Identidade

Negro é lindo

Diante do racismo generalizado, nem sempre é natural que pessoas negras se reconheçam como tal; fomos atrás de quem passou por esse processo e os relatos são de que ele é transformador

PUBLICADO EM 04/11/17 - 03h00

Desastrosa é o adjetivo que talvez melhor defina a campanha promovida há alguns dias por uma marca de papéis higiênicos que, ao lançar uma versão com folhas pretas do produto, usou como slogan a frase “Black Is Beautiful” (negro é lindo). Poderia não ter sido nada demais, não fosse o contexto. A frase é um dos ícones de resistência do movimento negro norte-americano e inspirou negros no mundo todo pela via da autoafirmação, do empoderamento e da igualdade racial.

Dentre as inúmeras manifestações despertadas pelo caso, uma das mais contundentes foi a da atriz Zezé Motta, 73, que usou sua página no Facebook para comentar. “Tenho propriedade para falar sobre o assunto, vi com meus próprios olhos, sei o que foi dentro de mim. Foi em 1969, viajei aos Estados Unidos com o grupo do (diretor) Augusto Boal para encenar ‘Arena Conta Bolívar’ e ‘Arena Conta Zumbi’”, contou.

“Eu tinha comprado uma peruca lisa Chanel e representava com ela. Quando nos apresentamos no Harlem, um grupo de militantes negros ficou chocado com o fato de eu usar peruca. Era o auge do black is beautiful, e a gente tinha que manter as características originais da raça. (...) Nesse dia, voltei para o hotel, tomei um banho demorado e deixei meu cabelo voltar ao natural. É que, além da peruca, eu fazia alisamento com pente quente. Ali eu comecei a me aceitar como negra. Saía nas ruas do Harlem e reparava que os negros americanos andavam de cabeça erguida” (leia o relato completo nesta página).

Embora Zezé Motta tenha vivenciado esse momento de autorreconhecimento e de solidificação do orgulho da raça entre os anos 1960 e 1970, até hoje a realidade não mudou o suficiente para que esse entendimento tenha se tornado a regra no Brasil entre a população negra. Algumas vezes, é preciso que aliados externos entrem em cena para alavancar esse processo, e, embora cada vez em menor número, há os que ainda mascaram as características de sua etnia.

Esse é um dos sintomas do racismo que ainda é um traço muito marcante do Brasil, como observa a professora e pesquisadora da população afro-brasileira Rosália Diogo. “Infelizmente essa doença está bem introjetada no seio da nossa sociedade. E como o racismo não é explícito, e sim velado, fica complicado criar uma força conjunta de desconstrução dos seus mecanismos e até mesmo para a pessoa negra é difícil se identificar, se autoafirmar como tal”, diz. “Muitas vezes, o que vemos somos nós, negros, negando nossa própria identidade e tentando nos aproximar de um ideal e um ideário de branquitude, do ponto de vista estético e até do ideológico”.

Isso tem a ver, segundo aponta Rosália, com um imaginário social muito bem elaborado e constituinte da identidade brasileira de que a bela estética, a boa referência cultural étnica e artística é aquela originária de matriz europeia. “Nós negros, com cabelos crespos, narizes não afilados, muitos com a melanina mais acentuada, não estamos no escopo do que é considerado esteticamente belo. E isso determina muita coisa em nossas vidas, entre elas, as possibilidades de inserção no mercado de trabalho e até a mobilidade pelos territórios da cidade. Normalmente, os espaços descobertos de cuidados pelo poder público são destinados a nós e aqueles que têm mais recursos, saneamento básico, segurança pública, são apropriados para a circulação de pessoas brancas, denominadas como elite”, explica.

Questão coletiva

Mudar esse cenário depende não só de estimular que os negros consigam identificá-lo e munir-se de ferramentas para combatê-lo, mas também da proposição de um diálogo com a sociedade como um todo. “Não podemos mais ficar discutindo a negritude somente entre nós, negros, o branco também tem que discutir sua branquitude”, comenta.

E o poder público precisa ser o principal agente nessa interlocução, pondera Rosália. “O racismo é uma questão societária, envolve todas as etnias e o branco tem que reconhecer seu privilégio de ter nascido branco. Essa conversa tem que ser estabelecida em conjunto, para que os dois lados criem movimentos de ruptura dessa estrutura racista”, afirma.

Com tudo isso em vista, o Pampulha foi atrás de pessoas negras que passaram pela experiência de reconhecimento e fortalecimento da própria identidade para ouvir suas histórias e entender como esse processo é um dos grandes aliados na luta contra o racismo. 

 

Augusto Cavalcante, 25, estudante de engenharia civil

“Tenho vivido esse processo há cerca de um ano. Na minha casa, meu pai é negro e minha mãe é branca, e essa questão sempre foi apagada entre nós. Sempre me vi como ‘moreno’ e meus pais reiteravam isso pra mim. 

Acho que meu olhar mudou com a música. Comecei a escutar artistas negros e a me ver mais neles, nas suas vivências. Depois comecei a buscá-los em outras artes, como a literatura, até perceber que não me enxergava mais em muitos artistas brancos que eu gostava. 

A partir disso, fui pesquisar para entender porque eu fui ensinado a não gostar da cor da minha pele e tudo o que havia por trás disso. Passei a entender a história dos negros no Brasil. Uma das coisas que mais me tocaram foi descobrir que houve gente que investiu em estudos pra provar que a cor da pele influencia em qualquer coisa, como índole ou inteligência. 

Mas tudo isso mudou totalmente a minha relação comigo mesmo. Hoje eu me amo muito, amo a cor da minha pele, faço questão de pisar no chão pra falar que sou negro, por mais que muita gente goste de falar que eu sou moreno. Hoje em dia, estou tão bem com minha identidade que fico até meio inseguro de que no futuro isso mude.

Agora, além de exaltar artistas negros pela identificação, faço isso também porque acredito que é meu papel dar valor a esses trabalhos.

Hoje sou mais consciente do racismo. Não acredito que mudou muita coisa, por mais que já vejamos mais negros na televisão, por exemplo. Por outro lado, me sinto mais preparado para enfrentar o racismo hoje em dia. E também para entender de onde vêm determinados comentários e atitudes racistas, o que faz com que eu não necessariamente os leve para o lado pessoal e seja capaz de dialogar com a pessoa que falou ou agiu mal. E isso eu acho fundamental, ser capaz de dialogar”.

 

Zezé Motta, 73, atriz

“Não estou aqui para julgar uma atriz que faz campanha enrolada em um papel higiênico preto. Cada um faz e aceita o trabalho que melhor lhe convém. Mediante a tantas ligações e mensagens, gostaria apenas de esclarecer o que muitos ainda não sabem, quanto a importância do #BlackisBeautiful. Tenho propriedade para falar sobre o assunto, vi com meus próprios olhos, sei o que foi dentro de mim. Foi em 1969, viajei aos Estados Unidos com o grupo do Augusto Boal para encenar ‘Arena Conta Bolívar’ e ‘Arena Conta Zumbi’. Ficamos três meses na estrada. Fomos também ao México e ao Peru. Eu tinha comprado uma peruca lisa Chanel e representava com ela. Quando nos apresentamos no Harlem, um grupo de militantes negros ficou chocado com o fato de eu usar peruca. Era o auge do black is beautiful, e a gente tinha que manter as características originais da raça. O Boal ainda me defendeu, disse que eu era engajada e tudo o mais. Nesse dia, voltei para o hotel, tomei um banho demorado e deixei meu cabelo voltar ao natural. É que, além da peruca, eu fazia alisamento com pente quente. Ali eu comecei a me aceitar como negra. Saía nas ruas do Harlem e reparava que os negros americanos andavam de cabeça erguida. Não tinha essa postura subserviente que eu sentia no Brasil e em mim mesma. Essa viagem teve essa importância de fazer com que eu enxergasse meu país de fora. Voltei ao Brasil. E cheguei pensando: Agora ninguém me segura! Isso, porque na adolescência tive a fase de embranquecimento. Minhas amigas diziam: ‘Seu nariz é chato, seu cabelo é ruim, sua bunda é grande’. E aí comecei a não gostar de nada em mim... Eu alisava o cabelo. Em cima do cabelo liso, usava uma peruca Chanel. Nada contra quem alisa o cabelo. O problema é que eu alisava para embranquecer. Pensava em fazer plástica no nariz. Cheguei ao ponto de investigar se havia alguma cirurgia para diminuir o bumbum... Descobri que era questão da autoestima bem resolvida. Para uns pode parecer bobagem, mas para mim e para milhares de negras que viveram em plena década de 70, Black is Beautiful foi algo extraordinário, passamos a nos aceitar, a nos empoderar, e não posso achar interessante uma campanha de ‘papel higiênico’ PRETO (tá, tudo bem, sem nenhum problema pois preto é uma cor, até aí, nenhuma ‘criatividade’ como essa me choca mais), ser VENDIDA COMO BLACK IS BEAUTIFUL. RESPEITO, POR FAVOR...”.

 

Campanha é sintomática

Ao ver a repercussão da campanha do papel higiênico preto, muita gente se perguntou como foi que, mesmo após passar pelo crivo de tantos setores envolvidos no processo de produção de uma agência de publicidade, aquela criação fosse veiculada. Como ninguém foi capaz de notar que a associação do slogan “black is beautiful” àquele produto era problemática?

Para o publicitário e vlogueiro Spartakus Santiago, 23, a resposta é bastante simples: isso aconteceu porque não existem negros nas agências. Em um vídeo com mais de 1,8 milhão de visualizações (disponível em facebook.com/spartakusvlog), ele trata do assunto. “Não é a primeira vez que vemos repercutindo no país uma propaganda racista. Como estou nesse meio, comecei a pensar e a procurar dados, pesquisas. Com o caso do papel higiênico, resolvi aproveitar a oportunidade para expor algo maior, o racismo institucional da publicidade”, observa.

Um dos dados apresentados por Spartakus em seu vídeo é de um estudo de 2015, feito por profissionais de comunicação sobre a presença de negros nas agências de publicidade brasileiras. De acordo com o levantamento, feito nas 50 maiores agências do país, apenas 3,5% dos funcionários dessas empresas são negros e só 0,74% estão em cargos executivos (3 em 404).

“É um meio muito elitizado. Os cursos são caros, assim como os equipamentos, e historicamente sabemos que as pessoas que têm mais dinheiro são brancas. Fica parecendo que a pessoa negra é inferior, mas o que ela teve foi menos privilégios”, comenta. “Inclusive, cobra-se muito representatividade dos negros nas peças publicitárias, mas não no âmbito da produção. E até as campanhas que vêm se diversificando, muitas vezes ainda são produzidas por pessoas brancas. Isso não é necessariamente um problema, mas é contraditório lutar pela inclusão de negros nas peças, mas não nas agências. Algumas agências e escolas até têm, mas ainda faltam políticas de inclusão de negros nesse mercado”, avalia.

Outra consequência disso é que muitas vezes o poder de consumo das pessoas negras é desconsiderado, como aponta o fundador da consultoria Etnus, especializada na tradução dos códigos culturais de consumo da diversidade brasileira, Fernando Montenegro. “Quando falamos sobre códigos culturais de consumo, o simples fato de uma pessoa ser negra ou de ascendência afro interfere diretamente na sua relação com tudo o que consome. Aquele arquétipo da família da propaganda de margarina, por exemplo, não contempla a população negra, mas ela nunca foi levada em conta como potencial consumidora”, ressalta.

Ideário de branqueamento

Por algum tempo esse posicionamento se justificou pelo fato de que os negros não tinham mesmo poder de compra, mas esse cenário, segundo Fernando, vem se transformando. “Essa faixa da população está ascendendo socialmente. Da nova classe média que surgiu no Brasil nos últimos anos, aproximadamente 80% são pessoas negras, que têm repertório, sabem o que é bom ou ruim para elas e escolhem com que querem gastar seu dinheiro. As marcas não estão sabendo muito o que fazer porque nunca precisaram pensar nisso, a publicidade sempre foi pautada num ideário de branqueamento da população”, afirma. 

Não só do ponto de vista ético, mas também do estratégico, esse posicionamento já não faz mais sentido. “Não se pode ignorar a influência dessa população que, embora seja tratada como minoria, movimenta 40% do PIB brasileiro”, argumenta Fernando.

Ele defende que reações como a que foi vista em relação à campanha de papel higiênico serão cada vez mais comuns se as marcas continuarem ignorando a população negra em suas estratégias de comunicação e desenvolvimento de produtos. “Tem sido criado um movimento de ‘não me vejo, não compro’ que vai impactar diretamente nas vendas e até no crescimento das empresas. Hoje, ele está maquiado pela crise econômica, mas já é bem forte. Só em 2015, a venda de alisantes de cabelo caiu 26%, porque existe uma tendência real de valorização da estética negra. Não dá para negar a transformação”, diz.

Redes de apoio

Se não é fácil dar início ao processo de reconhecimento e afirmação da identidade negra num país como o Brasil, que tem o racismo no seu cerne, manter esse processo em curso também é um desafio. Por isso, construir redes de apoio é sempre muito importante.

Foi com esse propósito que, no fim de 2015, Dandara Elias, 27, fundou o Instituto Todo Black É Power (todoblackepower.com), dedicado à valorização da estética negra. “Eu alisava o cabelo e, quando resolvi deixá-lo natural, percebi que não havia muitos estabelecimentos afins, que trabalhassem com os produtos que minha escolha demandava e que entendessem a questão política por trás disso”, conta.

Além de um salão de beleza, o Todo Black É Power tem uma loja colaborativa para afroempreendedores e promove eventos voltados à população negra – de encontros sobre maquiagem, reiki ou para meditação a discussões sobre o genocídio da população negra e o “blackmoney”. “Em janeiro, vamos abrir a primeira turma de profissionalização para trabalhar com o cabelo afro natural. Queremos que muitos outros espaços estejam aptos a isso”, frisa.

As irmãs Walkiria Gabriele e Mikaela Gabriele são autoras do livro “Meu Crespo, Nossa História” (Crivo Editorial), lançado no ano passado, que reúne depoimentos de pessoas de todo o Brasil que passaram pela transição capilar. “É sobre muito mais do que o cabelo, começa nele e vai para a autoestima, a identidade, as dores, alegrias e descobertas”, diz Walkiria. As duas participam, neste sábado, da mostra Diversidade Periférica.

 

Fernanda Zanelli, 32, gestora de projetos socioculturais

“Minha mãe é negra e meu pai é branco, descendente de italiano. Essa segunda parte da minha história sempre foi muito resolvida, a origem, o sobrenome. Na parte da minha mãe, sempre foi uma coisa mais encoberta, era como se minha ascendência negra nunca fosse declarada. Assim como minha mãe, minhas tias também se casaram com brancos, havia uma certa ‘política de branqueamento’, na família. 

Quando eu tinha mais ou menos 13 anos, lembro de estar esperando num consultório e ver uma revista falando sobre a questão racial. Havia vários artistas na capa, como a Zezé Motta e a Camila Pitanga, que inclusive dizia que não era moreninha, era negra. Eu fiquei meio chocada, porque se ela era, a chance de eu também ser era muito alta. Foi uma coisa que me marcou tanto que, 20 anos depois, quando comecei a pensar nessa questão, eu me lembrei. 

Acho que a questão racial foi ficando cada vez mais forte no Brasil, começou-se a discutir a desigualdade atrelada a ela. Como isso é algo com que eu trabalho, comecei a prestar mais atenção. Estudei em escola pública, morei na periferia, fiz faculdade pelo Prouni e agora trabalho na fundação de um grande banco, então fui me deslocando, passando a transitar em ambientes onde não circulava, e o racismo foi ficando cada vez mais presente. 

Comecei a notar, por exemplo, ao entrar num hotel, ser a única questionada em que quarto estou ou pedirem o cartão; ou ao frequentar certos estabelecimentos, ser confundida com alguém que trabalha neles. Antes, tentava colocar a culpa em outros motivos, mas sempre chega num ponto em que as outras justificativas se tornam insuficientes.

Eu comecei a problematizar isso, a me perguntar e perceber como negra. É algo difícil para alguém como eu, que tem a pele clara. Se por um lado não sou branca – e isso ninguém me deixa esquecer –, por outro, não tenho o estereótipo que a própria comunidade negra identifica. Todos os questionamentos ajudaram a dar origem ao coletivo Crônicas Urbanas, que desenvolveu, ao longo de 2017, o projeto ‘Itinerários da Experiência Negra’. Parte do nosso projeto foi criar um guia cultural composto por lugares de memória negra da cidade de São Paulo (1890-1950), onde moro, organizados em dois roteiros: centro e Bexiga.

Acredito que venho criando um olhar mais apurado e politizado. Hoje, eu estou muito mais atenta não só no que diz respeito a mim, mas a todo tipo de racismo. É uma espécie de despertar, depois você não consegue não mais enxergar. 

A grande questão é como escapar desse jogo com a sociedade, de ter que provar o tempo todo que isso acontece. 

Me aproximar da história da minha família, da umbanda, que faz parte da nossa trajetória, me ajuda a me conectar mais com essa energia”.

 

Tiago Gamaliel, 32, pesquisador de tendências

“Hoje eu me entendo negro. Na verdade, sempre me entendi, mas não tinha a dimensão do que isso significa, não consumia cultura negra, não entendia como uma identidade. Tenho mãe negra e pai branco, mas cresci longe da matriz preta. Só depois de adulto comecei a entender o que sou e de onde venho.

A partir do momento em que fui tomando consciência da minha trajetória, notei os preconceitos que sofri sem perceber, um lugar de isolamento, por crescer muito próximo à família do meu pai, estudando em escolas particulares, sempre no meio de brancos. Comecei a enxergar que sou o único negro. Casos de preconceito direto, acho que nunca sofri, não conscientemente. Mas meu cabelo sempre precisava ser raspado, por exemplo. Esse tipo de coisa que é introjetada.

Hoje eu não só me entendo como negro como faço questão de me afirmar como tal. Por ter crescido num meio branco, com muitos privilégios, acho que existe uma dificuldade de as pessoas ao meu redor entenderem. Mas eu faço questão de me afirmar cada vez mais. Hoje tenho mais preocupação de consumir cultura negra, entender as implicações da questão racial e constranger qualquer tipo de piada ou situação de racismo, ainda que velado. 

Meu trabalho hoje é pesquisa de novas tendências e comportamentos. E um dos temas que eu considero mais importantes hoje para o design e a estética é o afrofuturismo. Que não é um movimento de agora, mas fala desse desenho de um futuro que faz um exercício de imaginar que lá na frente tudo é negro. 

Na ficção científica clássica, se notar, não há negros. Ou eles morrem no começo ou têm papéis secundários, marginalizados. Nunca são os heróis da história. Por conta dessa necessidade, existe o afrofuturismo, a construção de um futuro mitológico de negros superpoderosos, feita por artistas fiéis à suas culturas, sem ir pela via do embranquecimento.

Pensar que um futuro negro é utópico, que o único jeito disso existir é numa utopia, faz perceber o quanto nossa cultura é podada. Por isso, olhar para o futuro, projetá-lo livre de dor e exclusão é algo que ajuda a viver hoje. É pensar que o que vem por aí é mais legal para a dor de hoje ser menor”.

 

Karla Lopes, 25, jornalista

“É engraçado, quando a gente é mais novo, não gosta de ser chamado de negro, preto e tal, porque sempre que ouvíamos esses termos era de alguém nos discriminando. Não era de alguém identificando a raça, mas sendo preconceituoso. Por isso, se alguém perguntasse, eu falava que era morena. Só que morena é uma pessoa branca de cabelo preto.

Eu tinha muito problema com a estética negra, a boca grande, o nariz largo. Aos 15 anos cheguei a procurar cirurgia pra diminuir minha boca. Eu a odiava por conta do racismo. Não usava batom colorido, nada que pudesse destacá-la. Aos dez anos, pedi minha mãe para alisar meu cabelo, porque é a realidade de qualquer menina negra ser atacada por conta do cabelo crespo.

Isso começou a mudar quando criei meu blog (www.heycute.com.br), aos 17 anos. Passei a me enxergar como mulher negra porque tinha leitoras que se identificavam comigo por isso. Havia poucas blogueiras negras e elas queriam, por exemplo, dicas de maquiagem, saber como ficaria na pele delas. A primeira vez que usei batom vermelho me senti muito bonita, mesmo sabendo que o consenso era de que aquilo não era pra mim. Fui me descobrindo pela maquiagem e pelas outras pessoas. 

Aliás, maquiagem era algo que quase não existia para nós. Mas isso vem mudando. E o fato de a (cantora) Rihanna ter lançado uma linha com 40 tons de base e as primeiras que esgotaram foram as de tons mais escuros é muito sintomático. Muita marca diz que não produz porque não tem saída, mas esse é um claro exemplo de que não é falta de mercado.

Hoje eu vejo a beleza negra sendo mais valorizada. Algumas pessoas valorizam de fato e outras porque ser inclusivo está na moda. 

Mas porque eu hoje consigo me olhar no espelho e me achar linda e igual a todo mundo, ainda que algumas pessoas achem que não, isso não significa que eu seja obrigada a deixar de usar megahair, que é uma coisa que eu gosto, por exemplo. A questão da transição capilar é uma das mais importantes e não diz só do cabelo, é social, é a pessoa se aceitar como é e não deixar ninguém discriminá-la. Mas quem não quer passar por isso não deve ser considerado menos negro. 

Um dos posts mais lidos do meu blog, com mais de 150 mil visualizações e republicado por outros meios é um em que conto da vez que fui chamada de ‘nega metida’. A pessoa que disse isso falou sorrindo, como um elogio, por eu ser estudada, inteligente, independente, e finalizou afirmando que não estava acostumada a ver mulheres assim. Mas uma negra metida é uma branca normal. Ninguém chama brancas de metidas por terem feito faculdade, serem independentes. Mas a negra sim, porque está ocupando um espaço que não era para ser dela. É uma fala carregada de deboche, disfarçada de elogio”.