A vinda do cineasta Orson Welles a Minas Gerais, em 1942, é cheia de mistérios e lendas. Uma delas reza que o diretor de “Cidadão Kane”, ao passar por Belo Horizonte, disse que a cidade tinha as luzes mais bonitas para se filmar – só não chegou a registrá-las.
As pessoas que também admiram o amarelado da iluminação pública precisam se apressar para ver seus últimos momentos: a prefeitura prevê que todos os 182 mil pontos de luz da cidade vão ser trocados por LED até outubro de 2020.
A noite de BH vai passar do amarelo ao branco.
“A paisagem urbana vai mudar muito. A iluminação mais amarelada traz essa noção da nostalgia, mas tudo vai ter um aspecto mais branco-azulado”, diz o arquiteto Ítalo Pereira Fernandes.
Mais econômicas, as lâmpadas de LED são uma tendência mundial, adotadas por cidades como São Paulo, Los Angeles e Buenos Aires.
Fernandes defende que as impressões dos moradores também sejam levadas em conta na hora de decidir a nova iluminação. “Eu queria entender esse outro lado da iluminação, mais subjetivo, psicológico, sobre como as pessoas respondem a ela”, diz ele.
Em sua pesquisa de mestrado na Universidade de São Paulo (USP), o arquiteto selecionou 45 pessoas com idades entre 15 e 50 anos para saber como se sentiam ao ver ambientes iluminados com luzes amarelas, luzes neutras e luzes mais azuladas nas vias públicas, por meio de óculos de realidade virtual.
Para a maioria (53,3%), o aspecto mais importante era a sensação de segurança, antes do clima do ambiente (17,78%) e do conforto visual (15,56%). E a luz mais branca, próxima do LED, foi campeã no preenchimento desses quesitos. “A gente tem uma tônica muito forte no Brasil de que, quanto mais luz, melhor”, diz. “Mas, para mais segurança, precisamos de outras ações além da iluminação”.
Passado amarelo
Quem conta a história do encanto de Welles pelas luzes de BH é o cineasta Samuel Marotta. Em seu “Baixo Centro”, filme de 2018, as luzes amareladas da cidade são centrais para a trama. “A impressão é que as luzes novas trazem certa descaracterização, porque são uniformes, sem vida, de certa forma as mesmas de um shopping. Mas talvez as pessoas tenham certo pavor do escuro, medo da violência”, diz.
Filmes como o dele podem se tornar relíquias para nostálgicos. Um texto da publicação de cinema “No Film School”, divulgado quando Los Angeles (LA) passava pela troca de iluminação, diz que, “de certa forma, todo filme gravado nas ruas de LA antes da mudança é uma espécie de artefato antropológico, um documento histórico da infraestrutura urbana obsoleta”.
O gerente de loja Paulo Trindade, 50, é pragmático. “Lógico que a cidade fica mais chique com a luz amarela, dá um requinte, mas não podemos ter requinte, precisamos de segurança e economia”, diz.
O manobrista Anastácio Alexandre, 58, concorda que as luzes amarelas são mais bonitas. “O clarão da branca atrapalha a visão”, diz. Ele tem dormido na rua ao lado do garçom André Luiz Matos, 40, que passa as noites no centro há três meses e conta que as luzes brancas não têm atrapalhado o descanso. “A rua é cansativa, então, quando vem o sono, só durmo”, afirma.
Saúde em debate
Em 2016, a Associação Médica Norte-Americana (AMA) divulgou um parecer em que recomendava cautela na adoção de lâmpadas de LED com intensidade superior a 3.000 K (unidade de medida da temperatura da cor). As de BH têm 4.000 K – assim, segundo a AMA, emite 29% de luz azul, relacionada a riscos ao ciclo do sono, também conhecido como “ciclo circadiano”.
Luiz Molinari, presidente da Associação Mineira de Oftalmologia, destaca que o LED presente nas telas de celulares e computadores também emite luz azul, por isso está na mira dos médicos.
Ele se preocupa que a nova iluminação pública prejudique a visão de quem tem dificuldade em perceber contrastes devido a doenças como catarata avançada e degeneração ocular. “Eles vão ter mais dificuldade para conviver nesse ambiente de intensa iluminação”, diz.
Já Mariana Figueiró, diretora do Centro de Pesquisa de Iluminação, em Nova York, pontua que a nova luz dos postes não traz risco. “Em geral, a quantidade de luz no ambiente externo não é suficiente para afetar o relógio biológico das pessoas. O relatório da AMA não considerou essa quantidade, e isso foi uma grande omissão”, afirma.
A Belo Horizonte Iluminação Pública (BHIP), empresa responsável pela instalação das luzes, afirma que as novas lâmpadas de LED não interferem na saúde humana ou nos hábitos de animais noturnos.
A Signify, produtora de 90% das peças, reforça que elas são adequadas para iluminar sem intervir no entorno, como fauna e flora.