Cinema

Minas na fita

Filmes produzidos no Estado têm circulado desenvoltos por importantes festivais mundo afora e arrebanhado importantes prêmios

PUBLICADO EM 29/04/17 - 03h00

Macau, Cannes, Roterdã, Buenos Aires, Brasília ou mesmo Tiradentes: o cinema brasileiro feito em Minas Gerais vem circulando desenvolto entre importantes festivais mundo afora e, não raro, arrebanhando prêmios. Caso do thriller “Elon Não Acredita na Morte” (2016), de Ricardo Alves Jr., premiado por sua contribuição artística, design de som e trilha sonora na importante mostra competitiva asiática que é o Festival de Macau.

O filme, que estreou em salas de cinema da capital nesta semana, dividiu, no ano passado, a abertura da sessão competitiva do Festival de Brasília com outro mineiro, o curta “Estado Itinerante” (2016), de Ana Carolina Soares - que, aliás, já acumula 15 prêmios. No festival, quem se sagrou vencedor foi “A Cidade Onde Envelheço”, filme de Marília Rocha rodado em BH. A Mostra de Tiradentes, por sua vez, se rendeu a outra produção mineira: Juliana Antunes saiu premiada pelo docudrama “Baronesa”. 

Digno de nota, a produtora “Filmes de Plástico”, de Contagem, completa, este ano, sua terceira passagem pelo Festival de Cannes (17 a 28 de maio), agora com o curta “Nada”, de Gabriel Martins, que integra a Quinzena dos Realizadores. Antes, o grupo passou pelo Buenos Aires Lab e saiu premiado com “Ela Volta na Quinta”, que também circulou pelo festival de Roterdã. Já em Berlim, em fevereiro, a animação “Vênus – Filó, a Fadinha Lésbica”, de Sávio Leite, representou o país e o Estado.

Na verdade, são tantos exemplos, que “arroz de festival” talvez fosse uma bem humorada analogia para essa fase do cinema feito em Minas. Mas a uniformidade dos grãos do cereal usado como comparativo é incapaz de espelhar a diversidade da produção mineira: entre curtas e longas, há thrillers, docudramas, animações... 

Tanto ecletismo dá calço a Ricardo Alves Jr, 34, decretar: “Não é uma retomada, nem movimento”. Mas sim, ele vê “um momento importante, com filmes de linguagens muito distintas”. Relevante, acrescenta, no sentido “de ganhar território nacional e internacional”. 

O belo-horizontino, que estreou “Elon Não Acredita na Morte” (na verdade, seu primeiro longa) em 22 cidades, lembra que tudo isso é resultado de “pelo menos oito anos de trabalho de muitos realizadores”. Luana Melgaço, 37, da Anavilhana Filmes, e co-produtora de “A Cidade Onde Envelheço”, concorda. “Tem muita coisa acontecendo!”. 

Para ela, o galgar terreno do cinema mineiro em todo o mundo é consequência de uma década de investimentos da Agência Nacional de Cinema (Ancine) em novos editais e formatos. Soma-se a isto “o trabalho árduo de profissionais da área, que se mobilizam para que as coisas aconteçam”.

Presidente da Associação Curtaminas, representante da Associação Brasileira de Documentaristas e representante do setor audiovisual no Conselho Estadual de Cultura, Marco Aurélio Ribeiro acredita que o momento é “reflexo de uma política mais concreta para o audiovisual”. E vai além: “A gente ainda vai se surpreender mais daqui para frente”, prevê, entre elogios à variedade de formatos do cinema feito em Minas.

Realidade na tela

A ligação quase umbilical com a cidade é um traço que une este “novo momento” da sétima arte local. É o caso, por exemplo, de “Baronesa”, em que as protagonistas não são atrizes profissionais, mas moradoras de um bairro periférico da cidade, que interpretam a si mesmas. “Elon Não Acredita na Morte”, por sua vez, está intrinsecamente ligado ao centro belo-horizontino.

“Este espaço é quase um personagem do filme”, explica Alves Jr. Não fogem à regra produções da Filmes de Plástico. “O que fazemos é quase um ‘cinema de território’, que retrata a vida ordinária”, analisa o cineasta Maurílio Martins, 38, da produtora Filmes de Plástico. “Não por coincidência, nomeamos a cidade em nossa terceira produção (‘Contagem’, 2013)”, acrescenta.

Além disso, são, normalmente, filmes normalmente feitos com orçamentos estreitos, por pequenas produtoras e não é incomum que lancem mão de não-atores e da mistura entre ficção e documentário. Bem, seriam estes elementos capazes de formar uma identidade de uma filmografia mineira, celeiro de expoentes que, no passado (inclusive recente) firmaram seus nomes nas páginas do cinema nacional? “Se a gente tentar encontrar um padrão ou justificar estas escolhas, vamos dar voltas e não vamos conseguir”, pontua Luana.

Mesmo sem formar unidade, algumas das escolhas são vistas com bons olhos por Ataídes Braga. Mestre em cinema pela UFMG, roteirista, produtor, professor e pesquisador, Braga elogia, por exemplo, a tendência de verter o olhar para a cidade. “Esses meninos tocam a realidade que responde na cinematografia”. 

Especificamente do “Filmes de Plástico”, de Contagem, Braga lembra que “fazem um cinema representativo”. “E seus filmes saem contagiando outros realizadores”.

Ocupar mais salas é desafio

Embora circule o mundo, o premiado e reconhecido cinema brasileiro feito em Minas Gerais encontra poucas salas abertas no circuito comercial. Exceção, “A Cidade Onde Envelheço” ficou sete semanas em cartaz. Em cinco delas, apenas em duas salas. Só nas duas últimas, quando o Cine 104 reabriu, é que atingiu sua terceira sala. Atualmente, está nas estreias do Now, serviço de streaming da Net.

“Elon Não Acredita na Morte” tem trajetória similar. Em BH, ocupa duas salas, e deve também ter a terceira no 104. Enquanto isso, “Guardiões da Galáxia Vol.2” chega a mais de 25 salas na Grande BH. Apesar do pouco espaço, Ricardo Alves Jr. considera “interessante” levar seu longa às salas de shoppings. Para Luana Melgaço, é difícil romper com a lógica comercial. “Para nós, este é ainda um lugar restrito, com poucas salas e poucos horários”, diz.

Incentivo é inconstante

Sem vazão no circuito comercial, a produção cinematográfica de origem mineira precisa de outros canais para escoar sua produção. “Apesar de não estar nos cinemas de shoppings, nossos filmes têm a chamada vida útil muito grande”, defende Luana Melgaço. “Depois do circuito comercial, ‘A Cidade Onde Envelheço’ já foi convidado para ser exibido no Sesc Minas Gerais e no de São Paulo. Também está na mostra ‘Passou Batido em BH’, do Cine Humberto Mauro. Fora os convites recebidos de cineclubes do interior do Estado. E também estamos nas plataformas de streaming”, orgulha-se a produtora. “A gente tem que se apoiar nisso”, adiciona.

Muito além de ser um espaço para divulgação, festivais e mostras são importantes também para a formação dos cineastas. O coordenador do Humberto Mauro, Bruno Hilário, 31, lembra que é constantemente abordado por estudantes de cinema acerca de como as exibições da sala os influenciam. “Há um diálogo muito forte com a classe cinematográfica. Sem dúvida, este é um espaço de formação”, argumenta.

E por falar em formação, a cidade possui, hoje, cursos de cinema em universidades como UFMG, PUC Minas e na UNA, além da Escola Livre de Cinema, há 13 anos instalada em BH. Embora defina o cineasta muito mais como um artesão que como um intelectual, Braga lembra que muitas das novas produções são desdobramentos de projetos universitários. Luana completa que o surgimento de cursos de cinema na cidade forma um ciclo virtuoso desta cadeia produtiva. “A produção estimula que mais pessoas se formem e mais pessoas se formando estimulam a produção”, diz.

Fomento

Para o cineasta Maurílio Martins, da Filmes de Plástico, falta aos governos entender o setor audiovisual como estratégico e compreender que o cinema só funciona enquanto uma cadeia. Martins argumenta que o fomento precisa abranger todas as áreas, da pesquisa à distribuição. Além disso, a descontinuidade das políticas públicas para o audiovisual é um empecilho para que a produção se mantenha estável. Exemplo é o encolhimento do programa “Filme em Minas”. “Mesmo com todas suas restrições, ele tinha força”, lamenta Martins.

Ciente das dificuldades para a produção de cinema, Marco Aurélio Ribeiro, que representa o setor audiovisual no Conselho Estadual de Cultura de Minas Gerais, entende que é preciso que os editais sejam ampliados. “Eu acredito que se a gente consolidar uma política pública que entenda o setor como estratégico, a tendência é que aconteça o que estamos vendo, que nosso cinema venha a deslanchar”, pontua Ribeiro. “Os curtas estão ficando um pouco desprivilegiados e ainda é preciso que os editais descubram a pesquisa e a preservação”, reconhece, em concordância com alguns dos questionamentos de Martins.

Tradição do cinema em Minas

Ao falar dessa nova boa fase do cinema mineiro, é preciso lembrar: esta é pelo menos a quarta grande onda das produções cinematográficas no Estado. Ondas? Na verdade, para o pesquisador Ataídes Braga, a melhor palavra seria “surtos”. Para ele, a verdade é que os cineastas mineiros “surtam e, mesmo sem indústria, dinheiro e mercado, fazem filmes”.

O apreço da capital pela sétima arte vem de longe. “A chegada do cinema no Brasil (1896) e a fundação de Belo Horizonte (1897) guardam pouco tempo de diferença”, lembra o pesquisador.

Cinema mudo

E se as mais antigas películas preservadas de que se tem notícia no país datam de 1909, uma delas foi originada em Belo Horizonte, como lembra o cineasta e crítico Paulo Augusto Gomes, 67. Trata-se de “Reminiscências”, de Aristides Junqueira (1879-1952), ainda na época do cinema mudo. 

Gomes lembra que, em Minas Gerais, “o cinema floresceu em várias cidades ao mesmo tempo, e foi muito influenciado pelos italianos que aqui viviam”. Se Belo Horizonte foi uma delas, Cataguases foi a mais importante por ser berço do baluarte Humberto Mauro. “Ele cria a base não só do cinema mineiro, mas de todo Brasil. E olha, não sou eu quem está falando isso. Foi Glauber Rocha quem o disse”, aponta Gomes.

Hiato

A partir da década de 1930, o cinema sonoro encarece as produções. “Não existia mercado para instalação de um estúdio em Minas, os sons tinham que ser gravados no Rio de Janeiro. Então, a produção local baixa a zero”, explica Gomes, que é autor do livro “Pioneiros do Cinema Em Minas Gerais”.

Centro de estudos e revista

O hiato dura duas décadas. Só em 1950 volta-se a fazer filme em Minas Gerais. É neste período que nasce o Centro de Estudos Cinematográficos (CEC), que edita e publica a icônica “Revista de Cinema”. As duas iniciativas se propunham a pensar o fazer cinematográfico. É deste lugar que vem o embasamento teórico dos realizadores mineiros da época. A importância desta revista ensaística, aliás, transpôs fronteiras. 

“Antes ainda de ser jornalista, o então jovem Geraldo Magalhães foi à Itália e procurou o teórico e crítico Guido Aristarco. Ele, por sua vez, quando soube que o jovem vinha de Belo Horizonte, o interpelou: ‘O que você está fazendo aqui, se vocês têm a ‘Revista de Cinema’? Não temos nada para te ensinar”, lembra Paulo Augusto Gomes, entre risos, à reportagem.

Cineasta, crítico, palestrante, ensaísta e pesquisador brasileiro de cinema, Geraldo Veloso, 73, também se lembra de ter recebido um Glauber Rocha ainda jovem (17 anos), e ansioso para conhecer quem estava por trás da “tal” revista. “Nós só fazemos cinema na Bahia porque lemos a revista de vocês”, teria confidenciado ao amigo, anos depois.

Cinema Novo

Além do CEC, instalou-se na cidade a Escola de Cinema da Universidade Católica, na época dirigida pelo padre Ademar Pinto Massote. A instituição passa a publicar outra revista especializada. 

Atentos à efervescência intelectual, os pensadores do Cinema Novo aportam em Minas para produzir “O Padre e a Moça” (Joaquim Pedro de Andrade) e “A Hora e a Vez de Augusto Matraga” (Roberto Santos), ambos de 1965. “A verdade é que o Estado já estava presente na cabeça dos formadores do Cinema Novo pela sua importância teórica”, assegura Veloso, que chegou a trabalhar na produção de “O Padre e a Moça”.

Decadência e retomada

A produção do cinema em Minas sofre um novo baque no governo Fernando Collor, com o desmantelamento das políticas culturais. Neste período, surgem os videoartistas da geração de Cao Magalhães e Eder Santos. “Esse surto manteve viva, no Estado, a importância do cinema”, pontua Braga.

No período da Retomada, iniciada no governo Itamar Franco, em 1992, ainda eram os vidoartistas os principais realizadores. Finalmente, chegam os novos artesãos do cinema em Minas. A partir de 2000, se organizando em coletivos e pequenas produtoras, “estes novos grupos começam a fazer filmes em uma linha mais experimental, e as obras passam a ser reconhecidas em festivais nacionais e internacionais”, observa Ataídes Braga.