Se eu reclamo de qualquer bagunça da minha esposa, ela diz que tenho TOC.

Ela encontrou o antídoto perfeito para as minhas queixas.

Resta-me ficar quieto. Não adianta me defender e rebater que sou organizado, metódico, disciplinado, converter minha mania de limpeza em virtude.

Certa vez, entrei na cozinha de manhã — ela sai mais cedo do que eu para o trabalho — e me deparei com uma cena desesperadora para quem zela pela faxina a cada trinta minutos.

Minha esposa abriu a caixa do leite com faca. De modo selvagem. Parecia que tinha usado uma motosserra, tamanho o alcance dos respingos. Nem um box de banheiro se mostraria tão salpicado.

Ela espirrou leite pelas paredes, pela pia, pelo canto secreto do liquidificador e do espremedor de frutas, e só me legou um biquinho da caixinha de papelão. Uma tampinha do leite. Um cone mal feito. Um origami da pressa. Um envelopinho do desleixo.

Eu não podia comentar nada. Não podia telefonar para o seu emprego para censurá-la. Senão ela alegaria que eu sofro de TOC. Eu nem saberia como começar o assunto com calma, aquecendo a prosa com amenidades.

Aguentei no osso, esbravejando sozinho nos corredores, no banho, no carro. Restringi-me às ofensas mentais.

Na manhã seguinte, já não era uma poça de leite — era um açude. Com a tampinha boiando.

Aquilo me irritava muito, me enervava, me tirava do eixo. Eu não pensava em outra coisa, obcecado em corrigir a situação.

Só que eu evitava repreender, para não levar o troco:
— Viu? Você tem TOC.

Na manhã seguinte, não era mais um açude — era um oceano de leite. Um rio São Francisco de leite. Agora a tampinha nadava.

Com certeza, minha esposa testava os meus limites.

Sempre a mesma provocação, até que me acordei estranho. Minha prioridade não era mais pegar o jornal na porta, arrastar as cortinas para espiar o sol, despertar os filhos: eu apenas queria chegar o quanto antes à cozinha e verificar se havia uma tampinha do leite.

Avistar a tampinha me dava uma tranquilidade, um alívio, um bem-estar.

Eu me tornei apaixonado pela tampinha do leite. Dependente químico da tampinha do leite. Porque entendi que todo dia com tampinha do leite era mais um dia com Beatriz.

Assim como você deixa um bilhete na geladeira, um recado no espelho, ela me deixa tampinhas do leite. A saudade se alimenta dos detalhes.

Casal que se ama respeita as diferenças. Se você tem um defeito e não precisa mudar, existe compreensão. Existe liberdade. Ninguém se podou na relação.

Eu realmente tenho TOC — hoje admito — e também sou um milionário das tampinhas do leite.

A cada alvorecer, vejo a tampinha e, ao invés de protestar, agradeço.

Ébrio da rotina, guardo-a num pote de vidro com a realeza de uma rolha de vinho.