O episódio mais recente foi em um encontro com a família, predominantemente branca, da mulher: Danilo Pereira, um homem preto de pele menos retinta, ouviu de um tio dela que Deus havia amaldiçoado a humanidade e separado os maus, pintados de preto, dos bons, que eram os brancos. O ato de racismo praticado sob o artifício de uma manifestação religiosa foi o estopim para que ele deixasse de visitar os lares e as reuniões de parte da família de sua companheira, Talita Luciana.

Filho de um casal inter-racial, Danilo sempre conviveu, em seus 29 anos, com situações de racismo. Cenas tão comuns e rotineiras que passaram a ser “normais”. Desde a infância, percebeu de parcela da família branca, de sua mãe, um olhar exotificante. A seu pai, preto e de pele retinta, eram dirigidas frequentes piadas de teor racista, e eram raros os almoços em que não ocorria alguma situação de constrangimento. O operador de televendas não foi educado do ponto de vista de se perceber negro e das opressões a que estava sujeito por conta da cor da sua pele e, por muito tempo, apenas se calou diante de violências simbólicas com que conviveu. Sem expectativa de que uma postura mais incisiva fosse promover mudanças, ele se tornou “pouco reativo”, preferindo apenas “cortar laços”, resigna-se.

Algo mudou desde o nascimento de Alice, de 6 anos. A menina herdou dele os fenótipos étnicos, e o casal se viu forçado a estudar e a se aprofundar mais nas questões da negritude. “Sempre tive em mente que precisava educar minha filha de forma que ela saiba não apenas resistir a essas violências, como também revidá-las”, reforça. Danilo reconhece com propriedade que o racismo vem de lugares próximos, seja pelo viés de estranhamento ou por um processo de inferiorização. Examinando passado e presente, ele é enfático: o relacionamento entre uma pessoa não negra e uma pessoa negra só será saudável quando for atravessado pela luta antirracista.

Foi por meio de constante diálogo que Talita tomou parte e passou a contribuir de alguma maneira no combate ao racismo. Nos anos de namoro e de casamento, aprendeu a identificar e a confrontar situações problemáticas. A microempreendedora de 29 anos já perdeu as contas de quantas vezes precisou reagir a práticas vexatórias contra o marido.

Lamentavelmente, agora, ela percebe que Alice vem sendo alvo do mesmo tipo de olhar caricatural que já aterrorizou Danilo: “Alguns tios chamam ela de ‘preta’, de ‘pretinha’, mas nunca pelo nome. Já as priminhas, de idade parecida, são chamadas pelo nome”, diz, observando que desde o nascimento da filha ouve comentários pejorativos. Na verdade, as “piadinhas” já vinham da época em que apresentou o rapaz como namorado: “Ali já começaram com isso de falar que nossos filhos seriam pretos, como se isso fosse ruim, como se fosse um defeito”, situa ela, que também decidiu se afastar de parte do núcleo familiar.

“Como toda relação, diversos atravessamentos internos e externos afetam as dinâmicas de um namoro ou de um casamento. Em relação a casais formados por pessoas de diferentes grupos étnicos, há questões próprias, questões raciais que estarão presentes”, sinaliza Elaine Santos, psicóloga que atende no núcleo Escuta Preta, especializado no atendimento ligado a aspectos étnico-raciais.

Uma das questões mais recorrentes nas consultas é justamente a dificuldade em lidar com uma família que legitima e adota práticas racistas. “Isso causa sofrimento para a pessoa negra, por não se sentir acolhida, por passar por constrangimentos em encontros, em festas”, avalia. “Acho emblemático que, na maioria das vezes, é a pessoa negra que busca ajuda, e não a pessoa branca, que muitas vezes não percebe o racismo, mesmo que muitas vezes escancarado”, salienta a psicóloga.

Opressões podem ser internalizadas

E não são só as experiências familiares a atravessar as relações afetivas inter-raciais. A analista de marketing Natália Fernandes, 33, mulher negra, namorou por cerca de um ano e meio Dionatha Rodrigues, 27, um homem branco. Para celebrar o primeiro ano juntos, foram a um “restaurante chique”. Apesar de o lugar estar vazio, o casal foi colocado em uma mesa mais afastada. “Então ficamos ali, bem no cantinho, e o tempo todo nos atendiam como se não fizessem a menor questão que estivéssemos ali”, situa ela. O que era para ser celebração virou constrangimento.

Só um tempo depois, quando voltaram a refletir sobre o episódio, é que eles identificaram traços de racismo naquela prática. “Ainda hoje não sei bem como reagir a esse tipo de situação, que parece uma coisa tão pequena, mas que é tão presente e estrutural que, talvez, o garçom que nos atendeu nem sequer percebeu o que estava fazendo”, examina.

O relato de episódios que, como esse, indicam o apagamento das pessoas racializadas em determinados espaços são também comuns no núcleo Escuta Preta. “São casos de opressão, de apagamento e de invisibilização cotidianos, como quando a pessoa negra pede o cardápio, mas ele é entregue para a pessoa não negra”, avalia Elaine. A psicóloga sustenta que, ao não se posicionar e confrontar ações externas, a parte não racializada acaba legitimando e trazendo essa interferência para o interior da dinâmica do casal.

“Uma forma de esses indivíduos que estão nessa relação contribuírem na luta antirracista e para que o parceiro se sinta confortável e seguro é buscar acesso, perguntando como a pessoa se sente, e tomar conhecimento. De início, é importante entender que não cabe à pessoa branca definir o que é ou não uma situação de racismo”, aponta Elaine.

Quando o diálogo não é efetivo e a escuta é precarizada, essas relações podem ser traumáticas. “A parte não negra do casal precisa trabalhar a empatia, precisa tomar para si algumas dores e estar aberta a ouvir sem julgar, a não minimizar a dor do outro”, argumenta Natália.

“Para quem não vive, é mais complicado compreender essas experiências, que afetam até mesmo a maneira como nos comportamos. É ʽnormalʼ, para nós, evitar mexer na bolsa quando estamos no supermercado, ter um segurança nos seguindo ou não ter a expectativa de sermos bem tratadas em um restaurante chique... Acredito, até pela dificuldade de compreender as nossas vivências, que os relacionamentos inter-raciais tendem a ser mais difíceis para as pessoas negras”, pontua. Ela celebra ter vivido ao lado de Dionatha uma história positiva para os dois.

Terror na ficção

Casais formados por pessoas de diferentes grupos étnico raciais já foram retratados no cinema. Uma recente produção que gerou debate é Corra! (Get Out, no título original). No filme de 2017, o diretor Jordan Peele aborda em uma narrativa aterrorizante a forma como a família de uma mulher branca recepciona o namorado dela, um homem negro. Pela obra, o cineasta conquistou o Oscar de melhor roteiro original em 2018.

Racismo impacta de estrutura social a relações afetivas e causa adoecimento

Divulgado em 2018, um levantamento da Universidade de Brasília e do Ministério da Saúde identificou que, enquanto os índices de morte por suicídio de pessoas brancas entre 10 e 29 anos permaneceu estável entre 2012 e 2016, entre adolescentes e jovens negros houve um aumento de 4,88 mortes por 100 mil habitantes para 5,88.

O estudo observa que “os modos de adoecer e morrer da população negra no Brasil refletem contextos de vulnerabilidade” e que os jovens negros são mais afetados pelo autoextermínio “devido, principalmente, ao preconceito e à discriminação racial e ao racismo institucional”.

O mito de um futuro mestiço

Ao falar sobre os relacionamentos inter-raciais, é importante lembrar que, celebradas por autores principalmente no século XIX, a miscigenação brasileira e a ideia de um futuro “mestiço” não apenas têm origens problemáticas, como também, sob um olhar mais atento, se revelam falsas.

Ideia fundante do entendimento de uma sociedade brasileira, a “democracia racial”, defendida por intelectuais como Gilberto Freyre (1900-1987), é vista como uma mentira em que muitos preferem seguir acreditando. “Basta olhar para a história: concomitantemente à abolição da escravidão no Brasil (último país ocidental a adotar a medida, em 1888), houve um projeto de clareamento da população. Nesse período, guiados por um pensamento eugenista e por uma ciência racista, importantes nomes buscavam na mestiçagem uma forma para acabar com a população negra”, sinaliza o doutor em comunicação Pablo Fernandes Viana. Esse ideal miscigenado é, portanto, violento e perigoso.

Assim, buscando fugir de qualquer idealização dos relacionamentos inter-raciais, o pesquisador acredita que esses casais precisam pensar constantemente nos tensionamentos das disputas de poder e sobre o que podem fazer diante disso. “É preciso racionalizar como essas disputas são postas na sociedade para minimizar essa hierarquização, que poderão minar qualquer afetividade”, sustenta.

Exemplo de como essas relações podem ser permeadas por uma hierarquia de poder é dado por Dionatha Rodrigues: parte branca do casal, sempre foi atribuído a ele o poder de decisão enquanto namorou Natália Fernandes. “Quando íamos sair, deixava em aberto que ela decidisse o local mas não compreendia que ela vinha de um lugar em que não se sentia pronta para tomar uma decisão e acabava decidindo tudo por mim mesmo”, reconhece.

O amor tem cor?

Pablo Fernandes Viana lembra ainda que, ao contrário do que faz pensar o mito de que “o futuro será mestiço”, casais inter-raciais são minoritários no país. De acordo com dados do Censo Demográfico de 2010, aproximadamente 70% dos brasileiros se relacionam com pessoas do mesmo grupo étnico.

No entanto, ao mesmo tempo em que é possível observar que, em termos absolutos, os homens pretos são aqueles que mais se unem às mulheres pretas, também é verdade que eles são os que, proporcionalmente, menos se unem a mulheres de seu grupo de cor.

Um fenômeno que, de uma perspectiva heterossexual, “nos ajuda a entender, ao menos em parte, o fenômeno da solidão da mulher negra, que incide com mais força justamente sobre as mulheres pretas”, aponta o pesquisador Rodrigo Ednilson de Jesus no artigo “O amor tem cor? O uso do Facebook como estratégia de letramento racial e reexistência”. A observação é acompanhada de outro estudo, que indica como a taxa de celibato das mulheres negras é quase o dobro daquela de mulheres brancas.

“É preciso mostrar que, no Brasil, a pobreza tem cor. O analfabetismo, os homicídios de jovens, os estudantes universitários têm cor. Ah, e o amor também tem cor”, escreve Ednilson de Jesus no texto, publicado no livro “Vozes Negras em Comunicação: Mídia, Racismo, Resistência” (Autêntica, 2019). “É preciso agir no mundo! É preciso transformá-lo, já que, como nos adverte Angela Davis, em uma sociedade racista, não basta não ser racista; é preciso ser antirracista”, completa.