Artes cênicas

Sociedades que silenciam 

Yara de Novaes e Rodolfo Vaz se inspiram no conto O Capote, de Gogol, para abordar invisibilidade e valores sociais

Por Joyce Athiê
Publicado em 10 de outubro de 2015 | 03:00
 
 
Rodolfo Vaz (centro) interpreta Akaki, personagem ordinário que protagoniza o conto "O Capote", do russo Gogol Joao-Caldas / Divulgação

O que um escrevente de uma repartição pública tem a nos dizer? O que o sujeito invisível pode iluminar? Uma resposta possível recairia sobre a vivência universal dos homens ordinários, por vezes, refletindo o contraponto de uma vida guiada por hábitos burgueses. Afinal, por que comprar um casaco novo se um pequeno remendo seria suficiente?

O clichê do exemplo é um subterfúgio para pensar com Akaki Akakievitch, personagem do conto “O Capote”, do russo Nikolai Gogol, algumas mazelas das sociedades formatadas por valores que prezam o consumo, o status e as disparidades entre os sujeitos.

O pensamento crítico a partir da pequenez da vida de Akaki seria possível, se a ele fosse dado o direito de contar sua história. Mas nem isso lhe é reservado. O silenciamento do personagem, no entanto, despertou no ator Rodolfo Vaz a vontade de reverberar essa reflexão com a montagem do espetáculo homônimo.

Do desejo à realização, muito anos se passaram e só em 2009, quando recebeu de Drauzio Varella uma adaptação para o teatro, é que Rodolfo começou a visualizar as chances de concretizar seus anseios. Depois da adaptação, o ator ainda demorou seis anos para trazer aos palcos a história de Akaki, que estreou em julho, em São Paulo, e chega a Belo Horizonte hoje para temporada no Centro Cultural Banco do Brasil até 9 de novembro.

Amigo de Rodolfo desde a montagem de “Salmo 91”, peça com texto do médico, Drauzio talvez tenha sido uma das poucas pessoas a dar voz a Akaki, fazer uma inversão no conto original e escrever um monólogo para ser interpretado por Rodolfo, em primeira pessoa. Mas, durante o processo de construção do espetáculo, já com a direção de Yara de Novaes, o texto retorna para a terceira pessoa e ganha novos personagens, em especial, dois narradores, interpretados por Rodrigo Fregnan e Marcelo Villas Boas, com a missão de contar a vida de Akaki, mesmo que, aos olhos deles, não se tenha muito coisa a ser dita.

“Ele fica pedindo para contar sua história, mas os narradores acreditam que sabem mais do que ele. Akaki é tratado como um bobo, uma criança inocente que pede a palavra, mas que não recebe a menor atenção”, afirma Rodolfo, para quem, a pureza é vista como algo careta, inclusive hoje, quando olhamos para o outro com superioridade e sempre com uma opinião a dar sobre tudo. “Partimos desse conto triste, apesar do humor de certos momentos, para falar das pessoas invisíveis de quem nunca nos recordamos a existência, e trazer temas que estão sempre em evidência, como o bullying, o julgamento, a intolerância”, diz.

Evidenciando as questões que se resvalam nos dias de hoje, a peça propõe um diálogo dos tempos, entre Akaki, que permanece situado no século XIX, na Rússia, e os narradores, posicionados no XXI. “Entre outras camadas de ironia, há uma crítica ao funcionalismo público e à burocracia, à vida rotineira que se arrasta mecanicamente. Akaki é considerado o primeiro ser ordinário da literatura russa que, até então, não encontrava alguém que fosse digno de se escrever sobre. Um alguém que acorda, trabalha, volta para casa. A sexualidade é nula, tem um cargo baixo, é motivo de muita chacota, mas ele também não se importa”, diz o ator.

Outro diálogo com os dias atuais está nos desejos de consumo e status social. Akaki precisa comprar um capote novo, como é dito a ele. Remendar o “trapo” que vestia não o posicionaria bem diante das pessoas. Sem dinheiro, ele cria uma série de privações em sua vida já regrada para economizar algumas moedas e adquirir uma nova peça para se cobrir e se proteger do frio.

“Para Akaki, o capote é uma necessidade, mas ele é seduzido pelo desejo de ter um casaco novo e, com isso, talvez, alcançar um lugar diferenciado. Sem o capote novo é como se ele estivesse nu diante da sociedade. É preciso se vestir e, com isso, ele parte em busca desse manto da sociedade burguesa”, conta a diretora Yara de Novaes. “É uma novela social que cria diversas identificações com o que se vive hoje, mostrando que esse conto ainda é necessário para nos fazer olhar para o que a gente finge que não vê”, completa.

Como nova camada de reflexão, o texto opera uma transformação na vida de Akaki quando ele, finalmente, adquire seu objeto de desejo. “É como se ele passasse por um portal social. Com um capote novo, ele deixa de ser um fantasma e se torna um sujeito, alguém que, agora, é respeitado e tem o direito à palavra”, aponta Rodolfo.