Repensar

Dia do Homem: 'É urgente pensar outras masculinidades possíveis', diz estudioso

Atributos e comportamentos considerados ‘coisas de homem’ atualmente já escapam desse estereótipo

Por Da Redação
Publicado em 15 de julho de 2020 | 03:00
 
 

“Querido pai, tu me perguntaste recentemente por que afirmo ter medo de ti. Eu não soube, como de costume, o que te responder, em parte justamente pelo medo que tenho de ti, em parte porque existem tantos detalhes na justificativa desse medo, que eu não poderia reuni-los no ato de falar de modo mais ou menos coerente. (...) Porque a grandeza do tema ultrapassa de longe minha memória e meu entendimento”. As primeiras linhas do longo manuscrito escrito em 1919 por Franz Kafka e endereçado a seu pai, o comerciante Hermann Kafka, além de um deleite literário, fornece, ainda hoje, elementos que perpassam um debate contemporâneo, que vem sendo posto ao largo dos anos, que, mais recentemente, passou a se constituir de forma mais organizada e que ganha hoje, no Dia do Homem, uma oportunidade de reflexão: falamos aqui da urgência de se repensar a masculinidade de uma perspectiva mais ampla e múltipla – como defendem pesquisadores, ativistas e pessoas comuns que não se visualizam enquadradas nos rígidos padrões que ainda são usados de parâmetro para dizer o que é ou não “coisa de homem” e, mais do que isso, o que é ser homem. 

“Uma das coisas que foram ficando para trás e que precisam de uma atualização é a masculinidade, que deve ser compreendida como aquilo que uma sociedade específica em um tempo específico espera de um homem. Hoje, o mundo já não tolera um homem predatório, violento e que entende a mulher como parte de sua posse”, avalia o psicólogo colombiano Leonardo Piamonte, radicado no Brasil há 16 anos.

Responsável pelo projeto Paternidade Sem Frescura e membro do coletivo Balaio de Pais, ele indica que a pauta “masculinidades”, no plural, é, evidentemente, derivada da luta das mulheres por igualdade de gênero.

Piamonte avalia que, para ser lido socialmente como homem, indivíduos masculinos precisavam abrir mão das experiências mais sublimes do humano. “É uma ideia de performance de agressividade, de um predador sexual, de alguém que busca cada vez mais dinheiro, status, poder e que rejeita o feminino o tempo inteiro, minando demonstrações de afeto porque, afinal, ‘homens não choram’...”, aponta, acrescentando o quão prejudicial esse comportamento pode ser: “Ao não nos permitirmos acessar nossas emoções, adoecemos de várias maneiras; para provar virilidade, acabamos nos expondo a situações de risco; e, para não parecer frágeis, deixamos de ir ao médico”.

A supressão dos sentimentos, aliás, é considerada por ele como algo grave. “Não dá para enganar nossa constituição: quando algo que é reprimido, vai ser manifestado por outro caminho, como o da violência”, diz.

Para além dos estereótipos de gênero

Rapper e gestor do Lá da Favelinha, Kdu dos Anjos concorda que o “se entender homem” não deve estar condicionamento ao cumprimento de uma série de rígidos papéis de gênero. Em um ambiente familiar aconchegante e respeitoso, ele até enfrentou alguma pressão para que se fiasse a um emprego tradicional, “com carteira assinada e tudo”. “Na minha realidade periférica, uma onda que pesava muito para o meu pai era o financeiro. ‘Ser homem’ estava ligado a esse lado de ser provedor. Então ele não gostava muito, mas nunca impediu que seguisse minha carreira”, comenta.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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Com o Lá da Favelinha, Kdu organiza desfiles de moda e trabalha com um grupo de dança, ao mesmo tempo em que também se dedica ao cuidado de times de futebol, entre outras iniciativas. Ocorre que as duas primeiras tarefas nem sempre foram bem-vistas. “Ainda existe uma galera muito sexista, que fala: ‘moda é coisa de veado’. Que via a gente rebolando até o chão e dizia: ‘coisa de veado’. Falando isso como se fosse ofensa… Mas isso não é a maioria. Na maior parte das vezes, noto que há respeito pelo que a gente faz”, localiza.

Uma das principais lideranças socioculturais de Belo Horizonte, Kdu testemunha como o entendimento de uma masculinidade rígida e impregnada pela naturalização da violência é prejudicial para a comunidade. “A gente perde muitas pessoas pela ignorância e pelo machismo”, diz.

Sofrimento é muitas vezes silenciado

“A gente idealiza muito o que deve ser o homem, quais papéis deve cumprir. E isso faz que a gente busque performar. Mas o homem que a gente é não é, necessariamente, o homem que a gente mostra para o mundo. Esse, que a gente mostra, é aquele que achamos que é como queremos ser vistos por nossos amigos, por nossos pais”, examina o fotógrafo e pesquisador de masculinidades Ismael dos Anjos. “Em minha casa ou nos meios de representação cultural, o que me foi apresentado foi um padrão clássico: aquele que faz o que tem que ser feito, que aguenta o tranco, que é uma rocha. É um lugar de fechamento emocional que não me cabia. E eu me violentava tentando performar esse lugar”, completa.

O sofrimento relatado pelo fotógrafo, embora muitas vezes abafado, é comum a outro sem-número de homens. Foi o que ele próprio constatou ao se juntar à equipe que produziu o documentário “O Silêncio dos Homens”, lançado em 2019 e para o qual mais de 40 mil foram entrevistados por meio de questionários virtuais. Os resultados permitiram identificar que seis em cada dez declaram lidar com algum tipo de distúrbio emocional, como ansiedade, depressão, insônia, vício em pornografia e, em seguida, vícios em álcool, drogas, comida, apostas e jogos eletrônicos.

“Hoje, 83% das mortes por homicídios e acidentes no Brasil são de homens. Vivemos sete anos a menos que as mulheres e nos suicidamos quase quatro vezes mais. Dezessete por cento de nós lida com algum nível de dependência alcoólica. Quando sofremos um abuso sexual, demoramos em média 20 anos até contar isso para alguém. Cerca de 30% enfrentam ejaculação precoce ou disfunção erétil. Homens são 95% da população prisional no Brasil, sendo que a maior parte dos encarcerados são jovens, periféricos e com ausência de figura paterna. Negros e LGBTs sentem muito mais boa parte disso. Os homens sofrem, mas sofrem calados e sozinhos”, escreveu no texto de apresentação do filme documental Guilherme Nascimento Valadares, membro do Comitê #ElesporElas, da ONU Mulheres, e editor-chefe do blog “Papo de Homem”.

Diante desse quadro, Ismael dos Anjos é enfático: “É urgente pensar em outras masculinidades possíveis”.

Ideia de homem ideal é uma construção histórica cultural

“Masculinidades contemporâneas”. É este o nome de um curso ministrado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) que “nasceu quando percebemos que, ao falar da masculinidade hegemônica/colonial, temos a oportunidade de falar das masculinidades negras, gays, trans, asiáticas...”, informa o professor Fábio Mariano da Silva, bacharel e mestre em direito e doutor em ciência social. 

“Se a gente vai falar dessa construção histórica, há vários modelos, mas é na Idade Moderna que estabelecemos esse conceito ainda muito presente, o que acontece quando se configura o que são os espaços públicos e os privados e quando se determinam os papéis de gênero – por um lado, então, as mulheres ficam responsáveis pelas tarefas de cuidado, mais privadas, domésticas, em que é permitido a fragilidade, por outro, os homens vão se colocar no espaço público, na política e vão precisar demonstrar força, coragem e virilidade”, diz, complementando que essa ideia vai ganhar formas à luz do legado de pensadores como Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), um dos principais filósofos do iluminismo e precursor do romantismo.

Esse paradigma começa a ser questionado a partir dos anos 60, sendo tensionado pela luta do feminismo, que fala da necessidade de discutir, entre outras questões, a igualdade de gênero, examina o professor, que prepara um livro sobre o tema para a Coleção Feminismos Plurais, organizada pela filósofa Djamila Ribeiro. 

“Quem fez os homens tomarem consciência desse debate foram as mulheres. Cada vez que elas se movem, nós nos movemos também e muitos se juntam à luta, enquanto outros vão buscar a manutenção de seus privilégios”, pontua, lembrando que o estereótipo do “macho” também passa a ser pressionado diante da emergência do movimento negro e do movimento LGBT, que também vão reivindicar o reconhecimento de suas identidades – inclusive, masculinas, desbotando esse limitante entendimento histórico cultural.

Há avanços, mas também armadilhas 

“A gente começa a ver, agora, um movimento de homens que percebem que não faz sentido essa história de que precisam, para provar sua masculinidade, ser competitivos ao extremo, nunca se abrir emocionalmente, nunca entender as mulheres como potenciais parceiras…”, pontua o psicólogo Leonardo Piamonte, que vê avanços no debate sobre modelos outros de masculinidades. “Acho que é uma atualização que chega tardia, mas sem volta: o homem não vai voltar para a espingarda”, sinaliza o psicólogo. 

Piamonte também aponta armadilhas: “Noto que é muito presente um papo neo hippie, como se fosse uma moda nova, que veio depois das paleterias mexicanas ou da cerveja artesanal. E não é isso. Não estamos falando de trocar um padrão por outro, trocar um tipo de pai por outro. Não é uma cartilha, um check list. Não é para ganhar um carimbo, um certificado, uma medalha. É um convite para que nós, homens, cada um consigo mesmo, possamos rever o que nesses conceitos nos representam ou não”.

Ismael dos Anjos corrobora com a análise, visualizando progressos e poréns. Ele lembra que, por exemplo, a imagem do pai, na cultura pop, era muito associada ao homem que não sabia trocar fraldas – “uma coisa meio 'Três Solteirões e um Bebê' (filme de 2003)” –, algo que vem se transformando.

“A gente nota que há uma mudança até na representação cultural do que é esperado do homem, caso de figuras como (o ator) Rodrigo Hilbert, que passa uma ideia de machão, mas ao mesmo tempo que é sensível, que se dedica ao cuidado, que alimenta seus filhos, que cozinha…”,  exemplifica o pesquisador, ponderando que vê um problema nessa representação: “Soa como se estivéssemos falando de um super herói e, na verdade, não é isso. Não deveria ser nenhum grande evento um pai fazer o que é esperado dele”.

Paternidade precisa ser revista

Em se falando de paternidade, a propósito, o texto que abre esta reportagem – um fragmento do que, anos depois, foi transformado no livro “Carta ao Pai”, lançado no Brasil pela primeira vez em 1952 – põe a nu como um certo modelo de “ser pai” já se mostrava problemática naquele longínquo 1919. A obra, diga-se, é notadamente um honesto processo de auto-análise do célebre alemão e nunca foi entregue ao destinatário.

À época em que, por nove dias, se dedicou ao feitio da carta, Kafka tinha 36 anos, nunca havia se casado, constituído família e não possuía uma carreira – definitivamente, ainda que postumamente reconhecidamente um dos grandes autores da modernidade, ele não cumpria os pré-requisitos do ideal masculino ainda vigentes. Na obra, ao expor a mágoa em relação ao genitor, que considera autoritário, o escritor descreve exatamente como Hermann se adequava ao modelo de pai socialmente aceito naquele período: alguém que diz ter sacrificado a própria vida para prover e proteger sua família, apesar de jamais conseguir “fingir” sinais de afeto para com seus filhos.

Cumprir esse modelo de paternidade pode ter levado o comerciante a construir uma relação de silencioso conflito com o próprio filho. “Minha atividade de escritor tratava de ti, nela eu apenas me queixava daquilo que não podia me queixar junto ao teu peito”, desabafa Kafka na obra.

“Se formos pensar, ainda hoje a ideia que fazemos do que seja um bom pai estaria vinculada aos três ‘Pês’ da paternidade clássica: procriar, prover e proteger. O que vemos em tempos presentes é que nenhum deles é tão importante”, comenta Piamonte, que prossegue desmontando esse conceito: “Você não precisa procriar para ser pai, pois pode adotar ou ser o pai afetivo de uma criança. Prover, sim, é importante, mas a mulher está tão inserida no mercado de trabalho que essa função já não é mais uma função tão exclusiva do homem. E proteger... A verdade é que algumas infâncias passam sem nenhuma grande cena de proteção”. Para ele, é urgente pensar mais em ser um pai dedicado ao cuidado, que está presente nas pequenas coisas.

Um debate que cresce, se organiza e se estrutura

“Os homens precisam entender que esse movimento de revisão da masculinidade não se faz sozinho, não pode ser individualizado, pessoalizado. Às vezes, tomados por nossas próprias dores, nossas próprias mazelas, não percebemos que precisamos caminhar coletivamente”, o professor Fábio Mariano da Silva.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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“Mas, ao entender que é um desafio coletivo, superamos o discurso hegemônico e começamos a entender os direitos de outras formas de ser homem, reconhecendo as individualidades de cada um. Reconhecendo a diferença, rompemos a estrutura binária de pensamento, essa lógica do que é ou não papel exclusivo de um gênero. A gente precisa romper um padrão totalitário de gênero, que chamo de heteroterrorismo”, conclui.

É neste sentido que surgem, entre outras iniciativas, diversas rodas de conversa em que a ideia única de masculinidade e seus componentes são postos em questão. “A vantagem desse método é criar um espaço seguro para as conversas, pois fora desse lugar, ao falar de algo íntimo para amigos, pode ser que passe a sofrer com bullying. Os homens estão acostumados a falar o tempo todo, interrompem as mulheres, falam alto. Mas dificilmente estão dispostos a falar de dores, de anseios, de problemas, de crises e vários tabus se derivam desse silêncio”, indica Ismael dos Anjos.

O pesquisador avalia que essas rodas só fazem sentido quando se propõe a um diálogo com pautas feministas, antirracistas e do movimento LGBT. 

Ideia de virilidade como garantia de imunidade expõe homens a situações de risco

Mais do que um fator biológico, o conceito de imunidade é contaminado por critérios sociais e políticos que produzem proteção ou estigma, vida ou morte. É o que assinala o filósofo espanhol Paul Preciado no ensaio Aprendendo com o Vírus, publicado em março na edição espanhola do jornal “El País”.

“A partir do século XIX, com a descoberta da primeira vacina contra varíola e os experimentos de Pasteur e Koch, a noção de imunidade migrou do campo do direito e adquiriu significado médico. As democracias liberais e patriarcais-coloniais européias do século XIX constroem o ideal do indivíduo moderno não apenas como um agente econômico livre (masculino, branco, heterossexual), mas também como um corpo imune radicalmente separado que não deve nada à comunidade”, sustenta Preciado no texto analítico e opinativo.

Não por acaso, ocorre agora uma repetição da crença de que um certo entendimento de virilidade traria imunidade à doença. Esta crença era e é sensível em relação ao HIV, dado que persiste uma associação errônea entre o vírus e os homossexuais, vistos de forma muito estereotipada e feminilizada. Com o novo coronavírus, permanece a ideia de que apenas pessoas frágeis – idosos ou aqueles que possuem comorbidades – estariam em risco.

“Por razões diferentes, esses grupos são vistos, de certa forma, como ‘desvirilizados’”, pontua Benito Schmidt, professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Assim, baseados nessa crença, muitos homens acabam se expondo mais a situações de risco, dispensando uso de preservativos ou, no atual contexto, de máscara facial.