Representatividade

‘Ricos’ de dinheiro e ‘pobres’ de caráter

Qual seria o lugar de pessoas negras em uma sociedade com raízes escravocratas? O do serviçal, de preferência mudo

Por Tatiana Lagôa
Publicado em 05 de janeiro de 2024 | 03:00
 
 
Tatiana Lagôa, autora da coluna Representatividade Foto: Fred Magno/O TEMPO

Imagine a cena: uma auxiliar de limpeza passa pano no chão em um shopping. Uma cliente se indigna por não poder pisar no local e começa a gritar que é rica. Como se não bastasse, chama a trabalhadora de “palhaça”, manda ela se colocar em um tal “lugar dela” e conta que está de férias. Até parece um enredo de conto de fadas infantil com direito a uma bruxa gritando. Só que, por mais absurda que essa cena seja, ela é real e aconteceu em Minas Gerais. Eu não sei você, mas eu não estou surpresa. 

Primeiro, sugiro o velho método de tentar se colocar no lugar dessa pessoa que foi vítima de tamanha ofensa. Você sai de casa para trabalhar, bem naqueles dias entre o Natal e o Ano-Novo, em que você só pensa se a roupa amarela vai atrair riqueza mesmo e se entra no bolão da Mega da Virada da firma. Como foi orientado a fazer, você coloca uma plaquinha sinalizando “chão molhado” e começa a limpar o local. Pessoas vão e voltam sem ao menos notar sua presença. Enquanto isso, para se distrair, você pensa no filho que deixou em casa e até cogita levar um doce para alegrá-lo. 

De repente, DO NADA, surge alguém e começa a te ofender. O motivo? A cliente, que acredita sempre ter razão em função do cartão de crédito no bolso, gostaria que você não só fosse invisível como também soubesse limpar o chão sem ocupar o espaço a ser limpo. 

E sabe o que mais? Como você precisa do emprego e quer comprar não apenas o doce do seu filho, como também sustentá-lo, se mantém ali, encurvado com seu pano na mão. Engole aquele “sapo” e chega a ter uma crise de hipertensão e taquicardia de tão “entalada” que ficou com a situação. Uma humilhação não é fácil de digerir. 

Agora que você já tentou sentir um pouco do que essa mulher passou, vamos para o próximo passo. Talvez você agora esteja pensando: “Eu nunca passei ou passaria por isso”. E, se for isso, tudo bem, porque é mesmo difícil nos imaginar em situações muito distantes da nossa realidade. Mas, aqui, eu queria colocar um elemento novo nessa história: a auxiliar de limpeza que foi agredida é negra. 

E por que isso seria relevante? Porque eu tenho dúvidas se a agressora faria o mesmo com uma pessoa branca. A meu ver, ela pode ter sido motivada por racismo. A mensagem passada foi direta: “Coloque-se no seu lugar”. E qual seria o lugar de pessoas negras em uma sociedade com raízes escravocratas? O do serviçal, de preferência mudo, como o tal “criado-mudo”, que nada mais era do que uma pessoa escravizada naquela função. 

Talvez você seja uma pessoa branca e não consiga se colocar no lugar dessa vítima porque o mundo te passa o recado de que você pode estar onde quiser. Já eu te digo que sei bem o que é receber mensagens de inconformidade por parte de quem não consegue esconder o racismo. Algumas vezes, verbalizado. Em outras, pelo olhar. 

Estamos no Brasil, né? O país em que 80% das trabalhadoras domésticas são mulheres, sendo 65% delas negras, segundo o IBGE. Resquícios da escravidão. Se tiver dúvidas sobre como o sistema escravocrata ainda vive em trabalhos em que as funcionárias são consideradas “quase da família” para trabalhar exaustivamente e precisam se “colocar no lugar delas” quando tentam direitos, indico que assista ao filme “Que Horas Ela Volta?”, protagonizado por Regina Casé em 2015. Na obra, dá para entender como agem alguns que se dizem “ricos de dinheiro” e humilham os outros. Em outras palavras, os “pobres de caráter”.