Vittorio Medioli

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Com Lula livre

Publicado em: Dom, 24/11/19 - 03h00

O cenário político nacional mudou com Lula em pleno gozo de liberdade após 580 dias de reclusão.

O Congresso Nacional acordou! Deu-se conta de que está nele o dever de legislar, e não no STF, supremo guardião da Constituição. Quando o interesse da nação exige mudança na lei maior, o Congresso tem que realizá-la. Ninguém mais.

Estas são belas palavras para quem as entende, mas são de difícil compreensão para grande parte da população, sem noção clara de um regime democrático de direito. Mais complicado ainda explicar a complementaridade e autonomia dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. O povo clama por justiça quando a indignação se incendeia e queima a tolerância coletiva. É a típica centelha que determina a explosão. Esta, para muitos, foi a soltura de Lula, que, apesar de legalmente correta, é sentida como moralmente errada.

O artigo 5º, inciso LVII da Constituição, preceitua: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Isso posto, somente após um processo concluído, com decisão condenatória à qual não mais caiba recurso, o Estado poderá aplicar ao condenado a pena.

Decorre da leitura da Constituição que a reclusão de Lula não deveria ter sido determinada pela simples razão de que a Constituição lhe garante outros recursos. Embora o texto seja escrito em português claro, o STF colocou o limite na segunda instância. Diga-se, data venia, sem ter amparo constitucional suficiente.

O Congresso lavou as mãos, negou-se a enxergar de frente a vontade popular predominante por um cumprimento mais rápido da pena. Não clareou nem alterou, como seria de sua obrigação, a norma que destoa do interesse da nação e não se coaduna com aquilo que adotaram outras democracias mundo afora.

Retornou, como era esperado, a revogação da prisão em segunda instância. A ferida descosturou e deixou sair não apenas Lula, mas milhares de outros detentos, que representam uma ameaça à nação.

Pois é, nesse vendaval, Lula saiu diferente do que era. Dois anos para quem tem mais de 70 podem representar a perda de uma expressiva parcela daquilo que resta de vida, quando cada dia fica mais raro e precioso.

A humilhação que qualquer ser humano pode experimentar ao ser preso marca sua personalidade. Lula saiu, assim, diferente, não é a figura que adotou a fórmula “paz e amor” e ganhou a Presidência. Regrediu ao Lula ferro e fogo sem maioria.

Quem esperava que conseguiria arrastar multidões, especialmente por ser o personagem que marcou mais decididamente os primeiros 19 anos deste milênio, está perplexo.

Os poucos ônibus de “simpatizantes” que foram a Curitiba para acolhê-lo no portão da carcerária voltaram a São Paulo sem pagar a conta da churrascaria, sinalizando que aquele aparato que esbanjava organização e coordenação deteriorou-se.

Os tempos mudaram as tendências, os jovens não se empolgam facilmente com ideias políticas, querem o bem-estar que compartilham nas redes sociais, em que passam metade do seu tempo.

Lula perde nas redes, é importante para um número cada vez menor. A Lava Jato desbotou seu discurso, o brilho do metalúrgico cobrador de justiça.

Enfraqueceu no Nordeste, onde ditava as tendências e arrebanhava votos que faziam a diferença.

As tecnologias disruptivas deixaram para trás aqueles que não se adequaram. Os adversários de Lula estão muito à frente, não apenas na ocupação de novo campo virtual de confrontação, mas no conhecimento e capacidade de se aproveitar dele.

A presença de Lula depois dos primeiros dias de liberdade, paradoxalmente, preencheu o quadrante político com um vento constante e previsível. Para quem tem noção de aeronáutica, esse vento, mais que atrapalhar Bolsonaro, pode retirar o efeito do vento de cauda que deixa inconfiáveis as manobras e diminui a sustentabilidade das asas.

Bolsonaro terá um contraponto diferente das proezas dos “filhos”, que ficam relegados a um terceiro plano.

Enfim, é prudente imaginar que Lula pode ajudar Bolsonaro a encontrar um rumo mais firme e ter a bola levantada por quem não é mais o colosso que já foi antes da Lava Jato.

Hoje a maior parte da população, até nos rincões, anseia por paz, emprego e melhorias.