Reportagem

Amigos, amigos, eleições à parte

Corrida eleitoral esquenta clima nas redes sociais e abala relações de internautas com amigos e familiares. Campanhas bem-humoradas advertem: é preciso amar como se não houvesse eleições

PUBLICADO EM 18/10/14 - 03h00

Passeando pela linha do tempo do Facebook, me detenho numa foto avermelhada cuja postagem declara o cancelamento das atualizações de mais de 30 amigos. Mais uma rolagem de barra e um desabafo de quem não fala com o pai há dias por causa de um compartilhamento polêmico de cunho político. Mais abaixo, discussões quilométricas, denúncias, indiretas, troca de farpas, invasões de posts e até mesmo algumas grosserias. Em meio a tudo isso na timeline, um apelo: “É preciso amar as pessoas como se não houvesse eleições”.

Nunca antes na história desse país as redes sociais estiveram tão permeadas pelo embate político. Num cenário de polarização acirrada como neste segundo turno do pleito presidencial, é difícil não se envolver. Mais difícil ainda é encontrar quem não tenha sido atingido, ao menos de raspão, pelo bombardeio de exasperação, discórdia, bloqueios e rompimentos nessa fase de tudo ou nada. Tema com vocação para a polêmica desde sempre, as eleições deste ano ganharam uma pitada a mais de pimenta com a mobilização e a repercussão online, e, apesar de desafiador, é possível debater sem perder a compostura.

“Acho que a opinião divergente é um contraponto. Vejo mais como uma soma de ideias do que como discordância grave. Muitas vezes, as pessoas com quem eu converso querem usar o voto para chegar ao mesmo objetivo que eu, só que por vias opostas”, opina João Paulo Gonzaga de Faria, 28. O médico entende como saudável a divergência e vê como problemática a opinião extremista e intransigente, que confunde as discussões e passa a abordar outras questões que não as políticas. Segundo ele, muita gente confunde opinião assertiva com intransigência e torna a troca de argumentos inviável.

“A princípio, a internet é um espaço para a diversidade, mas ela tem caminhado para um lugar de intolerância. A rede social, em vez de promover a conversa entre diferentes, está promovendo guerra. E isso acontece quando todo mundo se acha o dono da verdade”, diz João, que gosta de discutir política em todo lugar, mas só com aqueles que não carregam pedras nas mãos.

De Fernanda Caldeira, sua amiga há mais ou menos cinco anos, por exemplo, João discorda quanto à opção pelo melhor comandante do Brasil nos próximos quatro anos. Ele vota no tucano e ela apoia a petista. No entanto, nem essa dicotomia ideológica é capaz de tornar o diálogo difícil entre eles.

“Eu não tenho partido, mas tenho uma visão mais à esquerda, então na conjuntura política dessa eleição, estou ajudando a fazer campanha para a Dilma (Roussef, candidata do PT à reeleição). Tenho alguns amigos que vão votar no Aécio (Neves, candidato do PSDB) e que também estão militando. Às vezes, eles apelam e sai faísca, mas com o João dá pra ter discussão saudável com argumentos, sem levar pro lado pessoal”, comenta a estudante de ciências sociais da UFMG, dando a dica para que o papo não passe dos limites: maturidade e posicionamentos embasados. “Saber defender suas ideias e saber ouvir é a chave”, diz.

A falta de ambos os requisitos – informação e flexibilidade – foi a soma que resultou na saída de Paula Delucca de um grupo do Whatsapp formado por amigas de colégio. Por ser a exceção à opinião unânime das outras meninas, a engenheira se sentiu hostilizada e falando para as paredes. “As meninas faziam campanhas pesadas, com muita grosseria e muita besteira. Chegaram a falar que vão cortar relações com quem votar diferente e comentavam sobre ameaçar o porteiro e a empregada se eles não votassem no candidato delas. Quando chega num nível desses, quando ninguém está disposto a ceder e ouvir, não dá. A melhor coisa é ignorar”, conta.

Barraco não tem força

O sentimento que motivou Paula a desistir da conversa pelo aplicativo levou dois psicólogos da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, a estudar a eficácia do embate verbal agressivo – aquele que tem o objetivo de convencer o outro a todo custo de que ele está equivocado. A conclusão: a briga não leva a nada.

O estudo liderado pela dupla Leonid Rozenblit e Frank Keil atesta a existência da “ilusão da profundidade de explicação” que assuntos como a política provocam nas pessoas. Neste sentido, a troca de ideias é mais eficaz. A pesquisa mostra que quando alguém é levado a dar explicações mais específicas acerca de determinado assunto, acaba reconhecendo que entende menos sobre aquilo do que supunha. E se torna mais suscetível a mudar de ideia.

Baseados no preceito de que contra fatos mal contados há argumentos sim, os jornalista Glauber Guimarães tenta colocar panos frios nas discussões advogando no Facebook em prol de um melhor entendimento dos temas. “Sempre tento argumentar com fontes e notícias, provando o contrário ou propondo um olhar mais atento sobre aquilo que acho duvidoso. Deixo meu apoio claro, mas não tento convencer ninguém. Prefiro esclarecer”, afirma Glauber.

 

AMIGOS E RIVAIS

Desde março, o uruguaio César Charlone não é mais sócio do cineasta Fernando Meirelles na produtora O2. Antipetista, Meirelles se engajou na campanha de Marina Silva e Charlone defende a reeleição de Dilma Rousseff. Segundo eles foi um “divórcio ideológico amigável”.

O clima esquentou entre os atores Thiago Lacerda e Paulo Betti no Facebook. Lacerda se irritou com uma publicação de Betti que ironizava uma reunião de artistas na casa de Luciano Huck e Angélica, apresentadores da Globo, em apoio ao candidato do PSDB à presidência, Aécio Neves. 

 

REDE PAUTA CAMPANHAS

Na eleição mais conectada de todos os tempos, é natural que fique a impressão de que quase nada mais está acontecendo e que tenha crescido, na sombra do número de internautas, a quantidade de denúncias por crime de ódio na internet. Dados da Safernet – entidade que defende os Direitos Humanos na web – indicam que durante a semana que antecedeu a votação de 5 de outubro houve 3.734 denúncias – mais do que o triplo do acumulado no mesmo período no ano passado, quando ocorreram 1.221.
 
Buscando alívio nas altas taxas de comentários preconceituosos e de conteúdo ofensivo, o Ministério da Justiça lançou uma campanha de conscientização nas redes sociais para lembrar aos internautas que exercitem a liberdade de expressão sem afrontar a honra e a dignidade alheias. “O mundo mudou para dentro do Facebook e eu não consigo nem preparar minhas aulas”, brinca a coordenadora do Observatório das Eleições do Centro de Convergência de Novas Mídias da UFMG, Regina Helena Alves da Silva. “A política é feita de embates, dissenso entre duas ou mais partes. É ruim o argumento da agressão pela agressão, o preconceito, o racismo. Mas acho interessante essas demonstrações nas redes porque está caindo a pretensa máscara do homem cordial e ordeiro. Nós somos um país violento e a novidade é que agora ficou claro que a classe média também é nervosa. Estamos só mostrando a nossa verdadeira cara”, comenta Regina, que vê como positivo o fato de que temas considerados tabus agora tenham visibilidade, mesmo que por meio de declarações condenáveis. “Os diferentes posicionamentos são importantes para consolidar a democracia”, diz.
 
A doutoranda em ciência política da UFMG Érica Baptista concorda e diz mais: as discussões na internet estão pautando as campanhas e muita gente está embarcando em reflexões sobre a política por causa do burburinho propagado pela rede. 
 
“O que mais se vê hoje é a convergência de mídias. A internet está definindo novos contornos para as campanhas e vice-versa. É um cenário de disputa muito feroz entre os candidatos e é normal que o pessoal queira defender lados. E geralmente funciona assim: tanto na internet, como fora dela, a gente tende a procurar grupos que tenham ideias similares às nossas. Quando alguém se infiltra com uma opinião, é massacrado. Nós temos dificuldade em admitir opiniões contrárias e isso reflete no que a gente tem visto na internet”, explica Érica, que vê muita gente torcendo mais pela vitória de um candidato para estar certo do que por outros motivos.
 
“Tem gente que só quer mesmo que o candidato vença para que o seu argumento saia vencedor. Na última semana, um debate foi exibido em bares aqui de Belo Horizonte. Foi primeira vez que vi isso. É quase uma final de campeonato”, comenta a pesquisadora, defensora da ideia da transmissão em ambientes informais. Ela vê com bons olhos a iniciativa por imaginar que a mesa de bar seja uma boa aliada da internet para desmitificar a política, que hoje é tão rechaçada e tão pouco discutida por grande parte da população. 
 
“Colocar o debate político em ambientes menos formais suaviza o assunto. É preciso tirar da cabeça das pessoas a ideia de que política é discutível por poucos. Ela é e, na verdade, deve ser discutida por todos”, conclui.
 
Ao alcance do clique
 
“Acho que as pessoas estão vendo agora que os filtros realmente existem na mídia tradicional e tornando as redes sociais como fontes oficiais de informação sobre política. Elas estão entendendo que política não é só eleição e, inevitavelmente, o Facebook foi invadido por esses assuntos. Querendo ou não, gostando ou não, elas estão tendo acesso a isso”, complementa Érica que, no entanto, afirma ainda ser cedo para tirar conclusões mais profundas. “A internet certamente não é essa esperança de salvação que depositam nela, mas que este é um movimento importante, sem dúvida”.