Entrevista

Marcelo Rubens Paiva, os 40 anos de 'Feliz Ano Velho' e a ferida que não fecha

Escritor fala de seu livro mais famoso - e que marcou sua estreia na literatura -, diz que tem um novo romance a caminho e lamenta que há quem celebre a ditadura que assassinou seu pai

Por Bruno Mateus
Publicado em 12 de abril de 2022 | 07:15
 
 
Autor de 'Feliz Ano Velho', Marcelo Rubens Paiva acabou de entregar um romance para a Companhia das Letras Foto: Rui Mendes/Divulgação

Marcelo Rubens Paiva, 62, não é do tipo que se esquece ou não se importa com datas redondas e efemérides relacionadas a seus livros. Em 2022, “Feliz Ano Velho”, primordial e mais conhecida obra de sua produtiva carreira literária, completa 40 anos. Isso, de certa forma, o aterroriza. “Caramba, como passa o tempo. Estou envelhecendo, virando um senhor. Já passei do limite da aposentadoria do INSS”, ele brinca. 

Publicado em 1982, “Feliz Ano Velho” relata o acidente que deixou o escritor tetraplégico. Em 14 de dezembro de 1979, ele foi com alguns amigos aproveitar o dia de sol em uma cachoeira às margens da rodovia dos Bandeirantes, em São Paulo. Do alto de uma pedra, gritou, empolgado, que iria procurar um tesouro e deu um pulo no estilo Tio Patinhas. O local era raso. Marcelo bateu a cabeça no fundo do lago, e um zumbido – e o desespero – invadiu seus ouvidos. Ele foi retirado da água pelos amigos, socorrido por médicos, levado ao hospital. Dali em diante, o jovem de 20 anos viu sua vida mudar radicalmente.

Autobiográfico, o romance acompanha a rotina de recuperação do escritor em meio a memórias da infância, angústias, medos, ansiedades, incertezas e descobertas próprias de um recomeço pessoal em uma cadeira de rodas, mas também expõe questões coletivas de um país controlado pela ditadura militar. “Feliz Ano Velho” é extremamente íntimo e sincero, absolutamente real.

Quarenta anos depois, Marcelo Rubens Paiva ainda não sabe ao certo os motivos que fizeram do livro, vencedor do Prêmio Jabuti, um estrondoso sucesso. “Eu me surpreendo. É um livro muito específico de uma época do Brasil, talvez de uma geração. Quando escrevi, não imaginava que teria tanto sucesso e relevância. Talvez tenha porque traz pessimismo, dúvidas sexuais e sobre a fé, e também como lidar com uma tragédia. Depois, descobri que todas as gerações têm os mesmos conflitos”, ele comenta. 

Nos cinco anos seguintes ao lançamento, “Feliz Ano Velho” foi adotado em escolas e vestibulares, ganhou novas edições e inspirou produções no teatro e no cinema. Nas adaptações, Marcelo preferiu dar poucos pitacos. Tanto eco em torno do livro gerou consequências para o autor, que acabou recusando uma proposta da Globo para transformar a obra em série de TV: “Aquilo tudo acabou me machucando. Cada vez que eu via algo sobre o livro, ficava triste, sofria, tinha crises de choro. Com o filme eu até passava mal. Ficar vendo, revendo e remoendo um dos episódios mais tristes da minha vida me cansava”. 

Há cerca cinco anos, no entanto, Marcelo Rubens Paiva acabou mudando de ideia e vendeu os direitos da obra para as produtoras Diane Maia e Joana Mariani. O interesse surgiu porque o formato mudou: a proposta é retratar a história de um jovem cadeirante nos dias atuais, com todos os debates contemporâneos e uma narrativa que vai além da figura de Marcelo, que conta ter participado pouco do roteiro e não sabe em que pé está a empreitada.

“Eu topei na hora. Vou ver um cadeirante, mas não vai ser o Marcelo. A Laís Bodanzky entrou para o projeto, mas quem está tocando isso agora é a produtora (Mar Filmes)”.

Dois mil e vinte e dois: novos projetos e velhas feridas

Depois de “Feliz Ano Velho”, vieram “Blecaute” (1986) e mais de uma dezena de livros, textos para peças teatrais, roteiros para cinema e séries, palestras, viagens, cursos, mestrado em teoria literária e uma respeitada trajetória editorial, que terá novidades em breve. Marcelo Rubens Paiva acaba de entregar para a Companhia das Letras um romance sobre o qual não pode falar nada além de se tratar de uma história de amor entre dois jovens de 18 anos que se reencontram três décadas depois. O livro foi escrito durante o isolamento causado pela Covid e deve ser lançado em agosto.

Marcelo Rubens Paiva tem escrito muito na pandemia, tanto que já começou outro romance. Sem pressa, ele diz, e também sem muita sistemática. Durante as manhãs, ele e os filhos Sebastião e Joaquim se ocupam de natação, aula de música, terapia, fisioterapia, dentista e coisas próprias da vida de um pai e duas crianças, de 6 e 8 anos. À tarde, os meninos vão para a escola. “À noite, eles já fazem as lições sozinhos, desenham, então estou tendo mais tempo livre. Quero ver se recupero minha vida social”, conta.

Em 2022, é provável que o jornalista fale muito sobre os 40 anos de “Feliz Ano Velho”. Vira e mexe, Marcelo também revisita memórias traumáticas ao falar do pai, Rubens Paiva, torturado, assassinado e desaparecido durante a ditadura militar. Perseguido, o ex-deputado teve o mandato cassado em 1964, se exilou na então Iugoslávia e na França. Em janeiro de 1971, militares o prenderam em casa. Rubens Paiva saiu de terno e gravata, dirigindo o próprio carro. Nunca mais voltou. Ele tinha 41 anos; Marcelo, 11.

Marcelo Rubens Paiva aborda o episódio e a perda do pai em “Feliz Ano Velho” e no também autobiográfico “Ainda Estou Aqui” (2015), sobre sua relação com a mãe, Eunice Paiva, que sofria de Alzheimer. Eunice morreu em 13 de dezembro de 2018, data em que o AI-5, um dos mais brutais atos da ditadura, completou 50 anos.

“O Bolsonaro já estava eleito”, relembra, em tom de lamento, o escritor. Chefe do DOI-Codi do Rio de Janeiro na época do desaparecimento de Rubens Paiva, José Antônio Nogueira Belham está vivo, mas se recusa a falar sobre o que aconteceu naquele dia. “A mulher dele já trabalhou no gabinete de Jair Bolsonaro”, emenda o dramaturgo.

Crítico contumaz do presidente da República, o escritor se diz chocado com a eleição de 2018 e ascensão de Bolsonaro ao poder pela escolha democrática do povo brasileiro. Falar de seu pai e do atual governo não é fácil para Marcelo Rubens Paiva. No fim da entrevista, ele parece aéreo, preso em lembranças, e as palavras saem mais truncadas, como se atropeladas por raiva e desconforto. Por fim, após um suspiro, ele retoma a frase, a última dita naquela tarde de sexta-feira, 1º de abril, data em que o golpe de 1964 completou 58 anos: “Honestamente, com a eleição de Bolsonaro eu me senti e me sinto traído, inclusive por amigos e familiares que votaram nele, um cara que fala aberrações, defende a ditadura, o AI-5, a tortura. Foi e é muito doloroso, uma coisa assustadora”.