Opinião

A morte do artista trouxe um raro momento de união para o país

Jô Soares foi exemplo de senso de justiça

Por Kerison Lopes
Publicado em 09 de agosto de 2022 | 03:00
 
 

Em tempos de ódio e posições extremadas, o Brasil viveu um instante de união em torno de um dos seus personagens mais conhecidos, que descobrimos agora o quanto era também amado. A morte de Jô Soares, que faleceu aos 84 anos na última sexta-feira, fez o país deixar de lado as diferenças para lhe prestar homenagens. Só ele para caber dentro das redes sociais de Lula e Bolsonaro, que postaram homenagens e imagens de entrevistas feitas em seu programa. 

Não só os presidentes publicaram fotos e vídeos no sofá do apresentador, que era também humorista, ator, diretor, músico, roteirista e escritor. As timelines foram invadidas pelo “Gordo”, como ele próprio se chamava. Junto com as imagens, muitas histórias e depoimentos sobre a inteligência, a delicadeza e o compromisso do artista. 

Tive a sorte de ver de perto o seu talento e senso de justiça, quando em 1997 fui entrevistado no seu no programa “Jô Onze e Meia”, que apresentou por 11 anos no SBT. Eu era presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) e, antes de a entrevista ser realizada, pude conhecer um lado de Jô Soares que nunca saiu da memória. A pauta principal era a Campanha Sou da Paz, que as entidades estudantis conduziam para defender o desarmamento. 

Fui para o estúdio vestindo uma camiseta com a estampa do revolucionário argentino cubano Che Guevara. Muito educadamente, a produção do programa sugeriu que eu trocasse de camisa e vestisse a da campanha Sou da Paz, que eu carregava nas mãos. Recusei a proposta, argumentando que aquela eu levara para dar de presente para o Jô durante a entrevista. Levaram-me, então, para o camarim e me apresentaram um amplo figurino de camisas, que eu poderia escolher para participar do programa. 

Foi quando percebi que o problema estava na verdade em eu usar a camisa do Che, que, segundo um produtor, não combinava com o tema da entrevista, já que eu falaria de desarmamento estampando o rosto de um famoso guerrilheiro. Novamente recusei a troca, argumentando que Che era um pacifista que usou das armas para vencer tiranias, como a de Fulgencio Batista, em Cuba. 

Quando o impasse estava estabelecido, Jô Soares foi até o local e com sua voz suave disse: “O jovem tem a obrigação de ser esse rebelde que não aceita imposições e defende seu ídolo, afinal é um líder estudantil”. A palavra final foi dada ali, e seguimos para Jô dar início ao programa. E estava eu sentado ao seu lado, levando o Che Guevara junto para a tela. A contribuição de Jô na Campanha Sou da Paz foi além da enorme popularização que conquistamos com a exibição da entrevista. Ele foi um dos artistas que emprestaram sua imagem fazendo o símbolo da pomba da paz com as mãos. 

Jô nunca se furtou a se posicionar politicamente. Usou de seu refinado humor para criticar o conservadorismo, chegando a ser processado em 1969 pelo então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, em plena ditadura militar. 

Desde a ascensão de Bolsonaro à Presidência, Jô se posicionou de forma mais frequente e explícita, publicando nos jornais uma série de cartas abertas ao presidente, onde denunciou o seu caráter fascista, como fez desde que o atual mandatário era deputado federal. Avesso às redes sociais, Jô Soares nos faz lembrar um tempo em que a inteligência predominava na criação, bem diferente da atualidade cibernética. O Gordo vai fazer muita falta.

Kerison Lopes é jornalista