Artes cênicas

Mosca na sopa

Celebrando 30 anos, Cia dos Atores pensa o humano sob a perspectiva dos insetos

PUBLICADO EM 14/09/18 - 16h26

Com versos fáceis e um zumbido hipnótico, Raul Seixas incorporou uma mosca e foi pousar na sopa dos militares que governavam ditatorialmente o país, em 1973. Muito antes, em 1915, Kafka metamorfoseou um personagem seu em uma barata, mergulhando no âmago de certo automatismo da vida ordinária. Pois, ainda hoje, fazer-se inseto continua sendo recurso para compreender aspectos da humanidade, seja fazendo uma analogia aos jogos de poder ou funcionando como lente de aumento sobre as relações cotidianas.

Agora, com o espetáculo “Insetos” – que aterrissa em Belo Horizonte na quinta (20) e cumpre temporada no CCBB BH até dia 15 de outubro –, a Cia dos Atores, do Rio de Janeiro, amplia este olhar para a vida em sociedade através de uma polifônica mistura de cigarras, abelhas, besouros e gafanhotos que evoca comportamentos coletivos e individuais, questões sociopolíticas e dizer, ainda, sobre as condições de vida na Terra.

O espetáculo marca os 30 anos do grupo e traz quatro de seus fundadores no elenco: Cesar Augusto, Leonardo Netto, Marcelo Olinto e Susana Ribeiro. “A gente acaba vivendo uma relação de família. Começamos com 20 (anos) e agora estamos na casa dos 50! Temos a confiança de nos jogar nos braços do outro, até porque não tem mais jeito...”, brinca Susana.

Um detalhe que pode passar despercebido é que outros projetos do grupo aparecem em cena, já que materiais são reutilizados e compõem o figurino da peça – que traz referências ao universo dos insetos, como antenas e asas, mas não é uma representação fiel deles.

Curiosamente, a fábula que marca as três décadas do grupo foi idealizada pelo dramaturgo carioca Jô Bilac. Ele já havia escrito para a companhia a peça “Conselho de Classe” (2014), que marcou os 25 anos da trupe. Para o novo aniversário, propôs “Insetos”. A ideia foi acolhida de pronto. Afinal, a primeira parceria foi não só um sucesso como também provou uma capacidade particular de dialogar com a realidade. “Logo depois que estreamos ‘Conselho de Classe’, uma peça que falava sobre a situação das escolas, tinha um quê de protesto, estouraram as ocupações de secundaristas em todo país”, recorda a atriz.

Único estreante em trabalhos da companhia, Rodrigo Portella assumiu a direção a convite dos atores, que assistiram dele, no ano passado, a peça “Tom na Fazenda”. “Ele foi um achado! Imagine, trabalhar pela primeira vez com um grupo que está há tanto tempo junto... Ele soube ter uma escuta impressionante, só depois entrou, com observações precisas e delicadas”, elogia Susana. O reconhecimento é mútuo. Tanto que a Cia dos Atores foi uma referência para a formação artística do diretor, como ele mesmo faz questão de frisar.

É notável que os artistas tiveram completa liberdade de trabalhar sobre o texto inédito de Bilac para chegar ao que se vê em cena. Tanto que o livro “Insetos” (Ed. Cobogó) traz tanto a versão do dramaturgo quanto a da trupe. “Há casos em que toda encenação e montagem estão a serviço de dar conta de uma história escrita por alguém. Nesse caso não, o texto funciona como um disparador. Ele tem uma característica que eu acho muito interessante: a cada novo acontecimento no Brasil e no mundo, muitas das cenas e passagens são ressignificadas”, estabelece Portella.

Fábula
No palco, o resultado se traduz em um mosaico de 12 quadros que se entrelaçam. Vem à cena um imenso êxodo que desequilibra a natureza. Baratas são pisoteadas, abelhas desaparecem. Diante do colapso, uma nova ordem se impõe sob a figura autoritária de um louva-a-deus. Por vezes, a analogia entre insetos e humanos é óbvia, em outras cenas, é velada. E, assim como em “Conselho de Classe”, a realidade se cola à ficção.

“A gente estava na segunda semana da temporada, no Rio. Há uma personagem, uma joaninha, que é executada e ela defendia algumas pautas... Então, houve a execução de Marielle Franco e Anderson e a cena ganhou outra conotação”, observa Susana, lembrando também que o tema do militarismo já estava presente no espetáculo e então, com a intervenção federal no Estado, o público passou a fazer a associação. Ela lembra, no entanto, que as personagens não se relacionam a pessoas reais de forma direta. “Não queríamos que fosse panfletário, o objetivo não é colocar o dedo na cara de ninguém. Na peça, estão representações de forças, não de pessoas. Afinal, precisamos pensar e refletir sobre essas situação de caos e colapso que vivemos”, pondera.

Esse dinamismo do espetáculo, abrindo possibilidade que as cenas sejam observadas à luz do noticiário mais recente, é também notável na cenografia: pensada por Augusto e Beli Araújo, o cenário é feito de pneus, que são manipulados pelo elenco.

Além de ser uma alegoria da organização social, a peça é também uma reflexão sobre como o universo dos insetos, como acontece na realidade, é atravessado pelo dos humanos. Assim, questões como a extinção das abelhas, algo que tem sido apontado como capaz de colapsar todo ecossistema, são evidenciadas na obra. “Estamos vivendo uma revolução social e econômica no mundo, mas também há a questão biológica. Eles (os insetos) coabitam o planeta, têm que migrar, sair de onde estão, por questões ambientais, por escolhas econômicas nossas. Então, se eles refletem nossas escolhas, a gente coloca neles a perspectiva para olhar para o que estamos produzindo no mundo”, expõe Susana.

“Insetos” já passou por quatro Estados antes de chegar a Minas Gerais. No percurso, a atriz observa que o espetáculo “se comunica e provoca o público de forma muito frontal”, causando reações nas amigas de sua filha, de 13 anos, e nos amigos do seu pai, de 70. “O grande mérito é esse, essa abrangência de compreensão”, comenta Susana, algo facilitado por uma característica salutar do grupo: o uso do humor, dando leveza à fábula.

Insetos
CCBB BH (Praça da Liberdade, 450, Funcionários). Estreia: dia 20 (quinta), às 20h. Apresentações de quinta a segunda, às 20h. R$ 30 (inteira). Até 15/10.