Caio Fernando Abreu

Cada vez mais essencial

Nascido há 70 anos, o saudoso autor é, hoje, um dos mais citados na web

PUBLICADO EM 14/09/18 - 16h02

T-shirts, canecas, pôsteres e até adesivos decorativos para paredes tratam de propagar as frases (e, em decorrência, ideias) de um jornalista e escritor gaúcho que, morto precocemente, em 1996, segue ampliando seu séquito de fãs. Sim, estamos falando de Caio Fernando Abreu, cujos 70 anos de nascimento foram lembrados no último dia 12, com homenagens Brasil afora – incluindo a do gigante Google, que, em sua página inicial no país, dedicou um doodle a ele, na última quarta-feira.

Muitos desses tributos, na verdade, vão além da efeméride alusiva às sete décadas: caso da obra “Contos Completos”, que a Companhia das Letras colocou recentemente no mercado. Ou, ainda, da exposição “Doces Memórias”, que, aberta ao público na última quinta-feira (13), no Museu Nacional da República, em Brasília, segue em cartaz até o próximo dia 28.

Em meio a essa movimentação, um aspecto em particular chama atenção: a parcela de jovens que compõe o séquito de fãs do autor. Gente como a estudante de jornalismo belo-horizontina Isabela Boechat, de apenas 23 anos – ou seja, tinha apenas um ano de vida quando Caio Fernando Abreu se foi. Já há alguns anos, ela se assume como uma “fã de carteirinha”. Mas o que faz com que o autor tenha, no curso dos anos, adquirido o status de ícone pop, com direito a frases replicadas a torto e a direito nas redes sociais? E, afinal, ser um fenômeno nas redes é bom ou ruim?

Para a primeira pergunta, a jornalista Paula Dip aventa uma hipótese. “Sua escrita apaixonada e enigmática nasceu num período de repressão política, social e comportamental. Marcou sua geração, e estará sempre à frente da vanguarda estética e existencial. É isso que encanta os jovens de hoje – e continuará encantando gerações”, entende a autora da biografia “Para Sempre Teu, Caio F.” (Record), hoje na sua quinta edição, e, ainda, de “Numa Hora Assim Escura” (José Olympio/Record), que reúne as cartas trocadas entre Caio e Hilda Hilst (1930 – 2004).

Mais do que uma biógrafa, porém, Paula foi colega de Caio na redação da editora Abril – e amiga de trocar cartas e bilhetes. Não por outro motivo, analisa que o fato de as frases de Caio terem se popularizado era previsível – ainda que possa ser visto como uma faca de dois gumes. “Tem um lado bom, pois mostra o quanto ele é lembrado e querido, e como suas frases são profundas e significativas. Por outro lado, muita gente acha que ‘leu as frases, conhece o Caio’, o que não é verdade. Insisto sempre que é preciso ler a obra completa dele”, pontua ela, que não se furta a dar uma dica. “Comece pelo romance ‘Limite Branco’ e vá comprando, em sebos, os livros de contos, o teatro completo, as crônicas... Finalize com ‘Onde Andará Dulce Veiga’”.

Vale tomar nota, mas, no caso da estudante Isabela, a porta de entrada para o universo de Caio Fernando Abreu se deu por meio de “Morangos Mofados” (1982), livro que ganhou da mãe ao completar 15 anos. Fato: a estudante reconhece que, à época, não tinha repertório suficiente para acessar as entrelinhas. “Na verdade, por ser muito denso, achei confuso”, rememora.

Algum tempo depois, ao resgatá-lo da gaveta, veio o que ela nomina como um “baque”. “Fui ficando instigada. E virou paixão, inspiração”. Cooptada, encontrou na amiga e colega de faculdade Lara Alves o incentivo que faltava para mergulhar ainda mais fundo neste universo: juntas, e para o curso, as duas chegaram a fazer um programa de rádio sobre a vida do gaúcho, de quem Isabela destacaria, hoje, os contos “O Rato”, “Aqueles Dois” e “O Mar Mais Longe Que eu Vejo”; ou a carta a (ao escritor) Sérgio Keuchgerian.

Independentemente do “primeiro Caio Fernando Abreu” a ser lido, o apreço dos jovens pela obra do autor gaúcho é atestado pela própria irmã do autor, Cláudia de Abreu Cabral. “Acho que a obra do Caio sempre atraiu muitos jovens pelo fato de que tudo que ele escreveu parece ter sido escrito ontem – e também por ele ter vivido intensamente sem se importar em ser outra coisa que não fosse ele mesmo”.

A opinião vai ao encontro do que pensa Juarez Guimarães Diaz, diretor do solo “Eu Caio”, que traz, em cena, o ator Matheus Soriedem. “Caio Fernando Abreu era um autor muito sintonizado com a perspectiva do eu, o que o aproxima do universo das redes, no qual todos querem se manifestar. Ele escrevia muitos textos em primeira pessoa, dos quais emergem o seu eu. E suas angústias pessoais ganham o reconhecimento dos jovens. Toda as questões que viveu estão muito próximas às que vivemos hoje”, aponta, ressaltando, ainda, o viés de “melancolia” que permeia a obra do autor. “Nas redes, hoje, a gente percebe que os jovens estão vivendo essa crise de ansiedade, e mesmo de depressão”.

Mas, claro, nada disso justificaria o fenômeno se não houvesse o lastro qualitativo, como confirma Paula Dip. “As histórias de Caio possuem um valor artístico e histórico, são como que um depoimento geracional cujo valor – poético, metafórico e alegórico – é inegável. É único: ninguém escreve como ele, e tudo o que nos deixou leva sua assinatura peculiar. É um clássico, não apenas na forma, mas, e principalmente, no conteúdo: trata de questões eternas e definitivas para o ser humano em qualquer tempo ou lugar”.

A atriz Deborah Finochiaro, um dos nomes à frente do espetáculo “Caio do Céu”, que foi apresentado na abertura da mostra dedicada ao autor em Brasília, complementa ressaltando a sonoridade dos textos do saudoso conterrâneo. “A escrita dele é muito musical, tem a beleza da métrica, ele era impecável na construção do texto, que era muito burilado, pensado milimetricamente. Você percebe que cada palavra está no seu lugar”, diz ela, que integra a companhia Solos e Bem Acompanhados.

Para Deborah, o que mais fisga o jovem leitor na obra de Caio Fernando A breu é, sem dúvida, a sinceridade. “Ele sempre foi muito sincero na forma de abordar a alma humana, trazendo à tona questões que ainda hoje soam urgentes neste país doido que a gente vive”. E não só. “Também o assumir quem se é (seduz o público) – no caso dele, homossexual, portador do vírus da Aids. Porque o sistema tenta nos conduzir à boiada, nos anestesiar. E o jovem quer mostrar quem ele é, se manifestar”.

 

Muito além das frases replicadas nas redes

É fato: quem teclar “frases de Caio Fernando Abreu” nos sites de busca será conduzido a dezenas de opções – prova incontestável da popularidade do autor no universo virtual. Mas se, como levantou a biógrafa Paula Dip, esse fenômeno não deve substituir a leitura da obra, o ator Odilon Esteves está convencido de que, sim, pode ser um facilitador. “Muita gente está inclusive descobrindo Caio Fernando agora graças às redes sociais – e não vejo essas citações, que às vezes são criticadas, como algo negativo. Ao contrário. É possível que aquela frase, digamos, ‘descontextualizada’ sirva para alguém, e que isso gere nesta pessoa a curiosidade e o desejo de conferir o parágrafo na qual está inserida. E chegando a ele, quem sabe não se anime a ler o conto inteiro, o livro inteiro... Uma coisa pode puxar outra. Veja, não necessariamente vai puxar, mas pode puxar. E, se não, ao menos a pessoa terá sabido que existe um autor brasileiro chamado Caio Fernando Abreu”, advoga.

O ator lembra ainda a quantidade de memes ou frases de gurus que circulam nas redes. “Então, quando tem também de literatura, gosto, fico feliz. Para mim, não vulgariza ou superficializa. Vejo como um convite a conhecer o autor com o qual a pessoa se identificou por meio de uma frase”.

Odilon, vale lembrar, é integrante do grupo Luna Lunera, que tem, em seu repertório, a montagem “Aqueles Dois”, baseada no conto homônimo do escritor. A peça, vale dizer, foi um divisor de águas na trajetória da companhia mineira. “A gente vinha, desde 2006, vivendo uma crise interna. E quando começamos a fazer um trabalho de improvisação a partir de Caio Fernando, um afeto muito forte renasceu entre a gente. A gente costuma dizer que vivia um período de repartição, a burocracia daquela repartição narrada no conto. Isso é uma elaboração psicanalítica minha, mas acho que a gente se viu refletido ali, no conto. Naquele deserto de almas, naquele ambiente tão árido e burocrático de trabalho, onde um encontro muda e ilumina a vida de duas pessoas. Foi o que aconteceu na nossa vida naquele momento, de uma crise seca”.

“Aqueles Dois”, aliás, é citado pela poeta Adriane Garcia. “É um conto magnífico, sobre uma relação secreta entre dois homens numa desértica repartição, secreta até para eles mesmos, enquanto vão se descobrindo amantes. Caio sabe escrever algo com beleza imensa. Penso que seu grande trunfo seja, para além do registro de uma memória, saber escrever com o equilíbrio exato entre o ficcional e o referencial de sua experiência.

E foi exatamente esse savoir faire que cooptou o jovem Matheus Soriedem. Em 2013, aos 21 anos, ele resolveu ir às manifestações que tomavam conta do Brasil, ainda que meio por intuição. No entanto, assustou-se ao perceber, já ali, pedidos de um retorno do regime militar. Aturdido, procurou o dramaturgo e diretor Juarez Guimarães Dias e, juntos, os dois, após resolveram levar essa inquietação aos palcos. Surgia, ali, o embrião do solo “EuCaio”, que, vale dizer, teve apresentação especial na última quinta-feira (12), marco dos 70 anos de nascimento do autor.

Pedido à figueira
No meio desse caminho, vale destacar uma experiência impactante: chegaram a ir à Casa do Sol, a célebre moradia de Hilda Hilst localizada nas imediações de Campinas, onde Caio Fernando Abreu procurou abrigo temporário. No caso, Matheus, que é também fotógrafo, foi para fazer um documentário – e, coincidentemente, acabou hospedado no quarto que abrigou Caio.

Não só. Lá, ao saber dos três pedidos que o gaúcho teria feito a uma figueira, tratou de fazer o mesmo, numa noite de lua cheia. O seu, no caso, foi se envolver em um trabalho artístico que “não dependesse de tantas pessoas para acontecer”. O solo “EuCaio” estreou em 2015, no dia 13 de dezembro, data que marcou o advento do AI-5 décadas atrás, com casa lotada. “Acho que o Caio viu meu pedido e, lá de cima, deve ter dito: ‘tadinho, vou dar uma moralzinha a ele”, brinca.

Ao mesmo tempo, ele, perplexo, mais uma vez voltava a ver, nas ruas, pessoas pedindo a volta da ditadura. A biógrafa Paula Dip, aliás, lembra o fato de o jornalista ter dado vazão à sua escrita em plena vigência do regime militar. Em tempo: “EuCaio” deve fazer nova temporada no final deste mês, na Casa Sapucaí. Enquanto isso, Deborah Finocchiaro sonha trazer “Caio do Céu” à capital mineira. “É um espetáculo ainda bebê, está engatinhando”, brinca. “Mas é incrível como mexe com a plateia, o que nos faz ver como Caio, com sua atualidade, segue arrebatando uma legião de leitores – em particular, os citados jovens”.

 

Um livro, uma mostra

Recém-lançado, “Contos Completos”, lembra a poeta Alice Sant’Anna, do time de editores da Companhia das Letras, que o chancela, reúne pela primeira vez, em um só volume, toda a produção de contos de Abreu. “Caio é autor de dois romances, de peças de teatro e de poemas, mas foi no conto que se consagrou como escritor. O livro abarca, portanto, os contos escritos de 1970 até 1990, cobrindo duas décadas de intensa produção literária. É um marco importante de reconhecimento de um dos principais autores brasileiros, que representou como ninguém a contracultura”, lembrou, ao Pampulha.

Já para quem for a Brasília, vale conferir a exposição “Doces Memórias”, em cartaz no Museu Nacional. A mostra traz, segundo uma de suas curadoras, Lara Souto Santana, pesquisadora da obra de Caio Fernando, objetos pessoais, roupas, a máquina de escrever que ele usava, prêmios que recebeu... “Tudo orquestrado de forma muito harmônica, parece uma casa. Tem até uma geladeira”. Neste caso, o embrião da iniciativa localiza-se em 2012. “Já havia o boom do autor no Facebook, a gente percebia que as pessoas estavam muito próximas a ele. O que a gente fala é que as inquietações de Caio Fernando são atemporais, por isso os jovens se aproximam de sua obra”.

Em 2014, veio uma primeira exposição, reformulada para uma ainda maior, em 2016, que deságua na de agora. “A ideia era usar a palavra para nortear a mostra”. Tendo participado da abertura para convidados, na última quarta-feira (12), com o espetáculo “Caio do Céu”, Deborah Finocchiaro era só elogios à empreitada. “A abertura foi uma coisa divina, encantadora, comovente. Mesmo o espaço tendo o pé direito alto, a cenografia, genial, conseguiu imprimir intimidade e a harmonia que servem como um belo suporte para divulgar ainda mais a obra de Caio Fernando”.