Música

Zé ninguém? Zé Manoel!

Ainda pouco conhecido, músico pernambucano desponta como um dos maiores talentos da MPB contemporânea

Por Thiago Pereira
Publicado em 09 de janeiro de 2017 | 03:00
 
 
Seleção. “Delírio de um Romance a Céu Aberto” compila canções assinadas e lançadas por Zé Manoel em seus discos anteriores JOIA MODERNA / DIVULGAÇÃO

Se podemos pensar que a discrição, muitas vezes, é sinônimo de delicadeza, esta é a palavra que conecta a obra de Zé Manoel e sua própria presença na música popular brasileira contemporânea. Mas é bem possível que o ano de 2017 altere este status para sempre.

Se houverem mudanças (e torcemos para isso), a culpa será de “Delírio de Um Romance a Céu Aberto – As Canções de Zé Manoel”, lançado – discretamente – pela gravadora Joia Moderna, e que, assim como quem não quer nada, pintou em muitas das listas de grandes discos do ano passado.

Justo, justíssimo. Trata-se de um tratado à delicadeza, um daqueles trabalhos raros em que o silêncio é respeitado tanto quanto o som, ideal para que certa contemplação ocupe, inspirada pelas canções, os vazios dos espaços, com Manoel conduzindo ao piano uma constelação de grandes vozes, reunidas em torno de sua obra.

“Fiquei surpreso com a visibilidade e a repercussão do disco”, assume Manoel. “A ideia central era, através de vozes mais conhecidas, projetar essas canções para um público que não me conhecia”, diz o músico, que parece um típico caso de tesouro reconhecido por seus pares, mas ainda não pilhado por audiências maiores.

A ideia de fazer uma espécie de compilação de sua obra partiu de Zé Pedro, diretor da Joia Moderna, e do produtor Thiago Marques Luiz. “Eles tinham um projeto de cantoras interpretando autores consagrados, como ‘A Voz da Mulher na Obra de Taiguara’, e tiveram vontade de abrir essa ideia para compositores mais novos. Entrei nessa, mas sugerindo vozes masculinas também”, explica Manoel.

Ayrton Montarroyos, Tiganá Santana e Arthur Nogueira desfilam seus registros no disco; mas logo nas primeiras audições fica claro que o domínio é das mulheres. E que mulheres: Fafá de Belém (que abre o disco com “Aconteceu Outra Vez”), Ná Ozetti (inesquecível em “Volta Pra Casa”), Elba Ramalho (historicamente um dos faros mais afiados para descobrir novos compositores no Brasil), Juçara Marçal e Amelinha – ou seja, alguns dos gogós mais abençoados do país – estão ali, atestando a qualidade da obra de Manoel. “Gosto de ser cantado por vozes femininas, desde o início das minhas ideias musicais compus pensando nelas”.

Parcerias. No meio deste rol, dois nomes merecem destaque na vida e obra de Manoel, passado e futuro. Primeiramente, Ana Carolina, que descobriu na belíssima “Canção e Silêncio” uma novidade para seu repertório, já há alguns anos. “Eu tinha feito um show de lançamento do disco anterior (do álbum de mesmo título, de 2015) que repercutiu bastante. Isso de alguma forma chegou até a Ana, que me ligou. Gostou da música e a partir daí nos aproximamos bastante. Ela também lançou uma parceria nossa, feita com o Guilliard Pereira em disco, ‘Quer Saber?’”. A versão de Ana para “Canção e Silêncio” ganha registro em estúdio no disco de 2016. “Ficou lindo”, elogia o autor.

Já um nome-chave para entender um possível caminho para o futuro do músico é Vanessa da Matta. Inicialmente cotada para cantar no disco, depois de ouvir algumas faixas se sentiu inspirada para enviar uma letra inédita ao compositor: a faixa-título, “Delírio de um Romance a Céu Aberto”, lírica que possui as imagens bucólicas que são próximas dos dois artistas. “Me mandou por mensagem de celular. Fiquei muito emocionado, fiz a música e mandei de volta para ela. Mas no disco só eu canto, como uma forma de me apresentar. Mas essa foi uma aproximação importante e a ideia é continuar essas troca”, diz.

Colegas

Também pernambucano, erudito e dono de um dos discos de 2016 (o belíssimo “Levaguiã Terê”), o pianista Vítor Araújo foi colega de sala de Manoel na faculdade de música da Universidade Federal de Pernambuco. “O trabalho dele é genial”, elogia Manoel. “Curiosamente, nós dois abandonamos o curso antes de formar. Eu até durei um pouco mais; o Vítor saiu logo no comecinho”, se lembra, divertindo.


Origens

Na fronteira entre o pop e o erudito

Nascido em Petrolina (portanto conterrâneo de outra pérola da música brasileira, Geraldo Azevedo), Zé Manoel assume ter suas raízes populares entranhadas em suas canções, das manifestações culturais de comunidades quilombolas à beira do rio São Francisco, aos cocos e sambas de roda que o cercavam.

Escute “Água Doce”, na voz de Juçara Marçal, ou “Sol das Lavadeiras”, com Elba Ramalho, e perceba que, mais do que ouvir, você enxerga o sertão nordestino nas obras do músico. Ao mesmo tempo, é inegável o forte verniz erudito que pincela seu trabalho, que em alguns momentos se aproxima da música de câmara. “Quando estudava em Petrolina, sonhava em fazer composições eruditas, então acho que tem um pouco disso em algumas composições. Tenho fascínio. Então acredito que fico assim, meio na fronteira entre o popular e o erudito”, assume o compositor.