Raiz

Além do paladar: conheça a chinatown mineira

Pequenas casas estrangeiras em BH propiciam experiências singulares em matéria de sabor e vivências

PUBLICADO EM 25/03/17 - 03h00

Experimentar os sabores de outros lugares, adentrar outras culturas e, talvez, até mesmo sentir-se um estrangeiro na cidade em que vive. Estas são algumas das prováveis explicações para o sucesso de restaurantes étnicos que se espraiam por Belo Horizonte. Importante frisar: restaurantes inteiramente étnicos, cujos donos são de outra nacionalidade e imprimem sua particular cultura não apenas sobre os pratos preparados, mas por todo ambiente. O resultado são experiências singulares em matéria de sabor ou mesmo de vivências.

De histórias de refugiados a ambientes politicamente ativos, passando por espaços quase improvisados, Belo Horizonte caminha para criar seu roteiro não só de pratos típicos, mas também de experiências inusitadas advindas de várias nacionalidades. Sim, é possível, na nossa capital, ser atendido em mandarim ou comer um autêntico shawarma feito por um sírio.

É no terceiro andar de uma galeria localizada na esquina da avenida Oiapoque com a rua Curitiba, no hipercentro de BH, que um restaurante – sem nome – tem atraído a curiosidade de gourmands. Para chegar lá, é preciso atravessar uma porta estreita – que passa despercebida frente ao movimento dos shoppings Xavantes e Oiapoque – e vencer três lances de uma escada igualmente delgada para descobrir um pequeno reduto chinês. Lá, no “chinês do Oiapoque” – como tem sido chamado pelos frequentadores brasileiros – tudo está ligado à tradição daquele país. Na cozinha, é o pai da família, Chen Yong Ping, quem comanda a casa. Sua esposa trabalha no pré-preparo dos pratos, enquanto o filho mais velho cuida de assistir o ambiente, mantendo o lugar limpo. Da família, que, antes do Brasil, viveu em Barcelona, a única que fala português é a tímida Yaqian Chen, de apenas 11 anos.

Em um espaço de apenas 20 m², entre 12 cadeiras dispostas, a reportagem encontrou quatro brasileiros que tentavam se fazer entender em um lugar que não tem sequer cardápio – e no qual só se fala mandarim. Tudo isso, para ter uma “experiência hardcore da culinária tradicional destes orientais”.

A definição do experimento é do coordenador do curso de gastronomia do Centro Universitário UNA, Felipe Tavares. Quem o acompanha é o colega de universidade, o professor Adriano Vilhena, 36. Também no local estão o empresário Aderbal Antunes, 51, e o advogado Lucas Marri, 28. O grupo, com exceção dos colegas, não se conhecia, e criou ali mesmo um canal para trocar experiências sobre restaurantes “curiosos” da capital mineira.

Deles, Antunes é quem frequenta o restaurante há mais tempo – cerca de um ano. Ele chega a estranhar o número de brasileiros que transita pelo local naquele dia: ao todo, oito sentaram-se nas cadeiras. Até bem pouco tempo atrás, o lugar era quase exclusivamente frequentado por chineses. “A gente sente que eles estão abrindo a porta da casa deles”, comenta Tavares, acerca da recepção. Marri não hesita em afirmar que aquele lugar “é o mais perto da China que já chegou”. Tão próximo, aliás, que alguma confusão pode acontecer: Antunes, por exemplo, pediu um bolinho de carne recheado por massa à base de arroz, o gyoza. Mas o que recebeu foi uma sopa do bolinho. “Essa confusão faz parte da experiência”, diz, rindo e experimentando o prato, que, ao final, foi aprovado.

Para Vilhena, o “fato de eles não falarem português e ali acontecer um jogo de mímica, interpretação, contribui para a veracidade da experiência”. Mas, acrescenta, isso só se torna possível porque “a gente está muito aberto a experiências”. Sobre o restaurante, algumas considerações pontuais de Marri: “A localização não é das melhores e o restaurante é meio improvisado, parece que foi criado para atender quase que exclusivamente os chineses que trabalham nos shoppings próximos”. Apesar de tudo, o advogado frisa ter gostado muito – e pretende voltar. “Me surpreendeu pela qualidade e ambiente. Ao chegar, me senti como um turista, um estrangeiro”, comenta.

Foram os jornalistas gastronômicos Daniel Neto, 34, e Eduardo Girão, 35, que “descobriram” o lugar e o divulgaram em suas redes sociais. Eles classificam o restaurante como um de seus melhores achados recentes. “Foi uma experiência até mesmo folclórica”, afirma Girão. Vale frisar que os preços são bem convidativos. Um lagman ou um bifum saem a R$ 12. Chás importados, a R$ 8.

Aposta na identidade

Na região da Savassi, o Sítio Sírio, mesmo modesto, chama a atenção de quem passa. A começar pela música árabe que se ouve no lugar. Narguilés e estatuetas conferem ainda mais identidade à lanchonete, que exibe, na vitrine, especiarias como falafel (bolinho de grão-de-bico frito), quibes, esfirras e, ao fundo, um forno giratório com a shawarma (carne de frango assada na vertical com temperos especiais – e secretos). 

Com sotaque carregado, apesar de já estarem familiarizados com os nossos “uai” e “sô”, os amigos Juny Eshak, 23, natural de Damasco, e Elyan Sokkav, 28, de Hama, trabalham em ritmo alucinante desde que abriram o estabelecimento, há 20 dias.

Eles vieram para o Brasil como refugiados da guerra. Agora, já classificados como imigrantes, podem permanecer no país por mais quatro anos e esbanjam simpatia no atendimento. “Se não gostar, não precisa pagar”, prometem.

Mas, em menos de 15 minutos, durante a passagem da reportagem por lá, sete pessoas que transitavam pela rua Paraíba tiveram o mesmo comportamento: pararam, experimentaram algum prato, repetiram... e ainda levaram mais para casa.

Foi o caso da brasileira Luciene Lawinsky. A judia tinha hábito de preparar falafel em casa, até a abertura do Sítio Sírio e do Arábica – também comandada por migrantes sírios. Na verdade, Luciene desconhecia a existência da lanchonete, de onde saiu com sacolas cheias. E sim, com a intenção de voltar mais vezes.

Outra passante, a aposentada Teresa Cecília, 61, chegou um pouco desconfiada. Não conhecia nenhum dos pratos expostos na vitrine, mas, incentivada por outros clientes, decidiu experimentar. “Sabe, descobri que, na outra encarnação, fui árabe”, comentou, rindo, enquanto pedia um quibe. Por fim, antes de ir, levou mais para os netos.

Desde que abriram o Sítio Sírio, os rapazes se esforçam para atender a todos os clientes, nem que para isso tenham que trabalhar todos os dias da semana. 

De segunda a quinta-feira, chegam ali às 9h30. Até as 11h, se esmeram em fabricar os lanches. Por volta de 11h30, abrem as portas, atendendo até às 23h. Sextas e sábados, estendem a jornada noite adentro, fechando apenas às 2h da madrugada. E ainda encontram disposição para mais um expediente, entre 17h e 0h no domingo. A fidelidade à tradição é outra característica do estabelecimento, que tem os sanduíches de shawarma, que leva frango, e de falafel como carros-chefes. 

'Cápsula' do tempo-espaço

O escritor francês Michel Proust já havia identificado no paladar e no olfato a capacidade de despertar memórias, até então, desconhecidas. Esse resgate do passado veio acompanhado de bolinhos madeleines e uma xícara de chá. Foi dessa constatação que surgiu a icônica obra “Em Busca do Tempo Perdido” (1913- 1927).

O tradutor juramentado e poeta enogastronômico Ricardo Paolinelli adicionou elementos físicos ao entendimento proustiano. “Esses restaurantes não são locais comerciais puramente, eles são cápsulas de lugares que não estão aqui, mas do que está distante. Então, entrar numa cápsula de imersão total gastronômica é maravilhoso”, sentencia.

Para Paolinelli, a fidelidade dos pratos se deve ao fato de alguns deles estarem há pouco no Brasil. Portanto, não foram aculturados. “Eles chegaram com a tradição gastronômica puríssima dentro daquilo que conhecem na cozinha. Apresentaram aquilo que estava no repertório deles. E isso é ótimo para a cidade”, elogia.

O tradutor acredita que estes restaurantes não apenas servem pratos étnicos. Seriam inteiramente étnicos, inclusive no lidar com o dinheiro. “Normalmente, essas culturas multitudinárias, Índia, China, populações bilionárias numericamente... A relação deles com o alimento é muito diferente da relação ocidental. Os chineses e indianos, por exemplo, acreditam mais na constância do consumo do que no lucro imediato”, analisa. 

A característica, aliás, pode explicar porque estas novas casas trabalham, em sua maioria, com preços populares.

Start

Enquanto Paolinelli é um entusiasta da possibilidade de que BH venha a consolidar um roteiro de culinária transnacional, Eduardo Girão tem o contraponto. “Belo Horizonte não tem a mesma vocação de São Paulo ou do Rio de Janeiro em receber tantos turistas ou negócios. O que aconteceu aqui foi um pouco um acidente de percurso”, indica o jornalista.

Ele lembra que, no caso dos indianos, há quatro restaurantes dessa etnia. “Acontece que todos eles passaram pelo Maharaj (Funcionários). Foram os chefs de lá que abriram o Namastê (Prado), o Bhagwan (Sagrada Família) e agora, mais recentemente, o Indian Gourmet”, examina.

"No caso dos sírios, eles vieram por uma questão de uma realidade política e social. Já os chineses surgiram por conta de uma realidade local (comerciantes do país se instalaram no centro da cidade a ponto de o mandarim ser a segunda língua mais falada na região)”, indica. Portanto, argumenta, ainda é algo pontual que talvez, no futuro, possa servir como um start de uma tendência. 

Especiarias e forno típico no indiano

 

Os temperos e especiarias são importados da Índia. O forno típico do país, o tandoor, essencial para o preparo de pratos, também foi confeccionado sob medida. Feito de barro, em uma cavidade no chão, o equipamento chega à marca de 200 ºC. 

Tudo devido à preocupação de entregar os pratos o mais próximo possível do modo como são feitos na Índia. Comandado pelos chefs Sunil Bhandari, 32, e Virendra Lingh, 31, de Dehradun, o restaurante Indian Gourmet aposta em um cardápio com a comida mais tradicional daquele país. 

A massa do pão é presa diretamente na parede do forno, assando-a rapidamente. E o cliente nem precisa esperar muito: em menos de dois minutos, o naam (espécie de pão indiano) fica pronto. 

A entrada é servida com molhos de damasco e de manga. Para agradar o paladar brasileiro, os chefs fazem apenas uma concessão: usam a pimenta com moderação. Nestes primeiros meses de funcionamento – o restaurante foi aberto em dezembro do ano passado – , Sunil observa que a maior parte dos clientes já conhece a culinária indiana. Muitos deles, de viagens para o exterior, afirma.

Culinária andina e política social

Sem medo de levantar bandeira política no seu modo de preparar comida, o Pukara é uma pequena revolução culinária no Santo Antônio. Uma das utopias do restaurante é levar o Brasil para mais perto dos seus hermanos. Mas não é só. A chef Diony Gallegos explica que questões sociais, ambientais, das mulheres, o vegetarianismo e até a nutrição se misturam à bandeira latina da casa.

Natural de Arequipa, no Peru, a chef e artista plástica veio para o Brasil há 20 anos, para uma pós-graduação em História da Arte, pela Universidade de São Paulo. “Em seguida, vim para Minas, buscar as montanhas”. Na época, lembra de sentir que o país estava distante de seus pares ibero-americanos. Foi o que a motivou a trabalhar pela fundação, em 1999, da Casa Latina, “um grupo de solidariedade e integração”.

“A gastronomia sempre foi parte importante da integração das culturas”, diz. Mas só há três anos nascia o Pukara (“fortaleza”, em quechua, um dos idiomas falados no Peru). Hoje, o restaurante busca resgatar receitas dos povos andinos, como o pesque de quinoa, chupes (variedade de sopas e temperos andinos) e aji de calabaza (prato à base de aji, uma pimenta peruana). Lá, não há um cardápio fixo entre quarta e sexta. Já na terça, o cliente sempre encontra comida vegetariana. No sábado, é a vez do disputado ceviche. “Quem vem já sabe que um ceviche preparado por mãos peruanas sai diferente”, garante.

Outro diferencial são vegetais sem agrotóxicos, comprados de feiras orgânicas e pequenos produtores. O peixe é sempre o mais fresco possível. E a dieta foi elaborada por uma nutricionista peruana, Laura López. Engajada, Diony busca mão-de-obra junto à Casa de Referência da Mulher Tina Martins.

Hoje, ela festeja a mudança de mentalidade brasileira, principalmente nos últimos dez anos. “Crianças e jovens começaram a se interessar mais”, vibra. Prova é que, ao meio-dia, é impossível entrar no restaurante. “As pessoas vinham curiosas e foram ficando, ficando... Agora, a casa fica cheia”. 

Exemplos de restaurante de raiz

Étnicos São muitos os restaurantes que imprimem sua nacionalidade e permitem uma experiência interessante em BH. A cozinha japonesa, italiana, francesa e indiana, por exemplo, já estão introjetadas no dia a dia da cidade há tempos. Abaixo algumas casas abertas mais recentemente na capital percorridas pela reportagem.

Chinês
- Chinês do Oiapoque – Rua Curitiba, 130, Centro, 3º andar. 
Indiano 
- Indian Gourmet – Rua Alvarenga Peixoto, 595, Lourdes. (31) 2555-9005.
Peruano
- Pukara – Rua Leopoldina, 577, Santo Antônio. 
Sírio 
- Sítio Sírio – Rua Paraíba, 1378, loja 120, Savassi. (31) 99400-0849
Arábica Lanchonete – Avenida Brasil, 777, Santa Efigênia. (31) 97591-5919