Amor dividido

Divisão de guarda de animais é alternativa moderna

Por diferentes motivações, amigos, irmãos, namorados e ex-companheiros optam por dividir a guarda de animais, uma alternativa que visa o bem-estar do pet e dos tutores

PUBLICADO EM 30/09/17 - 03h00

A relação entre homem e animal há muito tempo vem sendo construída: estima-se que começou há mais de 10.000. Naquela época, a ideia era principalmente usar o animal para fins práticos, como transporte e caça. O tempo encarregou-se de uma aproximação afetiva. E, a medida que a civilização muda, foram alterados os modos de convivência entre humanos e bichos.

Hoje, responsabilizar-se por um pet não resume-se a alimentá-lo: é preciso pensar no bem-estar, inclusive evitando períodos de solidão ou estresse, causados, por exemplo, pela ausência de um tutor antes querido e próximo. Por isso, as guardas compartilhada e alternada têm crescido como opção. No primeiro caso, o bichinho mora com uma pessoa, mas há outra (ou outras) que acompanham de perto seu desenvolvimento e rotina. Na segunda modalidade, duas ou mais pessoas ficam com o animal em casas diferentes em períodos distintos (veja detalhes no quadro abaixo).

Ambas são especialmente comuns entre casais que se separam (alguns, inclusive, com necessidade de intermediação pela Justiça e registro em cartório), mas podem acontecer entre irmãos, namorados e parentes que amam os animais, mas não pretendem deixar de lado compromissos, como viagens e saídas a casas noturnas.

As alternativas também são interessantes para os bichinhos, claro, no sentido de garantir um cuidado a mais a eles. Ou seja, tudo para facilitar a dedicação a passeios diários, manutenção de vacinas e cumprimento de tantos outros deveres.

O adestrador Augusto Lavinas explica que, de fato, a solução de partilhar a guarda de um pet pode ser positiva para que ele não fique estressado ou deprimido. “Cada situação é bem única e precisa ser avaliada, mas tem sido algo interessante no caso de separação, por exemplo”, comenta. “Se for uma mudança radical, o pet pode causar problemas, ficar até mais agressivo ou desenvolver doenças”, diz.

A comerciante Carla

optou pela guarda alternada de um casal de shitzu quando separou-se da companheira há pouco mais de um ano. “Ninguém quer abrir mão quando se tem amor aos animais. Inicialmente, eles iam ficar só comigo, mas imaginei que seria bom também para os cachorros, porque eles gostam muito dela e não queria que sofressem. Então, fizemos o acordo e registramos em cartório”, conta. As duas ficaram juntas por quase 15 anos e foi uma decisão conjunta ter os animais, hoje com 3 e 4 anos.

Também para não deixar os animais sozinhos em caso de viagem ou em outros momentos, o casal de namorados Melina Capila e José Sérgio Júnior, junto há três anos, divide as responsabilidades na guarda do cãozinho Samuca e da gata Charlote, mesmo morando separadamente. “Vamos juntos em tudo. Quando viajei de férias por 15 dias, a Charlote ficou lá. Também partilhamos o custo com alimentos, tratamentos”, explica Melina.

Já a estudante universitária Marina Zauli nem precisou oficializar o combinado com o ex-namorado, de tão natural que foi, para ambos, compartilhar os cuidados da cadelinha Kimmy, hoje com cerca de 3 anos. Ela foi adotada por eles no início do ano e, após o término há pouco mais de seis meses, passou a viver com Marina. “Mas ele a pega quando quiser ou quando eu peço por algum motivo. Também vamos ao veterinário juntos, essas coisas”, diz. “Tem sido ótimo porque ele tem muito carinho por ela e a Kimmy também adora toda a família dele, fica ‘doida’ de felicidade quando chega lá. Assim, eu fico bem-tranquila, algo que não sei se seria possível caso precisasse deixá-la em hotelzinho, por exemplo, porque ela é medrosa”, conta.

Mas nem sempre as relações são tão amistosas. No caso de Carla e sua ex-companheira, a alternativa da guarda alternada acontece com a intermediação de um pet shop. Quinzenalmente, uma delas deixa os pets no local e a outra vai buscá-los. “É bom porque sei que eles estão bem-cuidados e também posso ter minha privacidade, meus momentos de lazer, porque, querendo ou não, animal é como um filho: dá trabalho, não gosta de ficar sozinho”, afirma Carla.

Cuidados

Em todos os casos, Lavinas sugere que o animal seja acompanhado por um especialista, como adestrador, terapeuta animal ou veterinário. “É preciso entender que o bichinho percebe a mudança de contexto”, reforça Lavinas.

O bombeiro Sandro Nobre vivenciou isso de perto. Ao terminar um relacionamento, passou a dividir a guarda do cãozinho Dick, que havia dado à ex-namorada. Até aí funcionou bem. Porém, à época, o rapaz vivia na mesma casa de sua prima Ângela Moreira e ela se afeiçoou ao animal – e vice-versa. Quando ela mudou-se, Dick parecia não conformar-se. “Ele começou a fazer xixi em vários lugares, foi bem complicado”, relembra ele.

A solução encontrada foi uma nova mudança: Dick passou a ter a guarda alternada entre Ângela e a ex-namorada de Nobre, enquanto o rapaz passou a fazer visitas ao animalzinho. Para Nobre, uma das motivações para a reação do cãozinho ao ver-se sem Ângela foi o fato de que ela dava mais liberdade ao animal. “Com ela, ele subia até na cama”, explica.

Lavinas ensina que, para evitar situações complexas como essa, o ideal é que ambas as casas dos animais em guarda alternada tenham regras bem próximas. “Também sugiro aumentar o enriquecimento ambiental quando há uma mudança drástica de contexto. Oferecer uma alimentação de forma mais lúdica, brinquedos interativos, intensificar os momentos de passeio. A título de comparação, seria como o que nós fazemos quando não queremos pensar muito em um problema, em uma separação: ocupamos o nosso tempo com outras atividades”, diz.

Nome fictício

Modalidades de guarda para filhos e estendida aos animais

Guarda alternada A modalidade tem sido bastante escolhida por juízes no caso de separação de casais com animais, sobretudo cães. Nestes casos, o pet fica alguns dias pré-estabelecidos com um tutor e, no restante do mês, com outro. As despesas, em geral, também são divididas.

Guarda compartilhada Nestes casos, o animal passa a viver apenas na casa de um, mas o outro tutor tem livre acesso ao bichinho, podendo visitá-lo quando quiser e também participando ativamente de outros momentos, como visitas ao veterinário, vacinação, etc.. Exige uma boa relação entre os ex-cônjuges. Tem se mostrado ideal para gatos (que costumam ter mais dificuldade em se ambientar a uma nova casa) e também quando um dos tutores não possui moradia adequada ao animalzinho.

Guarda unilateral Significa que apenas um dos tutores conseguiu a guarda do animal. São diversos motivos que levam à decisão dos juízes nesse sentido, como quando um dos envolvidos muda de cidade e torna inviável a guarda compartilhada ou alternada, por exemplo, até casos onde a convivência do ex-casal é impraticável, quando há relatos de agressão de um pelo outro, ou mesmo do ex-tutor ao animal. Pode ser concedida, em paralelo, uma exigência de ajuda de custo para despesas com o pet.

Olha a bicharada

População A última pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2013, mostrou que 44,3% dos domicílios do país possuem ao menos um cachorro, o que daria 52,2 milhões de cães, número superior até ao de crianças (44,9 milhões de menores de 14 anos). Já os gatos estão presentes em 17,7% dos domicílios e são 22,1 milhões.

Juízes usam bom senso nas decisões

Dividir a guarda de um animal está se tornando prática comum entre namorados, ex-casais, amigos e irmãos. Mas, por ser uma modalidade recente, não foi acompanhada de uma legislação que a regulamente. 

O primeiro Projeto de Lei sobre o tema surgiu em 2010, mas houve críticas, pois mantinha os bichinhos no patamar de coisas, conforme explica a advogada Fernanda Bouchardet, que atua com frequência em temas dos direitos animais. “Se tivesse sido aprovado, esse projeto mantinha a posse do animal para quem possuía a nota fiscal, basicamente. Era uma lei seca e fria”, comenta. Hoje, há outro Projeto de Lei tramitando e que coloca como tutor preferencial o responsável afetivo pelo bichinho. Também fala-se de guarda compartilhada e estipula-se pontos polêmicos, como a exigência da aprovação de ambos no caso de procriação. 

No entanto, não há previsão para avaliação do projeto. Enquanto isso, tem prevalecido, o entendimento e bom senso dos juízes. “Felizmente, no Rio Grande do Sul e em São Paulo, sobretudo, há várias decisões para que os animais tenham sua guarda compartilhada ou alternada, independentemente de quem os comprou. O juiz tem observado quem tem condições psicológicas, financeiras e afeto ao bichinho”, diz Fernanda.

Segundo ela, o número de pessoas que procura o judiciário para resolver o assunto tem crescido. “As pessoas estão mais conscientes de que não precisam abrir mão do animal: o que acabou foi o casamento, não o sentimento pelo bichinho, e há alternativas para garantir uma partilha”. 

Para o adestrador Augusto Lavinas, porém, o caminho ainda exige discussão e discernimento. “O judiciário e outras esferas engatinham quando falamos em proteção do animal. Uma lei é necessária porque, infelizmente, os tutores, muitas vezes, estão vivendo um divórcio, um momento delicado, e não conseguem ter consciência no sentido de decidirem pelo bem-estar do animal”, explica. 

Ele acredita, inclusive, que seria interessante ouvir especialistas em cuidados animais em caso de divórcio em que não há consenso sobre a guarda. “A divisão da guarda nem sempre é a melhor saída. Se ele tiver uma clara preferência por um dos tutores, creio que a guarda unilateral é melhor. Uma adestrador ou outro profissional capacitado tem condições de avaliar a preferência do animal porque ele dá sinais, mostra com quem está mais confortável”.

Procedimento

Fernanda explica que, quando não há acordo, é preciso sim acionar a Justiça pela guarda do pet. “Se os ex-cônjuges concordam em tudo, menos na guarda do animal, é preciso entrar com um processo que vai incluir todos os pontos do divórcio”, explica. 

Para a guarda compartilhada é necessário mostrar capacidade financeira, tempo e amor. Mas, ainda assim, se o animal não puder se adaptar aos dois ambientes, o juiz pode escolher a guarda unilateral. “Vi o caso de um gatinho que ficava acuado na casa do homem, quando ele o buscava na casa da ex-mulher. Então, o juiz estipulou que ele ficaria duas horas na casa da ex-mulher, para visitá-lo”. 

Segundo ela, outros animais domésticos também podem ter decisão semelhante, como papagaios e calopsitas, que costumam não se adaptar bem a ambientes novos.

Casos judiciais

Afeto não se compra No Rio, um homem exigiu a guarda unilateral do cachorro, comprovando que ele havia sido dado por seu pai. No entanto, a mulher conseguiu comprovar que tinha vínculo afetivo maior com o bicho, levando-o para passear, ao veterinário e comprando ração com frequência. O juiz decidiu em favor da mulher e concedendo visitas ao homem. 

Importância Em São Paulo, um homem ofereceu abrir mão de todos os bens, como o carro, em troca da guarda unilateral de um cão. A mulher não concordou e o juiz concedeu guarda alternada.
 

Três perguntas para Ivone Zeger, advogada especialista em direito de família e sucessão

Há consenso entre os juízes em relação à guarda de animais? Como os bichinhos não foram contemplados até o momento com leis sobre o tema, há apenas jurisprudência, que tem indicado uma tentativa de dirimir a problemática, optando-se, quando possível, pela guarda alternada, ou seja: o animal passa um tempo com um e outro tempo com outro. A guarda compartilhada costuma ser mais indicada para crianças que animais, já que é comprovado que elas precisam de uma estabilidade de residência. No entanto, pode ser levada aos bichos em alguns casos, quando um dos tutores não tem uma casa adequada ainda, por exemplo. 

É preciso registrar o acordo ainda que seja feito extrajudicialmente? É melhor. Sobretudo quando há separação, todos os bens e decisões são informados em cartório, e isso vale para o animalzinho. Hoje, também é possível ir ao cartório e registrar o animal, fazer uma certidão de propriedade. Talvez seja uma boa alternativa anterior quando se tem um animal anterior ao casamento, chama Identpet. Mas, claro, ainda assim isso pode ser discutido depois. 

Existe possibilidade de pensão para o animal? A guarda compartilhada de animais de estimação não segue a mesma regra que a guarda de filhos, uma vez que as necessidades são outras, já que animais não precisam de escola, por exemplo. O animal é tratado como coisa e não como um ser humano a ponto de existir pensão alimentícia, mas pode estar contemplada uma ajusta de custo, porque ele tem direitos.