Afinal, Capitu traiu Bentinho? A pergunta que assombra uma legião de leitores desde 1899, quando “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, foi publicado pela primeira vez, expõe que a traição não é apenas onipresente, como também engaja. Não por acaso, é um recurso narrativo usado proficuamente na literatura, no cinema, na música e na televisão, presente nos grandes clássicos e nos folhetins mais popularescos, nas colunas de fofoca e nas páginas policiais. E, claro, um assunto que também é comum naquelas conversas sobre a vida alheia, que costumam ser mais sussurradas, quase ao pé do ouvido, e aparece frequentemente nos embates mais públicos – e à flor da pele – nas redes sociais.

Contudo, apesar de embalar tantas discussões e histórias, é notável como a infidelidade segue tratada com algum simplismo. Tanto que se costuma dizer que quem ama não trai, já dando a questão por encerrada. Mas será mesmo tão simples assim? Ou será que, ainda que amasse Bentinho, Capitu poderia ter sido infiel? 

Pode até parecer paradoxal, mas a resposta é que, sim, poderia, pois amor e fidelidade nem sempre andam juntos. É o que sugere Leni de Oliveira, psicóloga clínica e coordenadora do núcleo de relacionamento e casal do Núcleo de Psicologia Seu Lugar. “Somos humanos, somos falhos e podemos trair o outro, como também podemos trair a nós mesmos”, pontua, lembrando que, mesmo em uma relação satisfatória, pode haver espaço para a traição. A psicóloga e pesquisadora Renata Borja concorda. “O ato da traição pode ter diversos motivadores, mas não implica necessariamente falta de afeto”, avalia. Mas, apesar de um fenômeno comum, a infidelidade pode ser profundamente destruidora. “Ela afeta um dos pilares que sustentam os relacionamentos, que é a confiança. Sem confiança, não há relacionamento saudável possível; o que sobra é a vigilância, e o amor pode ceder lugar para o controle e a obediência”, analisa o psicólogo Rodrigo Tavares Mendonça, especialista em psicoterapia de família e de casal.

Para alguns casais, porém, casos extraconjugais são um componente para melhorar a relação. Foi o que demonstrou uma série de cinco entrevistas, que ouviu quase 12 mil pessoas com perfis ativos na rede social Ashley Madison, que foi lançada em 2001 e é voltada principalmente para pessoas que já estão em um relacionamento e que procuram parcerias adicionais. O estudo, que buscou compreender os hábitos dos amantes durante a pandemia da Covid-19, indicou que, embora 95% dos membros da comunidade demonstrassem interesse em encontrar e manter um caso perto do início da implantação de medidas de restrição e isolamento social, apenas 1% disseram desejar o divórcio.

A traição apesar da pandemia e estimulada por ela

Segundo o relatório “Amor além do isolamento”, nesse período, no contexto das relações oficiais, 49% dos casados que frequentam o site relataram tédio; 30%, isolamento e solidão; 29%, frustração e raiva; 24%, preocupação e medo; e outros 24%, ansiedade e sobrecarga. Por outro lado, a maioria observou uma melhora de ânimo como resultado direto da infidelidade. Para se ter uma ideia, 34% dos amantes consideram empolgante ter um caso durante a pandemia, enquanto 23% deles buscam nessas relações uma opção de distração e 14% celebram a chance de conversar com alguém em situação semelhante. Nada menos que 84% associam ter um caso fora do casamento a “uma forma confiável de autocuidado”.

Entre os motivos recorrentemente citados como mobilizadores da infidelidade, destaque para o baixo interesse sexual pela parceria oficial. Quando a pesquisa foi feita, com entrevistas entre março e agosto do ano passado, 58% disseram que o cônjuge não havia iniciado nenhuma intimidade sexual desde a chegada da pandemia. Outros 39% tentaram, mas sem sucesso. De forma geral, 75% confirmaram que estão fazendo menos ou nenhum sexo com as pessoas com quem trocaram alianças.

Efeito desse descontentamento, os entrevistados, em sua maioria, têm buscado se resolver sozinhos ou com amantes. No total, 60% dos respondentes admitem que estão se masturbando com tanta ou mais frequência nesse período, e 64% estão mantendo um caso como resultado direto da falta de sexo em casa. Detalhe que a maior parte, 76%, basicamente desistiu de reacender a chama do desejo na conjugalidade. Aliás, mesmo após a pandemia, 74% dos membros da rede social reconhecem que continuarão a manter um caso.

Amor e sexualidade como elementos independentes

O aparente paradoxo exposto pela pesquisa “Amor além do isolamento”, que demonstrou que, apesar de 95% admitirem o desejo de trair, apenas 1% dos membros do site de namoro para pessoas casadas pretendem se divorciar, evidencia uma mudança na forma como as relações têm sido construídas. É o que se pode inferir das observações da psicanalista Maria Homem ao canal virtual da Casa do Saber, instituição brasileira focada em debates e disseminação do conhecimento e no acesso à cultura.

Para a pesquisadora do Núcleo Diversas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), a sociedade tem experimentado novas formatações de relacionamentos desde a criação da pílula anticoncepcional, em 1960. Em um resumo grosseiro, pode-se dizer que, a partir de toda a profusão de métodos contraceptivos, o sexo deixou de vez de estar relacionado estritamente à reprodução. Logo, a atividade sexual já não precisava estar associada ao casamento e à constituição da família. Efeito dominó, o desejo é desvinculado da ideia de amor. Portanto, nesse cenário, uma pessoa pode, sim, amar o outro com quem mantém uma relação estável e monogâmica ao mesmo tempo em que exercita seu desejo com o outro.

Não seria a primeira vez que o contrato matrimonial e o ideal de amor estariam dissociados, como lembra Leni de Oliveira. “Em outro momento histórico, o casamento tinha viés de preservação de propriedades. Nessa época, as mulheres apareciam no registro de posse dos seus maridos. Por isso, era tolerada a infidelidade masculina, mas não a feminina”, pondera, situando que essa lógica ainda permanece presente.

“A traição é uma estratégia compensatória equivocada”, diz psicóloga

E há outras diversas razões que podem explicar como a infidelidade e o amor podem andar de mãos dadas. Em alguns casos, a traição significa até mesmo uma tentativa desesperada de manutenção da relação principal, conforme expõe Renata Borja.

“Pode parecer estranho, mas sabemos que, quando a pessoa trai, ela não avalia as consequências da atitude dela. Ela está, naquele momento, tentando resolver alguma insegurança, algum problema, alguma mágoa ou buscando prazer imediato”, situa. Em quaisquer dessas situações, o comportamento não será sinônimo, necessariamente, de um desejo de romper com a parceria oficial. Na verdade, o ato pode representar “uma tentativa de fazer um ajuste emocional, mas de forma disfuncional, algo que causará potenciais prejuízos em outro momento”, complementa a psicóloga. Para ela, é importante que os casais pensem em outras estratégias para lidar com conflitos, sem que sejam evitados.

Por fim, o relatório produzido pela Ashley Madison aponta que a traição é percebida, pelos membros do site, como “uma saída para quem está num casamento sem sexo e sem orgasmos, ou até mesmo para os sexualmente ativos explorarem um lado diferente de si mesmos e acharem a confiança e realização que eles não têm em casa”. Na mesma linha, Leni de Oliveira pontua que, de fato, a infidelidade muitas vezes está associada a uma dificuldade das partes de um casal em falar sobre seus desejos. “A sexualidade ainda é vista como algo sujo, um assunto sobre o qual não se conversa e que, portanto, será vivido na marginalidade”, avalia, lembrando que parceiros podem esconder um do outro seus fetiches e inclinações por medo de julgamentos morais. “É algo que pode potencializar o risco de traição”, informa.

Como lidar com um episódio de traição

Mais que o debate sobre se amar e trair seriam mesmo conceitos antagônicos e imiscíveis, interessa à psicóloga Leni de Oliveira discutir a forma como se espera socialmente que as pessoas lidem com o fato de terem sido traídas. “A sociedade nos cobra a ter apenas uma posição diante da traição, que é sempre muito definitiva ou até mesmo agressiva”, alerta.

Uma dessas regras que ficam subentendidas impõe à pessoa infiel a obrigação de revelar o ato. “O sujeito está com essa culpa e se vê estimulado a transferir o problema também para sua parceria, como se essa atitude fosse o redimir do erro de alguma maneira. Mas nem sempre essa será a melhor saída. Em algumas situações, a depender dos acordos de cada um, pode ser mais interessante que essa pessoa busque se resolver com sua culpa, evitando causar mais transtornos ao outro”, opina.

Além disso, vistas como reações naturais, a vigilância e o ciúme despertados pela descoberta de uma situação de infidelidade podem acentuar a crise conjugal. “A perda de liberdade pode acarretar uma sensação de sufocamento. Então, o parceiro vai deixando de ser a pessoa capaz de ampliar suas possibilidades de diversão, de conhecimento, de troca e passa a ser visto como um empecilho, uma pessoa que está sendo um fator de limitação”, examina Rodrigo Tavares Mendonça.

Para se afastar desse destino, o psicólogo sugere que a pessoa traída busque se afastar de ideias preconcebidas – como ligar infidelidade a uma falta de amor ou, em relacionamentos heterossexuais, acreditar que é dever da mulher “segurar o homem”. Ao tomar distância dessas noções, será possível compreender o que aconteceu concretamente, o que desencadeou aquele comportamento e tentar entender o que deve ser aceito e o que não deve ser aceito na relação.

Diferentes acordos. O espectro do que é considerado uma traição é amplo: para alguns, o flerte virtual, mesmo sem envio de material sexual, pode ser encarado como problemático, para outros uma relação de amizade muito íntima e que é tratada como segredo por uma das partes pode ser encarada como inconveniente, por exemplo. Entre outras diversas formas de entendimento, há também aqueles que consideram o consumo de pornografia como algo que potencialmente vai desestabilizar a relação.

Diferentes pesos. Rodrigo Tavares Mendonça alerta ainda que diferentes situações implicam diferentes pesos para a traição. “Muitas pessoas vão considerar a traição sexual como um ponto mais delicado. Tem outro grupo que vai considerar como mais grave a construção de vínculo afetivo”, situa. “Há também casais que aceitam uma terceira pessoa na relação, mas consideram traição uma aproximação romântica, e também aqueles em que a construção do vínculo afetivo não vai ser considerada traição”, aponta o psicólogo, dando conta da diversidade e complexidade do tema.