Com assombro, circulou nas redes sociais um vídeo em que uma mulher de 25 anos espanca uma criança com um fio, além de puxar a vítima pelos cabelos e jogá-la contra a cama. No registro, a menina, com o nariz e a boca sangrando, pede que a mãe não bata nela. A garota, que tem 7 anos, chega a pedir ajuda ao homem que filma a cena, que apenas segue gravando e diz que ela está mentindo. Nesta segunda-feira (13), a Polícia Militar identificou os autores e prendeu o casal, que é de Montes Claros, no Norte de Minas.

De acordo com apuração dos agentes, a criança teria encontrado um preservativo e brincava com o produto, o que levou a mãe ao ato de brutalidade. A gravação foi feita por um ex-companheiro. As imagens, feitas por volta de 12h de segunda, foram usadas para chantagear a mulher e pedir que eles reatassem o relacionamento.

A história, que gerou indignação, é exemplo de violações que podem se tornar mais comuns em períodos de emergência de saúde.

Com famílias inteiras confinadas em suas casas, aulas presenciais suspensas em toda a rede pública e privada de educação e uma permanente sensação de apreensão, efeitos imediatos provocados pela pandemia do novo coronavírus, crianças e adolescentes tornaram-se alvos de uma série de violências muitas vezes invisíveis.

Ocorre que, ao impor uma repentina mudança de rotina a mais de um terço dos países do mundo, a Covid-19 tornou os pequenos ainda mais vulneráveis violações, como maus tratos, exclusão social, cyberbullying, exploração e abusos sexuais. É o que denunciam entidades ligadas à defesa de direitos humanos, como a Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e a Childhood Brasil, organização que faz parte da World Childhood Foundation, instituição internacional criada em 1999.

De fato, de acordo com dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), das 5.759 denúncias registradas por meio do Disque 100, entre os dias 14 de março e 13 de abril, 235 dizem respeito à violência contra crianças e adolescentes. O grupo é o quarto com maior incidência de queixas, atrás apenas de violência contra pessoas socialmente vulneráveis, pessoas com restrição de liberdade e idosos. 

O período observado coincide com o início da suspensão de aulas no país. De maneira geral, as principais violações registradas foram exposição de risco à saúde, maus tratos e ausência de recursos para sustento familiar.

Mudança repentina de hábitos provoca estresse doméstico

"Confinados em casa, com a família, estamos forçados a estabelecer uma nova dinâmica de convivência e de compartilhamento do espaço em tempo integral", aponta Itamar Batista Gonçalves, gerente de advocacy da Childhood. 

"A gente teme que o número de abusos físicos e maus tratos possam aumentar por conta dessa tensão, dado que os tutores terão um maior período de convívio com seus filhos e terão, em alguns casos, que dividir a atenção com as tarefas da casa e do emprego, além de dar conta das necessidades particulares dessas pessoas por quem eles são responsáveis", situa Gonçalves. 

“As casas, na maioria dos lares brasileiros, são pequenos e comportam muitas pessoas. Essa coabitação pode não ser tarefa fácil, especialmente com crianças e adolescentes que têm energia e devem ser atendidos em seu direito ao lazer, à educação e não só à alimentação”, completa ele. 

No mesmo sentido, Rosana Vega, chefe de Proteção à Criança do Unicef no Brasil, reforça como a mudança repentina de hábitos pode desencadear um maior estresse no ambiente familiar. "De uma certa maneira, é como se a gente estivesse regressando a uma dinâmica de interação de outros séculos", aponta.

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"Ficar confinado, ficar isolado socialmente pode trazer muito estresse para os adultos, que têm preocupações econômicas e de saúde, mas também para crianças e adolescentes", ressalta ela. "Essa situação, que é estressantes, pode nos colocar mais ansiosos, mais angustiados. É importante pensar que as crianças não são responsáveis por si e que elas vão sofrer de outra maneira os impactos dessa crise", conclui Rosana.

Outras emergências de saúde no mundo expuseram vulnerabilidade de crianças e adolescentes

O fechamento das escolas durante o surto do ebola na África Ocidental, de 2014 a 2016, contribuiu para picos de trabalho infantil, negligências, abuso sexual e gravidez na adolescência, conforme evidenciam levantamentos divulgados pela Unicef. Em Serra Leoa, por exemplo, os casos de gravidez na adolescência mais que dobraram em comparação ao período anterior à pandemia, chegando a 14 mil.

Agrava a situação a constatação de que, durante o período de confinamento, pode ser mais difícil identificar indicar possíveis sinais de abuso sexual manifestados por crianças e adolescentes. Comportamentos como retração, acesso de de raiva, ansiedade, depressão, comuns a vítimas desse tipo de violência, podem acontecer em virtude do momento atual.

Na opinião do gerente de Gonçalves, no entanto, o aumento do abuso sexual não deve ser uma realidade no país. “Na maioria das vezes, casos assim acontecem quando um dos responsáveis pela criança não está presente. Como a realidade é de confinamento em família, a gente não acredita que esse número irá crescer por conta da pandemia”, pontua, fazendo uma ressalva: em lares em que essa violência já acontece, pode haver intensificação.

Dicas

A Childhood elencou dicas para amenizar riscos de violações de direitos de crianças e adolescentes neste período.

  • Busque assistir programas com conteúdo educativo e aproveite para melhorar o diálogo com a criança ou adolescente;
  • Resgate brincadeiras lúdicas e manuais (desenho, pintura, entre outros);
  • Busque jogos de tabuleiro adequados para cada faixa etária;
  • Aprenda sobre redes sociais e novos gadgets com as crianças e adolescentes.

Denúncias

Em caso de revelação de violação de direitos humanos, é importante acolher a criança ou adolescente e ouvi-la atentamente. Se uma violência sexual for narrada, reforce que a criança/adolescente não tem culpa pelo que ocorreu. 

As denúncias podem ser feitas pelo Disque 100, serviço de proteção de crianças e adolescentes com foco em violência sexual, e agora também será possível utilizar o aplicativo Diretos Humanos BR, disponível para Android e em breve para o sistema iOS. O site da Ouvidoria é outro caminho para denunciar: https://ouvidoria.mdh.gov.br/.

A Polícia Civil do Estado de Minas Gerais (PCMG) informa, por nota, que não alterou a orientação de atendimento nos casos de violação de direitos de crianças e adolescentes.

“Em Belo Horizonte, a Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente (DEPCA) está em funcionamento e recebe tanto denúncias por telefone (31 3228-9000), agendamentos e casos urgentes trazidos, inclusive, por outros órgãos de segurança como Polícia Militar e Guarda Municipal. Em todo o Estado de Minas Gerais as unidades continuam funcionando e sempre que houver abusos e violência contra crianças e adolescentes é imprescindível que se faça a denúncia”, reforça a corporação.