Exemplos inspiram. É o que diz a máxima popular sobre como atitudes, mais do que uma retórica vazia, podem ter efeito multiplicador. E é nisso que acreditam pessoas que, ao superarem o medo diante de riscos à própria vida, se doam ao outro em momentos de adversidade. E exemplos dessas atitudes não faltam. Ocasionalmente, ganham o noticiário histórias como a do indiano, que, em abril deste ano, saltou nos trilhos de um trem para salvar uma criança que havia caído no local. O vídeo que registra o momento do resgate foi vastamente compartilhado nas redes sociais. Causou furor semelhante, as imagens de profissionais da saúde que, atuando em campanha de vacinação contra a Covid-19 no extremo sul do Amapá, têm enfrentado uma realidade especialmente difícil devido à maior cheia registrada na região desde 1997. Obstáculos que não abatem os servidores do Sistema Único de Saúde (SUS).

Atos de coragem e que demonstram um evidente compromisso com a vida do outro – mesmo que esse outro seja um desconhecido –, tais episódios costumam repercutir amplamente e são motivo de reverência e de um agradecimento coletivo que desconhece fronteiras. “Percebo que esses eventos provocam uma emoção de gratidão generalizada, que não fica restrita às pessoas diretamente beneficiadas por aquele gesto. E é justo que seja assim. Porque essas ações ecoam no nosso íntimo, nos devolvem a esperança e a fé em relação à humanidade e em relação a nós mesmos. Pois, a partir de notícias como essas, temos a oportunidade de refletir sobre como também podemos nos doar ao próximo”, avalia Andrea Aguiar, gestora do bem-estar especializada em psicologia positiva. 

E, para além dessa repercussão coletiva, atos de boa vontade para com o outro trazem benefícios ao próprio benfeitor. “Geralmente, as pessoas têm a falsa impressão de que ajudar as pessoas é algo que exige muito sacrifício. Mas não é bem assim, pois quem ajuda acaba também sendo ajudado”, diz Andrea, citando estudos que indicam como pessoas que praticam atitudes de benevolência costumam ter maior sensação de bem-estar. “Esses indivíduos aprendem a redimensionar seus próprios problemas, tendem a sair de uma posição de vitimismo, olhando menos para o próprio umbigo. E, com isso, há a tendência de se tornarem mais agradecidos e mais felizes”, avalia. 

É exatamente essa sensação que a psicóloga Flávia Schayer relata sentir. O marido dela, Cristiano Gomes, foi uma das vítimas da Cervejaria Backer. Entre os efeitos do envenenamento por dietilenoglicol, o professor teve diagnóstico de falência renal irreversível. Em setembro do ano passado, ela doou um de seus rins para ele. “Eu sinto que a situação foi até mesmo mais importante para mim do que para ele. É como se essa fosse a minha missão. Então, além de ter ajudado uma pessoa que eu amo, eu me realizei como ser humano e cumpri com o que sinto ser o meu propósito de vida: doar amor”, avalia. 

O tenente Pedro Aihara, porta-voz do Corpo de Bombeiros do Estado de Minas Gerais, faz avaliação parecida. Ele acrescenta que, muitas vezes, atos entendidos como de heroísmo são resultado de reflexos instintivos. “É claro que existe um componente de altruísmo, de estar disposto a se sacrificar para salvar o outro. E é claro que, no contexto profissional, estamos treinados a não agir impulsivamente e a tomar todos os cuidados para preservar a integridade física de todos, inclusive a nossa. Mas, sem dúvida, quando estamos em operação de risco de vida, a gente não pensa ou, pelo menos, não se fixa muito aos perigos a que estamos vulneráveis. Nosso foco, nesses momentos, é salvar quem está em risco”, pontua. 

Exposição ao sofrimento 

Se, por um lado, há estudos, como no campo da psicologia positiva, que atestam efeitos positivos relacionados ao hábito de se doar ao outro, por outro, é prudente ponderar que, em alguns casos, essas pessoas podem estar mais expostas a situações extremas, e por isso podem sofrer com perturbações diversas. Por isso, além da necessidade de se precaver para minimizar os riscos à própria vida e integridade física, é importante que aqueles que se propõem a participar de projetos altruístas estejam atentos à saúde mental de si mesmos. 

Em um depoimento ao cineasta Fernando Grostein Andrade, o profissional da medicina Caio Fabio Freitas, que atua na organização não governamental Médicos Sem Fronteiras, falou sobre como a experiência em uma missão humanitária no Paquistão o afetou pessoalmente. “A libido e o sexo se tornam um problema secundário quando estamos lidando com um problema assim”, reconheceu o médico, que atendia crianças em contexto de fome e de miséria. 

“Para mim, uma discussão entre uma amiga e um namorado, um amigo e um namorado… Fica muito banal. ‘Você está dando importância para isso?’”. “E aí você acaba se tornando uma pessoa que não consegue mais conviver em sociedade se ficar pensando nisso. Eu acho que existe esse mundo praticamente paralelo e que a gente precisa ter cuidado para não mergulhar completamente nele, senão você acaba cortando seus laços”, admitiu Freitas. 

Algo assim sentiu Pedro Aihara durante o período em que prestou socorro às vítimas e aos parentes das vítimas do rompimento da barragem B1, da Vale, na mina Córrego do Feijão, em Brumadinho. A tragédia, que aconteceu no dia 25 de janeiro de 2019, deixou 270 pessoas mortas, das quais 11 continuam desaparecidas. “Desde o primeiro momento, entendemos que aquela era uma missão difícil não apenas por questões logísticas, mas também por implicar grande desafio psicológico a todos nós”, sinaliza, inteirando que “em momentos assim, é necessário se tenha clareza de seus propósitos e que se tenha clareza de que algumas coisas estão além da nossa vontade. Em outras palavras, temos que admitir que, embora o ideal fosse sempre entregar cada vítima sã e salva, isso nem sempre é possível”, avalia. 

Mas o tenente do Corpo de Bombeiros pondera que, “dependendo da forma como você se doa, mesmo que pareça que não há nada para fazer, sempre há algo que pode ser feito”. “Acredito que mesmo a maneira como conduzimos o contato com as pessoas diretamente afetadas pelo evento pode fazer a diferença, até nos piores cenários. Acredito que precisamos enxergar o tamanho da nossa contribuição, e não apenas o tamanho do problema”, assinala Aihara, que reconhece: “Algumas ocorrências podem nos afetar mais fortemente, e, atentos a isso, precisamos identificar nossos gatilhos e vulnerabilidades para nos manter firmes”. 

Andrea Aguiar faz avaliação parecida. Para ela, é fundamental que exista um equilíbrio entre o dar e o receber. “E se eu me doar em excesso, posso acabar adoecendo. É preciso saber o momento de parar, de se cuidar. É preciso exercitar a compaixão para consigo mesmo também”, pondera. 

Críticas

Surpreendeu Flávia Schayer o fato de algumas pessoas reagirem mal ao gesto dela de doar um rim a Cristiano Gomes, seu marido. “Recebi muitas mensagens de apoio e de admiração. Mas também vi críticas, algumas delas muito amargas. Pessoas, na internet, que diziam que eu estava sendo boba, que ele ficaria com o meu rim e, depois, quando melhorasse, iria arrumar outra mulher, que eu iria me arrepender”, lembra. 

Nas redes sociais, a psicóloga até tentou argumentar, explicando que a lógica em que ela operava era outra. “Notei que, para algumas pessoas, é quase inconcebível se pensar em um gesto de amor desprendido, em que não se espera nada em troca. Que, para alguns, essa postura chega a parecer ofensiva”, relata. Flávia ainda recorda que uma amiga chegou a dar um telefonema, tentando demovê-la da ideia. 

Na avaliação de Andrea Aguiar, esse tipo de reação tem relação com o individualismo exacerbado. “Nesse cenário, um gesto de generosidade chega a ser colocado como um sinal de fraqueza. É algo que fica muito sensível neste momento, em que estamos enfrentando a pandemia da Covid-19. Se a gente for pensar, medidas relativamente simples seriam suficientes para reduzir a incidência da doença. Bastaria o uso correto de máscaras e a manutenção de distanciamento, o que não acontece em boa parte por conta dessa postura de egoísmo”, critica.