Por um desses acasos do destino, Belo Horizonte foi escolhida para marcar uma data importante na vida do ator Alexandre Borges. A subida ao palco do Sesc Palladium, nesta sexta-feira, para a primeira apresentação de “Esperando Godot” na temporada, se dá em um ano em que o ator completa três décadas de um “divisor de águas” na sua carreira.
Foi em 1993 que ele ficou frente a frente com Zé Celso Martinez Corrêa, um dos grandes diretores do teatro brasileiro, o mesmo nome por trás de “Esperando Godot”. A felicidade por esse retorno às origens, iniciado no ano passado, é evidente na fala de Borges. “É muito importante para mim, 30 anos depois, estar de novo sob a direção dele e neste clássico do teatro mundial”, assinala.
Residente em São Paulo, o ator lembra que tinha acabado de retornar de viagem com o grupo Boi Voador – com o qual esteve diversas vezes na capital mineira, apresentando, entre outras, a montagem de “Corpo de Baile”, a partir de texto de Guimarães Rosa – quando recebeu um inesperado recado: Zé Celso queria marcar uma conversa com ele.
“Já conhecia o Zé Celso, sabia da importância dele no teatro. Encontrei-me com ele e recebi o convite para participar da peça ‘Hamlet’, que marcaria a reabertura oficial do Teatro Oficina”, recorda. Na pele do tio traidor do personagem, Cláudio, Borges participou de um momento histórico, ao trabalhar numa casa que foi incendiada pela ditadura.
“O teatro ficou muitos anos fechado e depois foi reestruturado por Lina Bo Bardi, tornando-se uma referência mundial pela beleza e pelo inusitado de sua arquitetura, trazendo uma pista tipo um sambódromo e três andares de plateia, em que nós nos apresentamos apenas para uma linha térrea. Foi feito muito inspirado no teatro grego”, registra.
Três décadas depois, Borges – que se dedicaria mais à televisão e ao cinema – está de volta a uma peça igualmente icônica, concebida por Samuel Beckett, um dos autores mais celebrados do teatro moderno. “É um desafio para qualquer ator. Cada um tem a sua visão do que é o Beckett, do que é ‘Esperando Godot’, uma peça que é montada desde a formatura de escola de teatro aos grandes atores mundiais”, disse.
O ator destaca que a peça é fruto do pós-guerra, em que Beckett quis mostrar a situação absurda da humanidade, com desesperança, fome e desemprego. “O mundo vive, ciclicamente, nesses períodos. Foi uma bela escolha do Zé querer remontar a peça. O tema é atual, a gente realmente está passando por um momento muito difícil, ainda mais vindo de uma pandemia”, explica.
A peça tem três horas e meia de duração e será apresentada pela primeira vez em um palco italiano (o mais usado nos teatros). A estreia ocorreu no primeiro semestre de 2022 e depois sofreu um hiato, devido aos compromissos de Borges com a TV e à encenação de “Fausto”. O retorno se dá exatamente em Belo Horizonte, a partir de um convite do Palladium.
Será a primeira vez que a montagem sairá de São Paulo. “Já tínhamos o projeto de passar por várias cidades, incluindo aqui. Mas o patrocínio não veio, e a gente já estava desistindo quando nos procuraram, dizendo que tinha uma pauta (data) para nós. Então resolvemos vir, sem patrocínio, dependendo de o público chegar. O importante é retomar a peça”, frisa Marcelo Drummond, que divide a cena com Borges.
Casado com Zé Celso, Drummond conta que “Esperando Godot” é uma peça atípica do Teatro Oficina, porque a companhia “trabalha sempre com muita gente, com coro musical e banda”. “Geralmente é uma equipe de mais de 60 pessoas. E o 'Godot' são cinco atores, algo bem diferente do que estamos habituados", diz o ator.
Na terça-feira, o elenco fez o reconhecimento do espaço, enquanto técnicos montavam a estrutura de palco. Hoje deverá ocorrer o primeiro ensaio geral, na nova configuração, com a presença de Zé Celso. “O Palladium é grande, e já estamos fazendo as adaptações. A gente ainda nem sabe como o Zé vai querer. Pode ser que ele chegue e mude tudo”, diverte-se Drummond.
Um dos aspectos que Alexandre Borges mais chama a atenção na peça é a abordagem da solidão humana. “Somos rodeados de pessoas, mas a solidão é inerente. Daí vem a esperança de que algo aconteça, de que alguém que irá nos tirar de um estado que a gente às vezes nem percebe, um estado adormecido, conformado”, analisa.
Se no texto de Beckett esse alívio externo nunca chega, na montagem de Zé Celso a mensagem é ainda mais clara: não temos que esperar nada. “A gente tem que fazer. É o aqui, o agora. A ação parte de nós. Somos humanos, a gente sempre espera por algo, mas é o papel da obra de arte oferecer esse momento de reflexão”, afirma Borges.
Apesar do tema introspectivo, o ator pontua que a peça é uma tragicomédia, ressaltando quão ridícula é a situação, a partir dos palhaços Vladimir (Didi) e Estragão (Gogo). “Uma das grandes duplas da comédia, tendo ‘O Gordo e o Magro’ como referência, mas são o Didi e o Gogo do Teatro Oficina, em que tentamos valorizar a ação, e não a espera”, garante.