Horizontes da cidade

Detalhes tão pequenos...

Projetos trazem olhar diferente para histórias, memórias e peculiaridades de BH

PUBLICADO EM 09/12/17 - 03h00

Toda cidade tem os seus cartões-postais, sejam eles paisagens esculpidas pela natureza ou aquelas criadas por meio do talento da mão do homem. No caso da capital mineira, o traço insuspeito de gênios do naipe de Oscar Niemeyer ajudou a alçar construções como a Igrejinha da Pampulha ao posto de monumento icônico, para citar um exemplo. Mas se os estandartes disputam a primazia nos cliques dos turistas, uma profusão de detalhes não passa despercebido ao olhar perscrutador de moradores da metrópole.

Flâneurs contemporâneos que, câmeras a postos, dedicam-se a capturar minudências para ressignificá-las. Muitos desses cliques desdobram-se em projetos de maior vulto – caso do “Chão Que Eu Piso” ou “Pássaros da Liberdade”, que já viraram livro.  Na verdade, trata-se de uma busca pelo implícito, como analisa a estudante de Belas Artes Mariana Laterza, que, por conta de seu mestrado na UEMG, investiga o espaço urbano através de diversas derivas, tentando perceber e retratar a paisagem simbolicamente pelos seus detalhes. “Procuro o que está por detrás do óbvio. Imagens que instigam o devaneio, detalhes que possam ser simbólicos. Minha busca é pelo subjetivo, pelo sensível.

Então, quando vejo uma hera nascendo no meio da rachadura de um muro, não vejo só uma planta, mas esperança. A luta de uma florzinha delicada no meio da brutalidade do concreto. Vejo a luta diária de tantas pessoas que sobrevivem apesar de todas as dificuldades. Esses detalhes, para mim, nunca são o que parecem, representam algo mais. E ao mesmo tempo, são o micro que simboliza o macro”, explana, para acrescentar, em seguida: “BH, para mim, não é a paisagem expandida: é feita de inúmeros fragmentos que me cativam e ficam marcados na memória afetiva”.

O que nelas está contido

“Foi um tapume, que tinha como função, claro, tapar algo, que, para mim, descortinou muita coisa”, recorda a artista plástica Tânia Araújo, referindo-se ao ano de 1995, quando, no trajeto diário de sua casa ao campus da UFMG, onde cursava Belas Artes, teve sua atenção captada pelo aparato de obras na av. Antônio Carlos, onde seu ônibus passava. A partir dali, ela começou a escanear a cidade pela janela dos coletivos. O fio condutor inicial foi o trecho que abarcava a Lagoinha. E foi ali, no bairro, que, certo dia, sua atenção se volveu para uma caixa de correios. “A partir daí, comecei a observar esse objeto como metáfora da espera”, diz, referindo-se aos tempos em que as cartas ainda eram um recurso valioso de comunicação. Hoje, lembra Tânia, as caixas servem de pouso para o que pode ser visto até como lixo. “Coisas colocadas sem a gente pedir, como informes publicitários ou, em época de eleições, santinhos”. O desuso explica o fato de, hoje, várias estarem detonadas. Algumas cobertas de hera, outras até violadas. “O que me chama a atenção é o fato de serem objetos silenciosos, mas que, com suas aberturas frontais, abrem a possibilidade do contato com o mundo exterior”. “Anônimas”, a série de cliques das caixas feita por ela, foi tema de seu doutorado e rendeu exposições. O detalhe é que, propositadamente, as fotos não trazem o endereço da casa à qual a caixa pertence, para deixar o espectador instigado.

FOTO: Tânia Araújo/Divulgação
Tânia Araújo

 

FOTO: Tânia Araújo/Divulgação
O que nelas está contido. Tânia Araújo

Registro histórico através dos pisos

O projeto fotográfico Chão Que Eu Piso nasceu em 2013, de forma despretensiosa, em um perfil pessoal do Instagram. “A ideia era chamar atenção para a história do lugar, fazer com que bater o olho (no piso retratado) remetesse a pessoa não só ao lugar, mas à história do lugar”, lembra Paola Carvalho que, junto a Raíssa Pena, ambas jornalistas, partiu, num segundo momento, para uma página específica, que acabou atraindo a atenção de pessoas do mundo inteiro, que também entraram na roda. Por isso, mais que os 11 mil seguidores, o que faz os olhos delas brilharem é saber que a hashtag #chaoqueeupiso inspira pessoas de todos os continentes a também fotografarem chãos instigantes. No caso de BH, Paola salienta que os registros permitem traçar uma linha do tempo da cidade. “O projeto cresceu muito neste sentido, o de registro de patrimônio. Antes, era mais ligado à memória afetiva, na linha: a cozinha da minha avó, a igreja onde casei. Esse componente ainda está presente, mas também tem esse contexto histórico”. Num outro momento, em parceria com o projeto Casas de BH, veio o livro homônimo, que avança trazendo a fachada das casas cujos chãos foram clicados, pontuando a busca pelo contexto histórico. A obra está à venda na página do projeto e em locais como a Casa Guaja, Casa Amora ou Coletivo AU. Paola lamenta que, das 120 casas retratadas no livro, uma acabou sendo derrubada. “Infelizmente, ainda não temos uma legislação que dê o devido valor histórico a esse patrimônio”.

Chão que Piso. Saiba mais sobre o projeto no Facebook e no Instagram homônimos.
 
FOTO: Ivan Araújo/Divulgação
Chão que eu piso

 

FOTO: Ivan Araújo/Divulgação
Chão que eu piso

Apreciação e documentação

Hoje, o fotógrafo Júlio Toledo, cujo projeto explora a arquitetura da cidade através da floração dos ipês, acha engraçado, mas no início de sua empreitada, se sentia como um maluco ao andar olhando para o alto ou, às vezes, no meio da rua, fotografando árvores. “Alguns me xingavam, mas os mais atentos acabavam procurando qual era o objeto de interesse. E acho que isso tudo foi criando e aumentando uma cultura de apreciação e valorização do paisagismo e da arquitetura dessa cidade que já foi a ‘cidade jardim’”. Propósito similar é compartilhado por Fernanda Goulart. “Minha pesquisa visa valorizar um tipo de arquitetura presente no imaginário social e afetivo das cidades, mas que não é objeto de tombamento ou proteção. E, através de sua memória gráfica, fazer das artes gráficas um veículo de documentação e preservação do patrimônio arquitetônico”, diz ela, que está por trás do projeto “Urbano Ornamento: Memória Gráfica das Grades Ornamentais”.

Não raro, o homem acaba entrando também como um vértice, em uma triangulação com a arquitetura e formações da natureza. A artista plástica Tânia Araújo, por exemplo, ao expandir seu foco do bairro Lagoinha ao hipercentro, teve sua atenção voltada para o cotidiano dos camelôs, que todo dia, ao anoitecer, embalam suas mercadorias e as organizam em carrinhos, para, no dia seguinte, desembalar tudo de novo.

O imponderável também compõe o dia a dia de quem busca um ângulo diferente da cidade. “Uma vez, minha máquina foi tomada de refém quando, no alto de um morro, eu tentava aproveitar a luz de fim de tarde”, diz Toledo. “Fui cercado e tomaram a máquina”. A devolução foi condicionada à entrega de um certo valor. “Peguei meu carro, sem pensar em riscos, desci o morro e pedi R$ 200 a um comerciante (não havia tempo para ir a um banco) para ‘libertar’ a câmera”, diz ele. Passado o susto, o plano, agora, é dar visibilidade a outras florações, “como as de sibipirunas, flamboyants, jacarandás-mimosos, sapucaias, manacás etc”. “Quero descobrir mais belezas na nossa cidade que faz 120 anos e ajudar a recuperar, para ela, o título de ‘cidade-jardim’, incentivando um cuidado maior com o paisagismo e arquitetura desta jovem senhora que é Belo Horizonte”.

Elementos de proteção e de adorno

Professora da Belas Artes da UFMG, Fernanda Goulart guarda com nitidez a cena de, já no interior da casa ainda vazia, que acabara de alugar (uma construção dos anos 1960), no bairro Sagrada Família, ficar olhando fascinada para o gradil que adornava a janela. “Me apaixonei por este elemento, que tanto pode remeter à ideia de segurança quanto de beleza”, admite ela, lembrando que, no primeiro quesito, em muitos casos as grades foram, com o tempo, substituídas pelos muros de concreto. À época, Fernanda buscava um tema para o seu doutorado em arquitetura. E o enlevo foi tal que partiu para uma pesquisa mais aprofundada não só sobre as grades, mas ornamentos, como volutas e brasões, por toda BH. Por meio de um bem-sucedido financiamento coletivo, veio o desdobramento do projeto Urbano Ornamento em livro. Em meio a este percurso, não foram poucos os que vinham lhe contar que passaram a reparar neste elemento a partir do trabalho dela. Mas o afinco de Fernanda quase virou uma obsessão, e, em certo momento, a moça achou por bem encerrar o ciclo. Hoje, debruça-se sobre o art déco em BH, cujos elementos estão presentes, estima, em mais de 500 casas. “Mas não estou me referindo ao art déco oficial, objeto de patrimônio tombado, que caracteriza a arquitetura de prédios como os da Prefeitura, o dos Correios ou o Cine Theatro Brasil; e sim o residencial, de arquitetura menor, de até dois andares”, enfatiza.

Urbano Ornamento. Confira mais sobre o projeto no Facebook homônimo.
 
FOTO: Fernanda Goulart
Fernanda Goulart

 

FOTO: Fernanda Goulart
Urbano Ornamento
 
Um dia, um ipê

“São muitas as histórias que Júlio Toledo carrega junto a si e à sua câmera em busca não só da floração dos ipês, mas desse espetáculo da natureza combinado a marcos arquitetônicos da capital mineira. “São madrugadas esperando pelo vazio das ruas, o medo de estar sozinho e vulnerável no espaço da cidade, à espera da melhor luz, de invernos floridos. A direção às vezes desatenta ao volante e atenta ao alto, para ser surpreendido por uma nova floração”. Toledo começou a fotografar ipês junto à arquitetura da cidade em 2005. De pronto, criou, no Facebook, a página bhcidadejardim. Em 2008, veio a “Coleções Ipês” (Ed. Rona), que arrebatou o prêmio Gentileza Urbana 2010. Aliás, foi naquele ano, durante o curso de Revitalização Urbana, na Faculdade de Arquitetura da UFMG, que ele se enfronhou mais no termo “paisagem cultural”, cunhado pela Unesco, e que se reporta justamente à junção da arquitetura e paisagismos notáveis. Em 2014, Toledo ganhou um concurso do Ministério da Cultura, o “Cultura 2014”, com a instalação “Sinfonia Para uma Cidade Jardim”, no prédio do Iepha, na praça da Liberdade, realizada em conjunto com a Voltz Design. Mas o prêmio maior vem da natureza. “Este ano, por exemplo, fui surpreendido com uma floração conjunta de ipês roxo, amarelo e branco na praça Tiradentes”.

BH Cidade Jardim. Confira mais no Facebook (BH Cidade Jardim) ou no site bhcidadejardim.com.br

FOTO: Júlio Toledo/Divulgação
Júlio Toledo

 

FOTO: Júlio Toledo/Divulgação

BH Cidade Jardim

A vida cotidiana, a memória e o presente

O fotojornalista Marcelo Prates diz que a cidade na qual nasceu passou a atrair seu olhar no momento em que pegou o bonde para o grupo escolar e, na sequência, ao sair da Serra rumo ao Liceu Salesiano. “Nessas ‘viagens’, desenvolvi o exercício do olhar a cidade”. Seu primeiro ensaio foi instintivo – ele nem conhecia o termo.

“Lembro de ter fotografado parte da destruição da Serra do Curral, um dos símbolos da nossa BH, pela extinta Ferrobel”. Aos 17 anos, Prates, hoje com 62, comprou a primeira câmera, ampliador e livros de fotografia. Mas foi após o curso de jornalismo que desenvolveu sua maneira de olhar e produzir imagens.

“A pé ou de carro, circulo em busca de momentos inusitados e únicos. Ao fotografar, busco transferir, para as imagens, minhas informações culturais, artísticas e pessoais. Cada pessoa tem um olhar único e procuro, seja no plano geral ou em detalhes, mostrar a vida cotidiana, as memórias e o presente de BH”. Entre os ensaios, estão “Pássaros da Liberdade”, “Pendurados”, “O Chão que a Gente Pisa”, “Amores Improváveis”, “Fachadas”, “Monumentos”, “Fragmentos”, “Rabiscos”, “Ninhos Urbanos”, “Sinal de Ocupado” e “A Linguagem nos Suportes Urbanos” .

Pássaros da Liberdade Confira mais no site passarosdaliberdade.com.br ou no Facebook, na página Marcelo Prates Fotografias.

FOTO: Marcelo Prates/Divulgação
Marcelo Prates

 

FOTO: Marcelo Prates/Divulgação
Pássaros da Liberdade

O lado subjetivo da capital mineira

Mestranda em Belas Artes, Mariana Laterza é enfática: “Amo Belo Horizonte”. O fato de ter morado em outros países acentuou essa convicção. “Quando se tem outras possibilidades, a escolha precisa ter um motivo”. E essa veio com a percepção de que seu afeto estava aqui. “Uma vez, escreveram na parede do meu ateliê: ‘Em você encontro meu abrigo’, frase que fez total sentido para mim. Completei mentalmente: ‘meu lar é onde mora meu coração’. Fui redescobrindo BH, seus cantos e encantos, e me sentindo cada vez mais ‘dona’ daqui. Acho que foi muito isso também que me motivou a fazer toda a pesquisa (para sua tese) sobre paisagem urbana. Esse afeto pelo espaço, que guarda tantas memórias”, diz ela, que é filha do saudoso filósofo Moacyr Laterza. O exercício de fotografar detalhes se tornou inerente ao dia a dia de Mariana. “A ideia é que as fotografias sejam por si só obras, mas que, posteriormente, também virem gravuras”. Ao concluir o mestrado, ela espera levar o trabalho ao formato livro. “E expor a produção artística também. Quero fazer algo mais poético, que explore o lado subjetivo da cidade”.

Confira o trabalho de Mariana Laterza no Instagram (artista_mariana_laterza) ou em marianalaterza.wixsite.com/portfolio
 
FOTO: Mariana Laterza/Divulgação
Mariana Laterza

 

FOTO: Mariana Laterza/Divulgação
Mariana Laterza