O desejo de aceitar os cabelos brancos já vinha de algum tempo, quando, no aniversário de 49 anos, a escritora e produtora de conteúdo digital Cris Guerra decidiu dar fim aos mensais procedimentos de coloração capilar. Afinal, aos poucos, foi notando que não fazia sentido e em nada agregava à sua autoestima a luta contra os grisalhos. Para ela, pareceu melhor baixar a guarda e se aproximar, sem medo, do próprio e natural envelhecimento. Agora, ostentando fios alvos e a dois meses de chegar aos 50, ela diz se sentir confortável em si mesma e, principalmente, garante: “Não troco os meus cabelos brancos pelos meus 15 anos”.
Mas, mesmo bem-resolvida, a mulher que há muitos anos fez as pazes com sua autoimagem, como ela mesma se define, admite que não foi fácil enfrentar a transição e se encarar no espelho depois de tantos anos tingindo a cabeleira – sem nem mesmo pensar muito sobre aquela rotina. “Em setembro do ano passado, algumas semanas depois do meu aniversário, fiz um corte quase máquina 2, bem curtinho mesmo. Foi uma decisão que vinha trabalhando comigo mesma quase dois meses antes, quando comecei a falar mais sobre questões do amadurecimento e, consequentemente, comecei a refletir mais sobre o tema”, recorda. “Eu já tinha essa vontade, porque tenho grisalhos desde nova, e pintar o cabelo, embora eu gostasse da cor, me incomodava, porque a tintura preta, que eu usava, mancha muito a pele e exige uma série de cuidados”, diz. O tempo gestando a ideia foi necessário para se acostumar com as madeixas naturais, contrariando o que culturalmente se esperava dela: a rejeição e a tentativa de retardar, o máximo possível, a chegada de uma estética do envelhecer.
Cris não está sozinha: desde a adoção do novo visual, passou a receber mensagens de seguidoras que também desejavam e, encontrando ressonância na postura da escritora, decidiram assumir os seus grisalhos. E ela mesma, na verdade, já vinha observando como mais e mais mulheres desfilavam orgulhosamente com seus fios alvos. Tendência que hair stylists confirmam ter crescido nos últimos anos, como assegura Daniela Ribeiro, cabeleireira e sócia do Tif’s: “Noto que, de uns cinco anos para cá, vem crescendo a demanda por tratamento específico para cabelos brancos. Muitas estão se sentindo mais seguras, entendem que deixar de tingir não tem nada a ver com desleixo e que elas não precisam se adequar aos padrões de beleza que são esperados”. Para a empresária, ajuda a explicar o fenômeno um “zeitgeist” (palavra alemã que tem significado próximo à expressão “espírito do tempo”) catapultado pelos debates feministas, que foram popularizados em certos estratos da sociedade.
A pesquisadora Patrícia Catarina, terapeuta ocupacional especializada em saúde mental clínica e mestre em gerontologia social pelo Instituto Superior Bissaya Barreto, de Coimbra, também tem percebido um número maior de mulheres com cabelos brancos nas ruas. Morando em Portugal, que já avança no processo de reabertura comercial graças à bem-sucedida política de enfrentamento ds Covid-10, ela supõe que o período em quarentena, com salões e clínicas de estética fechados, serviu para que muitas buscassem satisfazer um desejo e curiosidade antigos de se encararem com seus grisalhos naturais. “É um momento em que as coisas ficaram relativizadas, e o que posso dizer, do olhar de alguém que está atenta para as questões do envelhecimento, é que diversas mulheres decidiram continuar com os cabelos brancos mesmo depois que os salões abriram”, observa.
Patrícia pondera que não há uma regra, o certo ou o errado, e cada pessoa reagiu de uma maneira as mudanças que a pandemia provocou nas rotinas de autocuidado, quando os estabelecimentos ficaram impedidos de funcionar. “Tivemos desde aquelas que passavam rímel nos fios brancos para participar de videochamadas até aquelas que passaram por um processo de aceitação desses desejos e, ao identificarem mais mulheres que também demonstravam o mesmo ímpeto, se sentiram mais seguras para fazer a transição”.
Rotina de cuidados
A escolha, é verdade, demanda cuidados específicos. “Como a melanina sai, o cabelo fica mais poroso, mais leve e a textura fica mais frisada. Se não for bem cuidado, tende a ficar mais amarelado e perder o brilho, pois, com a cutícula mais aberta, esses fios acumulam mais resíduos e exigem procedimentos de limpeza profunda. Além disso, é recomendável o uso de filtro solar capilar, pois eles também ficam mais suscetíveis à oxidação, o que pode deixar o cabelo mais opaco”, explica Daniela Ribeiro, completando que existem diversos tratamentos ideais para valorizar o branco.
Apoio é essencial
No caso de Cris, o apoio do namorado, o empresário e designer Alexandre Braga, e da cabeleireira e visagista Petty Hegídio, que cuida há anos do visual dela, foram importantes para que tivesse coragem de dar um basta aos procedimentos de coloração artificial. “Seria mentira dizer para as pessoas não ligarem para a opinião dos outros. O que precisamos é aprender a selecionar quais dessas opiniões são realmente importantes para nós”, conta. Ao mesmo tempo, ver outras pessoas aceitando os fios brancos foi essencial. “Quando notou que eu tinha esse desejo, o meu namorado começou a me mostrar sempre que via alguma mulher assim e a me dar força”, recorda. Petty também fez defesa da ideia, e foi ela que sugeriu, para facilitar o processo de transição, que Cris fizesse um corte mais curto, evitando um efeito de “metade tingido e metade natural”.
Quando começou a ostentar o novo visual, a escritora se sentiu abraçada: em suas redes sociais, foram incontáveis os elogios; já as críticas foram apenas duas. “Fora da internet, já notei um olhar curioso e desconfiado, principalmente de alguns homens”, relata. O apoio teve papel para que mantivesse o processo, afinal, sentiu algum estranhamento no início. “De novo, quando apareci de cabelo bem curtinho, meu namorado me apoiou e já foi logo dizendo que tinha se apaixonado de novo, que eu estava elegante e essas coisas. Graças a Deus, ele é um homem que veio no modelo atualizado”, brinca.
A dificuldade em aceitar os grisalhos está diretamente relacionada à ausência de uma estética da beleza no envelhecimento, sustenta a mestre em gerontologia social Patrícia Catarina. “Somos incentivados a manter preservada a estética da juventude de forma que a ruga e o cabelo branco, principais componentes de identificação da pessoa mais velha, se tornam elementos a serem combatidos”, analisa. Conceitos cercados de preconceito, a beleza e a velhice são vistos, normalmente, como antagônicos, e, por isso, perceber o passar dos anos pode causar um abalo à autoestima. “É algo que tem um efeito profundo sobre o posicionamento da pessoa diante da vida em sociedade”, situa.
Um levantamento de 2018, feito pelo Instituto Qualibest em parceria com a farmacêutica Pfizer, demonstrou o tamanho da aversão dos brasileiros em relação à velhice: de acordo com o estudo, 92% reconhece ter medo de envelhecer. O receio do desenvolvimento de problemas de saúde e de limitações físicas e psiquícas são os principais mobilizadores do sentimento.
É diante deste cenário que Patrícia comemora e ressalta a importância de uma maior expressão de pessoas que encaram o passar do tempo de maneira mais natural e amigável. Ela pondera que “cada um deve assumir o que se sente mais confortável. Não é que a regra deve ser a adoção de cabelos brancos”. Mesmo assim, estabelece que costuma ouvir relatos de que a escolha representa um grito de liberdade.
“Infelizmente, grande parte da sociedade ainda vê a opção pela não coloração como desleixo e baixa autoestima; algumas mulheres precisam quase fazer uma dissertação sobre a escolha, precisam se justificar, mas estamos avançando”, celebra.
Beleza e envelhecimento
A necessidade de discutir mais abertamente a estética da beleza na terceira idade foi identificada por Patrícia quando, em um projeto na Universidade Sénior do Rotary Club de Tondela, trabalhando com um grupo com média etária de 75 anos, ela elogiou uma mulher por sua sensualidade e notou certa hostilidade em resposta. “Foi algo que caiu mal, notei que aquelas pessoas não aceitavam elogios, era algo que causava uma reação negativa”, pontua, acrescentando que não apenas mulheres, mas também homens têm dificuldade em aceitar o processo de envelhecimento.
Em dois anos trabalhando com a reconstrução da autoimagem, hoje a pesquisadora nota que o grupo passou a tratar de temas como a vontade de namorar e, agora, essas pessoas admitem falar da beleza de si próprias no presente – não mais como um atributo de um passado distante.
Antes que fosse feito esse retrabalho da autoestima, a pesquisadora notava que aqueles idosos se sentiam pertencentes ao estrato social da invisibilidade: “Vão sendo postos nesse lugar em que não são vistos, que se tornam o tia avó e tio avô sem sexualidade e sem beleza”. Depois, “notamos que muitos se apropriaram de suas próprias vidas, se vestiam de acordo com o seu desejo, não de acordo com o que era esperado deles, e adotaram uma postura mais ativa frente ao mundo”, examina.
O projeto, que vai virar livro com previsão de lançamento para 2021, foi premiado na categoria de projeto inovador da terceira idade em Portugal.