Chegou finalmente o dia em que os cinemas passam a ganhar tons em cor-de-rosa, com a estreia do primeiro filme em live action protagonizado pela boneca mais famosa do mundo. Esse pink que se multiplicará em diversos produtos mundo afora em referência à sexagenária Barbie não é a única na paleta usada pela diretora Greta Gerwig.
Fiel ao seu cinema de empoderamento feminino, já visto em “Ladybird: A Hora de Voar” e “Adoráveis Mulheres”, ela consegue incutir um pouco de cinza sem depreciar a personagem que, por muitos anos, virou sinônimo de um idealizado padrão de mulher perfeita. A Barbie de Greta é como o ofuscante branco que encerra o filme, criando uma sensação de apaziguamento.
O roteiro escrito pela diretora em parceria com o marido Noah Baumbach (de “A Lula e a Baleia” e “História de um Casamento”) chama a atenção principalmente por não colocar a boneca vivida por Margot Robbie – uma escolha impressionantemente acertada para o papel – como uma heroína envolvida numa trama de ação ou rodeá-la de humor, como é comum nesse tipo de adaptação.
Embora não abra mão da comicidade e do mistério, eles dizem respeito menos a outro universo para onde Barbie seria deslocada e mais sobre um desconforto interior da personagem. O filme faz esse movimento “para dentro”, após ela acordar num belo dia com sentimentos de depressão que se opõem ao mundo fake de Barbielândia.
Esse “acordar” certamente receberá análises mais aprofundadas por especialistas em sexualidade e comportamento, mas vale dizer que “Barbie” não propõe outra coisa que não uma vida comum – num sentido mais amplo, evitando ser padrão para qualquer coisa, sem se tornar exemplo de mulher independente e, também, na própria narrativa.
Ainda que não afugente os fãs da boneca, o longa-metragem pode ser definido como um bem-humorado drama sobre relacionamentos, não poupando críticas à própria Barbie na maneira como conduz o seu “namoro” com Ken (Ryan Gosling), numa inversão com o patriarcado do mundo real. Essa troca de percepção é um dos pontos altos do enredo.
O filme não é muito diferente, portanto, dos trabalhos anteriores da dupla Greta e Baumbach, paulatinamente se concentrando nas relações, a partir dos efeitos gerados por paixões não correspondidas, pelas expectativas frustradas e pelo desgaste natural da convivência. No final das contas, há uma empatia por todos os personagens, não só pela protagonista.
Como em “Frances Ha”, que Baumbach dirigiu e Greta protagonizou, Barbie não faz uma jornada em que alcança o seu objetivo de vida ou mesmo tem a realização de um grande amor (spoiler: não há nenhum beijinho em todo o filme). “Barbie” fala, na verdade, de dor. Ou melhor, de várias dores, de crescer, de ser relacionar e de se entender como gente.
Um tom satírico também se faz presente, em várias citações ao cinema, ao showbizz e à própria Mattel – talvez muita gente não soubesse que a criadora da boneca, Ruth Handler, teve problemas com o Fisco. Sem falar que os atuais homens à frente da empresa, liderados por Will Ferrell, parecem ter saído da série pastelão “Keystone Cops”, da época do cinema mudo.
Também vemos uma referência explícita à sequência inicial de “2001 – Uma Odisseia no Espaço”, quando os primatas são substituídos por crianças cuidando de bonecas-bebês que se deparam com um monolito – na verdade, uma Barbie, que, no final da década de 1950, mostrou que as bonecas não precisariam ter a função de preparar futuras mamães.