Reportagem

Quando a sala de aula é o mundo

Movimento que defende a aprendizagem fora da escola e a não utilização de qualquer recurso proveniente dela, a desescolarização divide opiniões

PUBLICADO EM 04/10/14 - 03h00

Thor está quase completando 6 anos e é muito ativo. Ele adora pintar, desenhar e folhear livros por horas em sua casa em Belo Horizonte. Menino curioso que é, Thor gosta de pesquisar sobre tudo que chama sua atenção e o tema da vez tem sido piratas e as criaturas dos sete mares.

Gaia mora em São Paulo, já tem 6 e é uma garota de personalidade forte. Ela sabe que todo mundo é diferente e que cada um tem seu próprio jeito de fazer as coisas, o dela é brincar com quem estiver disposto a se sujar e se divertir sem limites.

Amani é mais novinho, ainda não completou 4 anos, mas se mostra superatento quando o assunto é dinossauro. Terra e tinta têm lugar cativo no seu dia a dia em Uberlândia, no Triângulo Mineiro, o que enlouquece um pouco seus pais.

Até aí, nenhuma diferença aparente de Thor, Gaia e Amani com relação a outras crianças. A não ser por um aspecto: elas não frequentam a escola. Os três são filhos de pais que escolheram não matriculá-los em nenhuma instituição formal de ensino.

Adeptos do “unschooling” ou, como tem sido chamada em português, “desescolarização”, eles procuram estimular a aprendizagem da criança tendo como ponto de partida os seus próprios interesses. Movimento que ganha corpo no mundo, a modalidade de ensino – ou estilo de vida – é tema que gera polêmica entre os pedagogos e já tem aproximadamente mil famílias adeptas no Brasil, segundo a filósofa e pesquisadora de aprendizagem sem ensino Carla Ferro.

E ganhou visibilidade na última semana com a exibição, no Festival do Rio, do documentário francês “Vivendo e Aprendendo” (“Being and Becoming”), que aborda a vivência dessas famílias em diferentes países .

O desequilíbrio existente entre professor e aluno e a negação do erro são algumas das principais críticas dos praticantes do “unschooling” ao ambiente escolar como o conhecemos. Como alternativa a isso, o que mais atrai a mineira Lis Oliveira, mãe de Thor, é a capacidade de as crianças buscarem conhecimento por elas mesmas na desescolarização.

“O papel dos pais é transformar as crianças em autodidatas. Nós somos tutores. Ensinamos os primeiros passos e eles fazem o resto no seu próprio ritmo e de acordo com a sua curiosidade. As crianças são naturalmente curiosas e, infelizmente, muitas vezes a escola tira isso delas”, justifica Lis, que não trabalha fora e se dedica integralmente à educação dos dois filhos – ela também é mãe de Thrud, de 1 ano e 9 meses. Neste contexto, qualquer acontecimento pode virar o pontapé inicial para um aprendizado. Como no dia em que uma mera brincadeira de piratas se transformou em um estudo sobre o fundo do mar.

Participando de dois grupos de discussão no Facebook, Lis encontrou outras famílias com estilos de vida parecidos que trocam vivências, marcam encontros e exploram a cidade junto com suas crianças.

Liberdade

Por sua vez, a paulistana Carla Ferro, mãe de Gaia, quando pensa na vida fora da escola pensa em liberdade. “A liberdade de aprender o que, como, onde e junto a quem se quer aprender favorece infinitamente a aprendizagem, desde que os ambientes sejam abertos à livre interação entre as pessoas”, comenta ela, cujo trabalho com consultoria permite um horário bem flexível, o que facilita essa vivência.

“Minha filha me acompanha quando é possível, da mesma maneira como eu me organizo para estar com ela em suas redes de amigos e interesses. Ela convive com muitas pessoas, de todas as idades, e suas oportunidades de brincar, aprender e conviver são abundantes e múltiplas. Como as minhas, e não necessariamente as mesmas. Todos os dias temos experiências marcantes que renovam nossa escolha. Sou muito aberta a ouvir todos os tipos de críticas, que levo em consideração de verdade, por estar lidando com algo muito importante, que é a própria vida”. A ideia é que o aprendizado não seja responsabilidade de uma única pessoa, mas compartilhamento e troca, e para isso, nada melhor que coletivos que, segundo Carla, têm surgido em vários bairros de todo o país.

Impacto

Apesar de o termo ter sido cunhado pela primeira vez na década de 1970, a desescolarização ainda é incipiente e carece de pesquisas acadêmicas mais aprofundadas sobre o impacto dessa modalidade de ensino sobretudo nas famílias. Não faltam estudos de várias universidades pelo mundo que apontam o sucesso dessas crianças no futuro.

Já a questão familiar, principalmente o papel da mãe, que é quem costuma adaptar sua vida e muitas vezes para de trabalhar para se dedicar ao ensino dos filhos, ainda precisa ser melhor analisado. Enquanto isso, pais trocam experiências em grupos na internet, promovem encontros e buscam referências em outros países.

Medo do futuro? Nenhum. “Hoje tudo muda tão rápido, desde o mercado de trabalho até as possibilidades de viver fora da lógica desse mercado. Portanto, eu acho que seria perda de tempo me preocupar com o futuro profissional. O meu mesmo, o das crianças e dos jovens. Prefiro me preocupar com o presente, não perdê-lo tentando prever o futuro”, afirma Carla.

Escola permite vivenciar as diferenças Livro didático: o dia a dia

Para o pedagogo Fabio Schebella, limita-se muito quem pensa que a escola é o único lugar de socialização da criança. No entanto, ainda que essa rede de interação seja extensa, de acordo com o professor da Faculdade de Educação da UFMG, Luciano Mendes de Faria, a escola ainda é o ambiente que melhor expõe as crianças ao conflito, e isso não é, nem de longe, algo negativo.

Para ele, como os motivos para sair da escola são os mais diversos, sejam políticos, morais e/ou religiosos, e mesmo acreditando proporcionar convívios intensos, os pais acabam por selecionar, em alguma medida, que tipo de convívio eles querem para os filhos, diminuindo assim as chances de aprendizado com o choque diante de uma real diferença.

“O mais problemático é retirar o conflito com o outro. Ainda que da mesma idade ou oriundas da mesma classe social, as crianças trazem experiências pessoais diferentes e aprendem a lidar com isso. Acho difícil falar em vantagens e desvantagens, mas há que se entender essa retirada dos filhos da escola como um questionamento a tudo que ela representa”.

UNSCHOOLING X HOMESCHOOLING

Não há que se confundir a desescolarização (unschooling) com a educação domiciliar (o homeschooling), apesar de serem termos que andam juntos quando o assunto é pensar a aprendizagem para além dos muros da escola. De acordo com o pedagogo Fabio Schebella, a principal diferença entre os dois é a forma como os pais concebem a educação dos filhos.

“Enquanto os pais homeschoolers instruem seus filhos através de uma variedade de currículos, métodos e materiais que, muitas vezes, são semelhantes ou idênticos aos utilizados pelo sistema escolar, os unschoolers defendem a não utilização de qualquer recurso proveniente da escola”, explica.

O SABER NÃO ESCOLHE LUGAR

Cassio Dias, o pai do pequeno Amani – citado no início desta reportagem – é do tipo que não pode nem ouvir falar em escola. E não pense que é porque ele foi uma criança teimosa, que inventava desculpas para não cumprir com tal obrigação. Tendo estudado ciências sociais e trabalhado durante um tempo com educação infantil, ele via no seu dia a dia cada vez mais a distância entre a realidade e seus ideais de aprendizagem. O contato com a desescolarização pareceu-lhe uma alternativa e um alívio, ainda mais quando soube que seria pai.


“A desescolarização foi realmente um boom em nossas vidas e mentes. Tudo fazia muito sentido. Eu, particularmente, observei com grande clareza a situação escolar em que vivia diariamente. Mais do que isso, recordei toda minha vida escolar. E todos os traumas e aversões que tive da escola vieram à tona”, comenta Cassio, que saiu da experiência com a certeza: “Nós somos capazes de educar nossos filhos”.

Como ensinar

A recusa à ideia de escola é um tema tão complicado e controverso quanto o é o de que qualquer pessoa pode ensinar outra de forma satisfatória, mesmo não sendo um professor habilitado. O pedagogo e estudioso da educação domiciliar Fabio Schebella argumenta que o ensino por parte dos pais não pode ser um empecilho para o ensino domiciliar, uma vez que nenhuma pessoa sai da faculdade verdadeiramente apto a lecionar sem antes se preparar bastante sobre qualquer que seja o tema.


Mas, convenhamos, mesmo com todos os problemas enfrentados pela escola brasileira, nem todo mundo tem a possibilidade de se dedicar integralmente ao ensino dos filhos, por vários motivos, dentre eles a necessidade de trabalhar dobrado para garantir o sustento das crianças. As experiências das famílias que optaram pela educação domiciliar ou pela desescolarização mostram que é preciso, acima de tudo, tempo e dedicação, mas isso não precisa ser exclusivo de quem não frequenta a escola.


“Jogar toda a responsabilidade da educação e da formação das crianças e dos jovens nas escolas não é o caminho certo. A responsabilidade é de todos os membros da sociedade, principalmente dos familiares, que têm o dever de proporcionar ambientes ricos em estimulação cognitiva, desde o nascimento do bebê”, comenta o pesquisador do Laboratório de Investigação da Arquitetura Cognitiva (LaiCo) da UFMG, Hudson Golino.

Convívio

E isso certamente estará presente na vida do pequeno Teodoro. A empresária Clara Karmaluk, que assim como Cassio tem várias ressalvas com relação à escola formal, mergulhou nas leituras sobre a desescolarização. Por conta do trabalho, seu filho, hoje com 4 anos, passou a frequentar uma instituição de ensino, mas o tempo que compartilham juntos é uma inesgotável fonte de saber. Para os dois.


“A gente cozinha juntos, colore juntos, corre, escuta música, escala morro, e no meio tempo conversa sobre como as pedras de um jardim ficaram arredondadas, como a lava que sai do vulcão vira pedra, como que a montanha vira areia, como que ao pintar um desenho as cores primárias viram todas as outras cores, como os dinossauros comiam árvores inteiras, vamos ao museu sempre...”, conta.


Escolarizados ou não, portanto, o aprendizado deve extrapolar os muros da escola. É o que defende a socióloga e diretora pedagógica do Instituto Libertas, Andrea Zica. “Os esforços pela educação precisam ser convergentes entre escola e família. Se o filho questiona ou comenta algo, os pais devem se interessar, indagar, estimular. O conhecimento é revelador, integra as pessoas”.


"Vivendo e aprendendo"

O documentário “Being and Becoming” (em tradução literal “Ser e vir a ser” ou, como tem sido divulgado nos festivais “Vivendo e Aprendendo”), em cartaz atualmente no Festival do Rio, apresenta a experiência de famílias “desescolarizadas” nos Estados Unidos, França, Inglaterra e Alemanha.

Em entrevista ao Pampulha, a diretora francesa Clara Bellar conta que teve contato com a desescolarização quando começou a pensar o tipo de educação que desejava para seu primeiro filho, o que muitos pais devem estar vivendo agora em outubro. “O que me intrigou bastante foi conhecer crianças que não eram escolarizadas e ver como estavam felizes, seguras, interessantes e interessadas em tantas coisas”.

Para ela, embora cada família descubra suas próprias formas de aprendizado, um aspecto em comum é a liberdade dada ao pensamento das crianças. “Todas elas são livres pensadoras, questionam tudo e inventam suas vidas fora dos padrões ou dos limites preestabelecidos”, conta.
Clara foi convidada pelos grupos de discussão sobre unschooling no Facebook para vir ao Brasil compartilhar as vivências da produção do documentário e trocar saberes em encontros especiais com projeção do filme no Rio e em São Paulo.

Belo Horizonte não receberá a visita da diretora, mas os mineiros poderão assistir à obra em evento previsto para acontecer até o fim de novembro, segundo informações da produtora Tatiana Perez, da Organika Produções. Acompanhe pelo site: sereviraser.wordpress.com.

O QUE DIZ A LEI

Teste
No Brasil, ao contrário de outros países, a legislação não admite o ensino domiciliar, tornando obrigatória a matrícula das crianças em alguma instituição escolar.

Lacuna
No entanto, argumenta-se que o texto apresenta lacunas que podem ser usadas a favor do ensino em casa, como o fato de ele tornar obrigatória a “educação” da prole, mas não definir exatamente onde, comenta o pedagogo Fabio Schebella.

Certificado
O limbo jurídico é ainda reforçado pelo fato de mesmo quem não frequentou a escola poder solicitar o certificado de conclusão do ensino médio para a realização de exames como o Enem, por exemplo.

Pontos
Para obtê-lo é só atingir uma pontuação mínima estabelecida em cada área e na redação, conforme as informações do Inep (http://portal.inep.gov.br/web/enem/certificacao).

Campanha
Está em andamento uma petição no site de campanhas online Avaaz para a regulamentação do ensino domiciliar, com quase 1300 assinaturas.