Não é falsa modéstia. A escritora mineira (de Guarani) Nara Vidal afiança: de fato não esperava que seu romance de estreia, “Sorte” (editora Moinhos, 100 páginas), fosse responder pelo terceiro lugar no Oceanos 2019 – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa. O resultado foi revelado no dia 5 deste mês, que se encerra hoje. “Fiquei muito surpresa, perplexa. Quando saiu a lista dos semifinalistas, vi que havia ali autores que admiro demais. Então, imagina, só ter o meu nome ali, elencado, junto deles, já tinha me deixado impactada. Mesmo porque a minha editora, a Moinhos, é pequena, então você está concorrendo com grandes casas, que fazem o livro circular, que têm capital para isso”, pondera ela, que está radicada em Turnbridge Wells, na Inglaterra, desde 2001.
“Sorte” foi estruturado sobre acontecimentos históricos, embora a trama seja ficcional, com algumas licenças em relação aos fatos reais. Caso das “casas de Madalenas”, um triste capítulo da Igreja Católica registrado na Irlanda, que aqui é deslocado para o Brasil. São temas áridos, sofridos, como o preconceito (o racismo, de forma particular). Mas é também uma obra sobre a amizade entre duas mulheres. Em entrevista ao Magazine, a autora discorreu mais sobre a obra, além de falar sobre outros assuntos em voga.
Para quem ainda não leu a obra, gostaria que condensasse a trama com suas próprias palavras.
Esta é uma tarefa difícil, porque o livro fala de aspectos que se desdobram em muitos e que dão pano para manga. Temas muito ricos em debates, polêmicas, que geram discussões históricas, morais, sociais. Mas diria que é uma história de deslocamento. De pessoas fugindo de uma condição miserável, que vão atrás de um "Eldorado", com a expectativa de encontrar um lugar fantástico. No caso, o Brasil (aqui, apresentado como uma ilha). Mas, chegando, a realidade é outra. Irlandeses como a família Cunningham, que aportam em 1827 e vão morar no Catete, onde as mulheres vão trabalhar na quinta de uma família portuguesa, que, por sua vez, tem vários escravos – entre eles, a Mariava, que fica muito amiga da irlandesa Margareth Cunningham.
A personagem Margareth foi criada pensando-se nas mulheres solteiras que, ao engravidarem, eram obrigadas a ter seus filhos nas chamadas "casas de Madalena", certo?
Sim, ela chega ao Brasil grávida de um médico que conhece no navio e sobre quem ela só sabe que está vindo para uma missão num rio (cujo nome ela nem sequer sabe). A família se escandaliza, a manda para um convento, e, lá, ela testemunha horrores impetrados por meio do poder da Igreja Católica, como os sequestros de bebês. E a virada importante acontece quando ela fica amiga de Mariava, escrava. Ao visitar Margareth, já no convento, esta lhe pede que cuide do filho dela, custe o que acontecer. Mariava, por sua vez, também engravida na história. E num avanço temporal, os dois meninos, Mané e Ciço, filhos dessas mulheres e criados como irmãos, se tornam homens, mas marginais. Um, considerado louco, e o outro, entre aspas, aleijado. Para mim, os dois representam essas pessoas que vemos principalmente em cidades pequenas, vagando nas ruas, e cujas origens foram apagadas. Por serem pobres, o passado delas não interessa a ninguém. Na minha cidade, por exemplo, há algumas figuras assim, a gente habitualmente cresce com esses personagens.
Qual seria, para você, o tema principal a nortear a história?
Talvez a impossibilidade, ali, de as mulheres dizerem "não". A Mariava, escrava, nunca teve direito de dizer "não" para o dono da fazenda. Era violentada e acaba tendo o Cícero, ou Ciço. Para mim, este é um dos temas: as mulheres caladas, “caídas”, “amaldiçoadas” – no caso, pela sociedade patriarcal. O racismo também é uma questão bastante presente. A amizade entre as duas mulheres escandaliza outros personagens, principalmente as freiras, por Mariava ser preta. Este ponto é importante: no final, o racismo é ilustrado no relacionamento dos irmãos. Ninguém entende o motivo de um ser branco, e outro, não. Outro tema é a opressão da Igreja Católica.
Sobre racismo, temos visto mundo afora, nos dias atuais, episódios lamentáveis, como nos campos de futebol. Gostaria que falasse sobre esse tema.
Veja, é uma questão muito difícil de falar, vou tentar me ater a alguns pontos. Estou, inclusive, escrevendo um livro que fala sobre a busca pela eugenia... no Brasil da década de 30! Você imagina, pais, avós, eles viram isso acontecer! É muito impressionante pensar que há tão pouco tempo houve uma tentativa de termos aqui, no Brasil, uma “raça pura”. Pensar que entenderam não só que era possível, mas que era aceitável! Há gente que ainda está viva e que testemunhou esses fatos, me choca muito. Mesmo constatando que o mundo tem falado mais sobre racismo, debatido, não é o suficiente. O obscurantismo é imenso, a falta de informação, a ignorância das pessoas, essa nostalgia doentia por um passado que só beneficia a elite. Hoje, assistimos a vários episódios pelo mundo que ilustram (que o racismo perdura). Então, o debate é importante, mas, mais que tudo, é preciso que se denuncie. Racismo é crime. Não tem: “Ah, mas falou de brincadeira”. Não! Tem que levar às ultimas consequências. Quem é racista é criminoso, não pode haver tolerância. As piadinhas que já foram aceitáveis, definitivamente, não são mais!
Vozes de quem não tem a fala permitida
A palavra “sorte” no título do livro de Nara Vidal, que faturou o terceiro lugar no prêmio Oceanos, não está atrelada a seu uso mais frequente (o de “boa sorte”), e sim a destino, ventura, de uma maneira mais ampla. E se o tema são os caminhos a que a vida nos leva, a escrava Mariava desponta como uma das personagens mais importantes.
“É por meio dela que a história dá uma guinada e os personagens acabam tendo a sorte que têm. Sorte, aqui, entendida como destino. Que sorte teve esse povo, essas pessoas? Então, para mim, a Mariava tem esse simbolismo, significa essas mulheres que foram caladas. Mais ainda que a Margareth, pois essa aprende a ler, ela fala no livro. Embora também seja uma mulher oprimida e reprimida, pela Igreja, família; ela fala, ela pensa, ela põe os pensamentos para fora. A Mariava, é como se botassem a mão na boca dela, ela não pode dizer nada. Ora, se ela não é vista como gente, por que ela teria uma voz? Mas ela é uma personagem muito rica, que vai morar com os índios, depois começa a delirar, as pessoas acham que é louca, vira uma indigente. É uma pessoa de muita força”, frisa Nara.
A escritora lembra que, em muitos pontos do país, como na sua própria cidade, muitas pessoas que são descendentes de europeus têm orgulho dessa característica. “Mas essas pessoas (referindo-se aos escravos), delas foi tirada toda identidade. Não tinham documento, história! Vieram e foram massacradas. Essa valorização europeia ainda ocorre no Brasil de forma impressionante. E a história acaba sendo escrita por pessoas da elite. Os pobres, os que se tornaram pobres, não puderam contar a história deles. Você imagina quanta história, quando conhecimento nos foi privado, por conta dessa relação de poder? Ainda estamos capengando muito”, analisa.
Nara se mudou para a Inglaterra logo após o ataque às Torres Gêmeas, em Nova York. Lá, fez mestrado em artes e herança cultural e, hoje, além de escrever, tem uma livraria online, na qual comercializa livros de literatura contemporânea, brasileira.
"São obras geralmente de editoras independentes, pequenas, que, sem algumas redes, não teriam muita divulgação. Não é um negócio, é mais uma vitrine. Sempre faço a curadoria com muito cuidado, e tenho agora o Clube de Tradução, uma parceria com a College London, que consiste basicamente numa seleção de contos, que a gente pega e faz a tradução. Daí, a gente se encontra uma vez por mês na universidade para debater esses textos. Já preparamos uma antologia bilíngue, e a ideia é não parar na primeira, e fazer com poesia também. O propósito é divulgar a literatura brasileira na Europa o máximo possível”, finaliza.
Conquista
O Oceanos também premiou Djaimilia Pereira de Almeida, com “Luanda, Lisboa, Paraíso”, em primeiro lugar, e Dulce Maria Cardoso, com “Eliete – A vida normal”, em segundo.