neoliberalismo. Mas insisto que devemos ver a liberdade não como autonomia individual, mas como heteronomia. O que me afeta vem do exterior, eu nunca sou completamente legislador de mim mesmo. Sempre sou atravessado por coisas que não controlo completamente. Mas essas coisas não precisam necessariamente me colocar numa posição de sujeição”, finaliza.

Entrevista: "O que temos hoje não é um governo?"

O medo é, hoje, um dos afetos políticos centrais. O discurso do impeachment foi calcado no medo?

Por um lado, sim. Mas também houve um papel grande do ressentimento. Pessoas que acharam que foram lesadas, que sofreram violências, e se revoltaram não com os atores dessa violência, mas com aqueles que representam o poder.

Como você disse numa coluna, o Brasil sempre foi uma fenda. Como percebe esse discurso do país dividido?

O problema não é o discurso, é ele ter aparecido somente agora. Ele deveria ter aparecido no período pós-ditadura, para que fosse possível responsabilizar setores que apoiaram o regime militar e nunca fizeram mea culpa. Mais que isso, conservaram a análise de que foram vitoriosos no processo e agora voltam, num momento de fraqueza política e social do país. O Brasil são dois países. Sempre foi dividido, e prova disso é que não conseguimos criar sequer um discurso próprio com relação à ditadura militar. Não temos nem um torturador preso. Por isso, há momentos que é preciso acirrar o antagonismo para estimular formas de acordo.

Você também afirmou que o governo Temer não existia. Ele segue não existindo, na sua análise?

Com certeza. O que temos hoje não é um governo. Um governo pressupõe possibilidade de politizar antagonismos num espaço simbólico cujas regras todos devem seguir. O que vemos agora é uma república oligárquica que se serve das leis de forma arbitrária. Não é uma democracia, não é um governo.

Como você percebe a falta de representatividade de mulheres e negros no governo interino?

Acho que isso demonstra claramente em que época esse pessoal vive. No século XIX, na República Velha. Você montar um ministério sem nenhuma representação feminina e negra em 2016, e pensar que não vai haver reação, é monstruoso. Mostra uma completa falta de visão do que é a representação simbólica de uma sociedade.

E com relação à extinção do Ministério da Cultura e à reação da classe artística, quais as suas impressões? (essa entrevista foi realizada antes do anúncio da volta do MinC)

A extinção do MinC faz com que a cultura volte a ficar totalmente na mão das grandes corporações. Além disso, não há desenvolvimento econômico sem atividade cultural. Eles vêm o campo das artes como um inimigo muito claro. A cultura e a universidade foram setores que não apoiaram o impeachment. E a cultura era o menor orçamento da Esplanada, então não há justificativa do ponto de vista financeiro. É um recado muito claro. Sobre as reações, é natural que a arte esteja na linha de frente da resistência, pois é sempre a primeira a sentir o autoritarismo na vida social. Pode ter certeza que ainda haverá uma não cooperação, uma desobediência, para com esse governo ilegal. Não só na cultura, mas também em outros setores da sociedade. 

AGENDA

O Quê. Sempre Um Papo com Vladimir Safatle
Quando. segunda-feira (23), às 19h30
Onde. Sala Juvenal Dias, Palácio das Artes (avenida Afonso Pena, 1.537, centro)
Quanto. Entrada franca

 

 

com entrada gratuita. Local: Sala Juvenal Dias/Palácio das Artes – Avenida Afonso Pena, 1537, Centro
Informações: (31) 3261.1501– www.sempreumpapo.com.br