Waris Darie
Ativista
Embaixadora Especial da onu para a eliminação da mutilação genital feminina

Aconteceu com a somali Waris Darie o que ainda ocorre diariamente em várias partes do mundo, principalmente nos países africanos. Com menos de 5 anos, ela foi levada pela mãe a um deserto onde uma idosa a esperava com uma navalha. Ali, sem nenhum tipo de anestesia ou assepsia, ela teve a região genital cortada. "Foi o dia mais horrível da minha vida", conta. O procedimento consistiu em cortar o clitóris, os pequenos e os grandes lábios e depois costurar a genitália, deixando só um pequeno orifício. A justificativa era que a mutilação a tornaria uma mulher pura para o casamento.

Criada em uma família nômade do deserto da Somália, Waris fugiu, aos 13 anos, após ser forçada a se casar com um homem que tinha idade para ser seu avô. Cruzou o deserto a pé em direção à capital do país, Mogadíscio, e foi ajudada por familiares a ir para Londres. Anos depois, foi descoberta pelo fotógrafo Terence Donovan e se tornou modelo. Com a fama, veio a oportunidade de falar - e de ser ouvida - sobre a mutilação genital feminina (MGF). Em 1997, o então secretário geral da ONU, Kofi Annan, nomeou-a embaixadora especial para a eliminação da MGF.

Waris em somali significa "flor do deserto", planta que sobrevive como arbusto nos anos de seca. É este o nome do livro e do filme que contam sua história. Hoje, aos 46 anos e com dois filhos, a ativista dirige a The Desert Flower Foundation (www.desertflowerfoundation.org), fundação criada por ela em Viena em 2002.

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Quando e como você percebeu que a prática da circuncisão não acontecia com todas as mulheres? Como você se sentiu?
Durante o tempo em que passei na Inglaterra, percebi que nem todas as mulheres eram mutiladas. Fiquei chocada e aliviada, porque sempre soube que a mutilação feminina era errada. Fiquei aliviada por saber que havia sociedades onde as mulheres não eram mutiladas.

Quais são alguns dos problemas de saúde que as mulheres mutiladas passam?
As consequências físicas são dor crônica, infecções, problemas para urinar e durante a menstruação, infertilidade e, claro, complicações durante a gravidez e parto. As consequências mentais são mais difíceis de listar, mas acredito que é óbvio que qualquer criança que passou por essa prática cruel ficou emocionalmente traumatizada e vai sofrer pelo resto da vida.

Quando você decidiu se dedicar à luta contra esta prática?
Eu sabia que um dia eu iria lutar contra essa crueldade, desde que ela aconteceu comigo. Claro que ser famosa e bem-sucedida como modelo me deu uma grande plataforma e, portanto, oportunidade de falar sobre a mutilação genital feminina e ser ouvida.

O título como embaixadora da ONU ajudou na sua luta contra a mutilação feminina?
Claro que foi uma grande honra ser nomeada como embaixadora da ONU. Além disso, foi um importante reconhecimento do problema da mutilação em todo o mundo. Mas, em termos de mudanças práticas, há muitos passos que dei que foram mais importantes do que o título de embaixadora. Hoje, todas as minhas atividades e projetos são organizados pela minha própria organização.

Existem países fora do continente africano com registros de mutilação feminina?
Sim, infelizmente, a mutilação é um problema global. Com a imigração, a circuncisão se espalhou por todo o mundo. Comunidades de imigrantes por toda a Europa, nos Estados Unidos, no Canadá, na Austrália e, até mesmo, no Brasil continuam praticando a mutilação feminina. Em 2003 e 2004, pesquisei junto com a equipe do Desert Flower a taxa de predomínio da MGF nos países europeus. Mais de 500 mil meninas e mulheres na Europa foram e são afetadas pela circuncisão. Nós apresentamos os resultados para o Conselho da União Europeia, em Bruxelas. Muitos países europeus estreitaram suas leis após a apresentação.

Como foi a experiência de lançar e divulgar o filme "A Flor do Deserto"?
Foi difícil para mim ver minha própria infância, minha própria família em uma tela de cinema. Mas precisei concordar em fazer esse filme, porque sabia que atingiria ainda mais pessoas do que o livro - e foi isso que aconteceu. Muitas pessoas me escrevem e-mails dizendo que viram o filme e que ficaram comovidas com a minha história.

A mutilação é uma prática relacionada à cultura ou à religião?
A mutilação genital feminina não tem nada a ver com a cultura ou a religião. É a forma mais cruel já pensada para suprimir as mulheres e é o crime mais cínico de abuso infantil. Mas é claro que as pessoas justificam a prática dizendo que ela é parte de sua cultura, argumentando que sua religião exige que suas filhas sejam mutiladas. Isso não é verdade. Nenhuma religião no mundo exige essa prática. Acho que as leis contra a MGF são muito importantes, porque constituem uma poderosa declaração e ajudam a capacitar aquelas que estão ameaçadas ou afetadas pela MGF. Mas a única maneira efetiva de erradicar a MGF é capacitar as mulheres, para ajudá-las a terem uma voz nas sociedades. Também é uma maneira de garantir que elas não sejam mais tratadas como mercadorias que podem ser compradas, vendidas e, principalmente, controladas.

A população somali está consciente dos problemas decorrentes da MGF?
Acho que muitas estão conscientes dos problemas porque elas mesmas vivem essa experiência. Toda mulher na Somália sabe o que está fazendo com as suas filhas, mas continuam a ter suas crianças mutiladas por causa da pressão social que recai sobre elas.

Mesmo tendo apenas 5 anos quando sofreu a mutilação genital feminina, você ainda se lembra daquele dia? Existe uma idade específica para o procedimento ser feito?
Claro que eu me lembro, foi o dia mais horrível da minha vida e eu nunca vou esquecê-lo. A idade em que a mutilação é realizada difere muito de país para país e, até mesmo, entre diferentes comunidades. Na Indonésia, as meninas são mutiladas ainda recém-nascidas. Na Somália, as meninas sofrem essa prática geralmente entre 3 e 5 anos. No Quênia, as adolescentes são mutiladas antes de chegarem à idade ideal de casamento.

O que te levou a fugir de casa aos 13 anos pelo deserto da Somália?
Eu fugi quando meu pai me vendeu para um homem velho para me casar com ele. Eu sabia que qualquer coisa que acontecesse comigo naquele deserto nunca seria pior do que ficar com aquele homem e viver minha vida com ele no deserto. Mas foi extremamente difícil deixar minha família para trás.

Desde o início da sua jornada contra a MGF, o mundo viu uma diminuição no número de procedimentos por ano?
Sim, os números diminuíram em muitos países, mas eles ainda são muito altos. Eu não estarei satisfeita até que essa prática seja erradicada completamente, até que nenhuma garota desse planeta não esteja ameaçada pela mutilação. (Com Luiza Andrade)