Fabricio Carpinejar

Poeta escreve às sextas no Magazine e no Portal O Tempo

Comida é dinheiro vivo

Publicado em: Dom, 18/08/19 - 03h00

Mineiro não joga comida fora. Sempre acredita que o resto pode ser usado de noite ou completar o próximo cardápio.

É um ser feito de esperança. Mesmo que tenha apenas duas colheradas de um alimento, faz questão de guardar. Só se livra das migalhas, e com o coração apertado.

Geladeira de mineiro não é geladeira, mas um purgatório. Haverá a convivência de potes transparentes de diferentes dias, esperando o arremate final.

Além das panelas, não vive sem um exército de Tupperware na despensa. Tupperware é o seu herói – ídolo dos serviços domésticos.

Quando não sobra nenhum recipiente, de tanto emprestar potes aos vizinhos, ou de tanto empregá-los com o excedente do almoço e da janta, ele entra em pânico. Como se estivesse sido deserdado.

É um abre-fecha de potes interminável, um entra-sai de nariz nas frestas das tampas. Os moradores ficam cheirando a amostragem na geladeira, vigiando o estoque. A impressão é que estão escolhendo e provando um perfume numa loja de cosméticos.

Às vezes, o morador acaba esquecendo de conferir um e outro e descobre semanas depois pelo forte odor. Daí é um apocalipse: requer tirar tudo de dentro até localizar o que está vencido.

Comida é dinheiro em Minas Gerais. É dinheiro vivo.

O zelo já começa com a fiscalização da refeição. Todos cuidam de todos, com um canto da mirada atenta às reações dos demais comensais.

Mãe e pai não admitem que o filho não limpe o seu prato. Mas limpar de verdade, a ponto de facilitar a vida para quem lavar as vasilhas. É uma ofensa se servir à toa. Cria-se na criança, desde cedo, uma consciência do tamanho do apetite. Não se brinca com a fome. Se esnobar uma vez pode faltar depois.

Existe o compromisso social no ato de repetir, não devendo jamais acrescentar algo que não conseguirá terminar. Aqui não se come com os olhos, mas a partir do senso de responsabilidade.

Em caso de viagem da família, o extra não vai para o lixo – a lixeira mal conhece os resíduos orgânicos. Prepara-se uma marmita ao porteiro do prédio ou ao porteiro do prédio vizinho ou a algum segurança do bairro. O povo de casa não se aquietará até encontrar alguém para levar a comidinha. Usa o interfone e o telefone para localizar um destino seguro e não sofrer nenhum castigo divino pelo desperdício. Tem medo de uma represália. Se acha que quando cai comida no chão, da boca ou do garfo, é sinal de parente passando necessidade, pense na gravidade do ato intencional de colocar fora? Será uma maldição de penúria para três gerações de sua árvore genealógica.

Nos restaurantes, a superstição mantém a escrita. A diferença é que, comendo na rua, o mineiro prefere que falte boia do que sobre. Nem é avareza, é desconfiança de que a porção para um dará para dois. Mineiro acha que o garçom está mentindo ou exagerando quando avisa que a porção é para só uma pessoa. Decide pagar para ver, e acaba tendo que completar. Nunca deixa à mesa porque sempre tem um pedido feito atrasado. Aliás, a porção para uma pessoa é, na verdade, para uma pessoa e meia. Quando solicitadas duas porções, resulta em comida para três pessoas. Ou seja, o casal é obrigado a pedir duas porções e aguentar comida sobrando, um crime para a alma mineira.

Para se vingar da matemática injusta dos estabelecimentos, carregará tudo o que permanecer sobre a mesa, é capaz de reivindicar o embrulho de uma folha de alface, de uma azeitona, de quatro palitos de batata frita, porém não deixa nada de nada para contar a história. Apesar do gosto extravagante do pacote, como desculpa, alegará que é para o cachorro.

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