Entrevista

Um cinema de permanência

“Sou da geração que sempre reconheceu o ‘Disco do Tênis’ como uma joia e tem consciência de ele ser um ponto fora da curva

Por Raphael Vidigal
Publicado em 25 de junho de 2017 | 03:00
 
 
“Batalho para chegar o dia em que eu produza tanto filmes dirigidos por mulheres quanto homens” TÂNIA REGO/DIVULGAÇÃO

Vania Catani - produtora cinematográfica e diretora

Nascida em Montes Claros, ela se mudou há 17 anos para o Rio de Janeiro, onde fundou sua própria produtora, a Bananeira Filmes. No currículo, obras dirigidas por Selton Mello e Matheus Nachtergaele, como “O Palhaço” e “A Festa da Menina Morta”. Ao Magazine a produtora cinematográfica e diretora fala da estreia na direção com o documentário dedicado a disco de Lô Borges e da pauta feminista no cinema.

Qual sua relação com a música do Lô Borges e por que você decidiu dedicar um documentário ao disco dele de 1972, conhecido como “Disco do Tênis”?

Quando o Lô lançou esse disco, eu ainda era criança, mas ouvi muito na adolescência. Sou dessa geração que sempre reconheceu esse disco como uma joia, que tinha consciência, desde o início, de que ele era um ponto fora da curva, porque o Lô também era um adolescente quando compôs as músicas, e isso criava uma identificação muito forte. Então, eu fiquei sabendo que ele iria tocar as músicas desse álbum pela primeira vez em um show e me organizei para assistir aqui, no Rio de Janeiro. Quando ele veio ao Circo Voador, fiquei absolutamente maravilhada. Foi muito tocante. Pude constatar isso que te falei acima. Havia uma mistura de gerações, pessoas da minha idade e vários adolescentes. Porque, embora muitas coisas mudem, outras permanecem. Todo mundo que já foi adolescente sabe como funciona. É uma fase que traz questões, angústias, descobertas. Enfim, conheço o Lô desde a época que morei em Belo Horizonte, fomos vizinhos. Apesar disso, nem pensei em ir ao camarim. Estava tão feliz com o que eu tinha visto que fui direto para casa curtir aquele instante. Na hora do show, tive a ideia de que aquilo valia um documentário, centrado nessa história do álbum, que traz todo um contexto de contracultura. Escrevi isso no meu Facebook, e o próprio Lô comentou, veio falar comigo e logo comprou a ideia. Nunca dirigi um filme, e essa vai ser a minha estreia. Então, chamei um diretor muito sensível que conheço, um rapaz jovem, que deve ter uns 30 anos, com o qual me dou muito bem, que é o Rodrigo de Oliveira. E ele, inclusive, está em outro projeto comigo, mas nesse vou atuar apenas como produtora, que é um documentário sobre o Paulo José, esse ator extraordinário que completou 80 anos agora em 2017.

Como está a previsão de estreia para o documentário referente a Lô Borges e qual será a estrutura do filme?

É um embrião ainda, está bem no começo. Na verdade, contei essa história à paisana, e ela se espalhou. Já sabemos que não será biográfico nem vai pretender abarcar toda a vida dele. Vamos partir desse ano simbólico de 1972 e buscar uma concepção afetiva, poética, é uma homenagem de fãs. O conceito é esse, mas ainda vamos procurar as pessoas para participar das entrevistas e definir todos os outros detalhes, que são muitos. E será um longa-metragem.

Você acaba de vir a BH para divulgar “O Filme da Minha Vida”, sua mais recente produção, que tem direção de Selton Mello. O que te atraiu a participar do projeto?

O filme é lindo. E é o maior que eu já produzi, não em termos de riqueza artística, mas de estrutura mesmo, produção, recursos. Estamos começando agora com essas ações de divulgação, e o resultado tem sido positivo. É uma expectativa grande porque o cenário mudou muito desde que lançamos “O Palhaço”, que foi um sucesso, em 2011. Minha parceria com o Selton é antiga, essa já é a terceira. Além das que citei, trabalhamos juntos no primeiro longa-metragem que ele dirigiu, o “Feliz Natal”, de 2008. A gente se dá muito bem. Nesse filme a presença lírica, de poesia e ternura, é marcante, e estamos precisando desses tipos de sentimentos. Esse filme é um remanso em meio ao turbilhão que vivemos. Espero que ele toque o coração das pessoas. Nosso cinema tem produzido muito a partir da estética realista. Acho importante, mas não podemos ficar só nisso. O momento que o país atravessa é muito árido, duro. Nos conectarmos com um tempo de beleza a partir dessa história tão cálida que conta o filme é muito confortador, e até necessário, eu diria.

O que te estimula a produzir um filme?

O talento. Às vezes vou atrás de pessoas que acho interessantes, mostro ideias, ouço muito, recebo muitas coisas. Procuro sempre um cinema verdadeiro, original, feito com a alma. Já errei e já acertei, produzi filmes bons e medianos. Todos os filmes nascem para serem bonitos, como todas as crianças, mas às vezes não acontece. Levo essa profissão como uma pessoa vocacionada. O que guia minhas escolhas é o que toca meu coração. As parcerias acontecem sempre de forma natural, tem que ser assim. Agora, por exemplo, estou produzindo o segundo filme da Anita Rocha da Silveira. O primeiro foi o “Mate-me por Favor”, de extrema sensibilidade; e em 2018 lançaremos este novo, que se chama “Medusa”.

Que importância tem o fato de você ser uma mulher produtora no atual cenário?

É fundamental. Eu sou feminista desde criança. Pari um filho e, embora ele já esteja grande, procuro educá-lo todos os dias para essa questão. As pessoas não percebem que são machistas, acham mesmo que só tem a ver com estupro e assassinato. Eu tenho aceito todo tipo de convite para participar de palestras, prêmios, festivais, até de maneira obsessiva. Não se presta atenção no que as mulheres falam, ainda existe essa dificuldade. A minha própria filmografia é desequilibrada nesse sentido, e batalho para que chegue um dia em que eu tenha produzido tanto filmes dirigidos e protagonizados por mulheres quanto por homens. Tenho o maior orgulho de trabalhar com diretoras como a Antonia Pellegrino, a Flávia Neves, a Lucrécia Marcel, que é argentina, a própria Anita. Para mim, uma mulher, vinda do norte de Minas, de origem pobre, esse levante é comovente.

Quando você decidiu que queria trabalhar com cinema?

Na minha cidade, em Montes Claros, o domingo era uma festa porque era dia de ir ao cinema, era uma atração, sempre fui fascinada. Quando o meu conterrâneo Carlos Alberto Prates Correia filmou o “Cabaret Mineiro” na cidade, na década de 80, eu ficava no set o tempo todo atrás dele. Comecei nesse ramo de produção com shows de rock, até que em 1997 o Pedro Bial me convidou para produzir a série “Os Nomes do Rosa” e o longa “Outras Estórias”, ambos sobre Guimarães Rosa, dirigidos por ele, e daí foi a minha entrada para esse portal mágico. Não parei mais. É muito gratificante ter chegado até aqui, mas tenho a plena consciência de que, para isso acontecer, muita gente teve que batalhar demais antes. O cinema brasileiro tem mais de cem anos. Tenho vontade de ter um programa de TV para falar só sobre isso, resgatar nossos tesouros das décadas de 60 e 70.

De que maneira Minas Gerais está presente em sua trajetória?

O tempo todo. Na minha comida, na música. Adoro Carlos Drummond de Andrade, mas me identifico mais com o universo de Guimarães Rosa. Sou uma sertaneja, catrumana, trago essa rusticidade na alma. Na minha casa tem queijo, cachaça, pequi. Falo da minha raiz o tempo inteiro. Nessas horas vale aquele clichê, que a gente sai de Minas, mas Minas não sai da gente. O filme que produzi anterior a esse do Selton, o “Redemoinho”, tem direção do José Luiz Villamarim e é baseado num livro do Luiz Ruffato, e os dois são mineiros, filmamos em Cataguases. Eu espero que esses filmes permaneçam como Minas Gerais em mim.