Resistência

Nunca é tarde: o início da alfabetização para adultos

O Pampulha acompanhou a primeira semana de aula de um projeto voltado para a alfabetização de adultos na Faculdade de Educação da UFMG

PUBLICADO EM 10/03/18 - 03h00

Numa tarde quente de terça-feira, o ventilador ajuda a aliviar o calor intenso na sala. Este, porém, em momento algum chega a comprometer o desenrolar da aula no prédio da Faculdade de Educação da UFMG (FAE), já que o interesse é maior que qualquer incômodo. Na turma, adultos discutem sobre seus direitos, especificamente aquele do qual estão usufruindo naquele momento: o direito à educação. É a primeira semana de aulas deste semestre do Projeto de Ensino Fundamental de Jovens e Adultos, o Proef-1, voltado para a alfabetização e consolidação da alfabetização dos alunos (correspondente ao período do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental).

Mesmo titubeando um pouco na leitura, Dionilson, 48, levanta a mão com veemência quando as monitoras pedem que alguém leia as frases projetadas no quadro. E à medida que outras pessoas intervêm para participar da aula, aspectos de suas trajetórias pessoais vão sendo desvelados: Izani, 53, foi tirada da escola aos 7 anos pelo pai para trabalhar na roça; Maria do Rosário, 67, trabalhou por uma década como cozinheira de um colégio, sem que ninguém soubesse que era analfabeta – era preciso decorar os cardápios de três turmas para não levantar suspeitas; Lusia, 71, se escondia quando criança num imóvel abandonado da vizinhança para estudar sua cartilha, depois que os pais, analfabetos, a proibiram de frequentar a escola (leia mais na página 4). Em comum, todos têm a vontade de recuperar oportunidades perdidas, demonstrando que nunca é tarde para transformar a própria vida.

O trabalho realizado ali vai muito além do conhecimento, ainda que este seja o fio condutor de tudo, e não existe “estar velho” para nada. “Quando eles chegam, têm a autoestima muito baixa. Em geral, são vidas já muito marcadas pelo fracasso, então o discurso deles é ‘não vou dar conta, não sei nada, burro velho não aprende’”, observa a professora e pesquisadora Francisca Maciel, coordenadora do projeto. “Eles já tiveram muitas janelas e portas fechadas na vida. Nós não vamos ser mais uma. Nossa primeira missão, portanto, é fazê-los acreditar que têm condições de aprender. Vencendo essa primeira barreira, já dá-se um salto. Quando se soltam, eles vão se revelando e percebem o quanto já sabem. E aí o olhar muda, o discurso vira ‘estou aprendendo muito’, mas muita coisa eles já sabem”.

Trabalho integrado

O processo é diferente do que é feito com as crianças, as aulas não são divididas em disciplinas formais, são interdisciplinares. E também não vêm de um currículo fechado, são construídas ao longo do semestre a partir das demandas dos próprios alunos. “As atividades são definidas pelo próprio grupo. Ano passado, por exemplo, tivemos um projeto envolvendo as plantas medicinais, a partir de uma visita ao jardim Mandala, da FAE. Outro foi voltado para a questão do trabalho, por conta de uma ida ao Museu de Artes e Ofícios. Assim, trabalhamos a questão da leitura, dos conhecimentos matemáticos, da geografia e das outras disciplinas de uma forma mais integrada”, explica Francisca. E vai além. O tema seguinte da aula que a reportagem acompanhou foi os diferentes tipos de preconceitos, baseado num comentário de uma aluna no dia anterior, que havia falado sobre o preconceito que sofreu por não ter estudado.

É por isso que, nas sextas-feiras, o horário da aula é dedicado aos monitores – alunos de todos os cursos de licenciatura da universidade – para que possam discutir e planejar as aulas. A pedagoga Cristiane Lima, 23, foi monitora durante dois anos, durante sua graduação. “Foi muito transformadora para mim a questão da troca de saberes. Às vezes eles entram achando que não sabem nada, mas vamos mostrando que sabem, sim. Além do carinho e cuidado que têm por nós. Eu tenho sinusite com frequência e me ensinaram a fazer um chá, que foi tiro e queda. Sem falar no respeito que têm pela gente, mesmo sendo mais novos. É muito bonito, nos faz ficar lisonjeados”, diz.

Tanto que às vezes é difícil segurar a emoção, como observa a estudante e monitora do projeto Tássia Teixeira, 25. “Eles acham que estão aprendendo e mal sabem o quanto nos ensinam. Eles sempre são muito participativos e aliam o assunto com casos pessoais. Eu já passei pelo ensino fundamental com crianças e é bem diferente, o viés é o do lúdico. Com adultos, tem toda essa questão, uma palavra lembra uma história de vida. É mais profundo, nesse sentido”, afirma.

Limites expandidos

Propor a si mesmo um desafio como o desses alunos – sobretudo depois de certa idade – tem efeitos incalculáveis na autoestima, como ressalta a psicóloga e psicanalista Lilian Amaral. “Vivemos numa sociedade em que envelhecer não é visto como uma coisa legal, as pessoas fazem de tudo para se manter com aspecto jovem. Em vez de achar vantajoso, uma vez que só não envelhece quem morre cedo, as pessoas têm pavor de serem velhas”, pondera. Não é uma barreira explícita, mas como os ambientes vão ficando cada vez mais rejuvenescidos, a pessoa mais velha vai se sentindo inadequada. “A partir do momento em que rompe com esse bloqueio e se propõe a aprender coisas novas, sejana educação formal ou uma arte, um esporte, qualquer atividade que socialmente entenda que não é para sua idade, isso vai fazer com que ela perceba que pode mais do que aquilo que se colocava como limite”, acrescenta.

Segundo ela, toda vez que rompermos o limite imposto internamente ou externamente, nos sentiremos fortalecidos, capazes, renovados em nossas potencialidades. A tendência é ampliar a autoestima cada vez mais. “Uma vez que ela (a pessoa em uma nova atividade) descobre que pode, ninguém mais a segura. É quase que uma autorização para continuar descobrindo o mundo que até então estava limitado”, afirma Lilian, que lembra de um exemplo em seu consultório. “Eu atendi uma vez, durante um mês, um senhor de 59 anos, Seu Divino, paciente terminal. Ele sabia que seu tempo era curto, e de fato acabou falecendo, mas quis fazer psicoterapia porque acreditava que ainda poderia resolver algumas questões que tinha, não queria encerrar sua caminhada sem encará-las. E foi e resolveu, na medida do que foi possível em um mês, mas ao menos elaborou a questão que tinha e pôde ir embora tranquilo. Para mim, Seu Divino é o maior exemplo de que nunca é tarde para nada”, conclui.

Programa da maturidade

Desenvolvido para pessoas com mais de 50 anos, o Programa da Maturidade oferece disciplinas de múltiplos assuntos para os estudantes, entre elas informática, psicologia, história da arte e até tai-chi- chuan. Cada aluno monta seu horário como preferir e pode encaixar disciplinas obrigatórias e optativas a cada semestre e, no total, são seis módulos até a conclusão do curso. As aulas deste ano já foram iniciadas, mas matrículas ainda podem ser realizadas. Onde Centro Universitário Estácio de Sá (r. Erê, 207, Prado) Quando Aulas às segundas, quartas e sextas, das 14h às 17h40 Quanto R$ 1.758,72 por semestre. Informações (31) 3298-5260.

 Galpão oferta aulas de teatro para idosos

Para envelhecer com arte, o Galpão Cine Horto oferece aulas de teatro destinadas a pessoas acima de 50 anos. Entre 16 de março e 6 de julho, a oficina “Jogos de Afeto” oferece exercícios de criação, dinâmicas com objetos e contação de histórias para proporcionar contato com a arte cênica para idosos, como uma ferramenta de autoconhecimento e socialização. Para informações sobre matrículas, acesse: ww.galpaocinehorto.com.br/cursos-livres/cursos- para-3- idade/ Onde Galpão Cine Horto (r. Pitangui, 3.613, Horto) Quando Aulas às sextas, das 14h às 17h. Quanto R$ 350

Alfabetização para jovens e adultos

A UFMG oferece atividades para pessoas a partir dos 30 anos. As inscrições acontecem durante todo o ano para as turmas de alfabetização e consolidação da alfabetização – correspondentes ao período do 1° ao 5° ano do Ensino Fundamental. Informações sobre a matrícula pelo telefone 3409-6232. Onde Prédio da Faculdade de Educação (FaE) da UFMG (av. Pres. Antônio Carlos, 6627, Pampulha) Quando Aulas de segunda a sexta, das 15h30 às 18h ou das 19h às 21h30 Quanto Gratuito. 

Alunos demonstram o que a vida lhes pediu: coragem 

Risolina Ribeiro, 63, professora

A trajetória de Risolina é um pouco diferente da dos alunos do Proef, mas não deixa de ser análoga. Ao contrário deles, ela teve a oportunidade de estudar na infância, com apoio da família, até concluir o curso de magistério. Para fazer faculdade, não contou com a anuência do pai. “Eu usava praticamente todo o salário que ganhava trabalhando como professora durante o dia para pagar o transporte e a mensalidade da faculdade de letras, que era em outra cidade”, lembra. 

Não sem dificuldade, conseguiu concluir o curso e trilhar uma bem-sucedida trajetória profissional. Mais tarde, fez uma especialização na PUC Minas, mas seu sonho sempre foi a UFMG. “Eu estava há quase 20 anos sem estudar formalmente, quando uma amiga me incentivou a me inscrever para o mestrado”, conta. Desafio aceito, ela foi aprovada. Em 2014, já aposentada, ingressou no doutorado, cuja tese defendeu na última terça (6). “Enfrentar é a palavra correta. Enfrentei meu pai para fazer faculdade e, depois, outras várias barreiras: o fato de ter estudado em escola pública, de não ter feito uma faculdade renomada e até uma certa crueldade de colegas. Já cheguei a ouvir ‘ah, porque você é velha’, mas não me abati. Para mim, o estudo tem um valor primordial, e hoje me sinto muito feliz e realizada quando olho para trás e vejo tudo o que consegui. A forma que tive para vencer na vida foi estudar”, diz. 

Lusia Gonçalves, 71, do lar

Os pais de Lusia eram analfabetos, por isso não viam no estudo um valor. Ela e o irmão, porém, encontraram uma escola perto de onde moravam e se matricularam por conta própria. Ela tinha cerca de 8 anos. “Quando descobriram, eles nos mandaram sair. Mas eu continuei me escondendo numa casinha abandonada perto de casa com a minha cartilha, tentando continuar aprendendo”, lembra.

Pouco tempo depois, acabou indo morar em Governador Valadares, na região do Vale do Rio Doce, com uma tia, que passou sua guarda para uma amiga. “A filha dessa senhora estudava, mas eu não podia. Na verdade, eu fui escravizada por ela, cuidava das tarefas domésticas em troca de comida – quando sobrava pra mim. Ia dormir à 1h30 da madrugada passando roupa e acordava às 5h para acender o fogão a lenha. Vivia só para o trabalho”, conta. 

Casou-se com um marido muito ciumento, que também não a deixava estudar. Quando ele faleceu, teve a primeira oportunidade, mas precisava trabalhar e acabava dormindo de cansaço nas aulas, que eram à noite. 

Tentou novamente duas vezes, mas uma precisou interromper para acompanhar uma filha doente e a outra para fazer uma cirurgia no joelho. “Em 2016 eu vim pingar aqui, mas agora acho mais difícil guardar as coisas. Mesmo assim não vou desistir. Estudar é muito importante para aprender cada vez mais a me virar. E também é bom sair de casa, me distrair, fazer amigos”, diz.

Dionilson Aguiar, 48, desempregado

Quando ia para a escola na infância, Dionilson não se interessava muito em aprender. Ao crescer, tentou recuperar o tempo perdido, mas, aí, precisava trabalhar. “Ano passado, minha irmã me falou daqui e fiz a inscrição. Nunca imaginei que poderia estudar na UFMG”, diz.

Faz um ano que ele frequenta as aulas, mas diz que o progresso é nítido. “Desenvolvi bastante a leitura e melhorei a linguagem, meu modo de conversar. Sem contar que agora tenho mais autonomia para resolver minhas coisas”, comenta.

Maria do Rosário Moura, 67, cozinheira e diarista

No dia em que nasceu, Maria do Rosário foi prometida pela avó a um primo. O medo que desenvolveu dele não foi suficiente para dissuadir seu pai da ideia – e, quando tinha 14 anos, se casou. Tanto o pai quanto o marido não permitiram que ela estudasse. “Meu pai dizia que não precisava aprender a ler e escrever, porque ia escrever carta para namorados e ele não queria isso pra mim. E meu marido tomou posse de mim, não queria que fizesse nada”. Enquanto esteve casada, não pôde realizar o sonho. Só o fato de tirar identidade e CPF enfureceu o marido, que acabou largando-a com oito filhos (grávida do nono). “Sozinha, também não consegui estudar, mas arrumei um emprego que me fez conseguir uma casinha e melhorar um pouco de vida. Fiquei lá oito anos, depois fui ser faxineira num colégio, onde, três meses depois, me chamaram pra ser cozinheira. Sem saber ler e escrever, passei uma dificuldade! Às vezes, não dormia, chorava pensando que tinha que decorar o cardápio do dia seguinte. Passei dez anos assim e ninguém nunca descobriu que eu não sabia ler nem escrever”. 

Com os filhos já criados, descobriu o Proef. “Já faz três anos que frequento, mas nem sempre consigo vir, já que trabalho como diarista. Mas já sei ler e escrever, sou outra pessoa! Antes, andava com medo, mas fiquei mais tranquila e tenho cada vez mais vontade de lutar, aprender mais. Meu sonho é fazer teatro, dança. Tenho 67 anos, mas nem me lembro. A verdade é que não existe hora para começar nada. Enquanto tiver vida, não vou parar”.

Izani Torres de Limas, 53, do lar

Izani chegou a frequentar a escola na infância, na zona rural de Inhapim, região do Vale do Rio Doce. Aos 7 anos, porém, seus irmãos mais velhos foram para São Paulo trabalhar e ela e suas irmãs de idades mais próximas foram tiradas dos estudos para trabalhar na roça. “Eu chorei demais da conta, pedi aos meus pais para voltar. Era uma coisa que eu gostava muito, até perdia o sono esperando o dia amanhecer para dar a hora de ir para a escola. Cheguei a aprender a ler, estava me desenvolvendo. Mas não teve jeito, não pude voltar. Então, comecei a praticar em casa para não esquecer, escrevia em qualquer papelzinho. A única coisa que tinha para ler era uma ‘Bíblia’, eu lia toda noite”, conta. 

Por muito tempo, Izani ficou chateada ao ver as amigas estudando e não poder fazer o mesmo. Mas acabou passando. Ela veio morar em Belo Horizonte, casou-se, teve filhos. Até que uma das filhas, estudante da UFMG, a incentivou a entrar no Proef. “Minha primeira reação foi negar, falar que estava velha, que não ia adiantar nada. Mas acabei vindo porque sabia que ainda tinha muito a aprender”, diz. Frequentando as aulas desde setembro, diz que já progrediu muito. “Minha cabeça abriu, eu tinha a mente muito fechada, dificuldade de aprender as coisas. Aqui, temos liberdade para nos expressar, as monitoras nos acolhem com carinho, nos valorizam como seres humanos, pessoas de verdade. Mesmo que sejamos pessoas simples, sem estudo. O valor que dão pra gente nos anima a vir, somos encorajados por elas”, comenta.

Vilma Pereira de Oliveira, 64, do lar

Ninguém chegou a proibir Vilma de estudar, mas seu afastamento da escola também é uma história traumática. Seu pai tinha muitas amantes e isso a deixava revoltada. Uma vez, ela bateu na filha de uma delas e foi duramente punida por isso. “Eu estava na escola cantando o hino nacional antes da aula quando meu pai entrou, pediu licença às professoras, e me tirou de lá pelos cabelos e foi me batendo por todo o caminho. Isso me deu muito desgosto de voltar pra escola”, conta. 

Casou-se aos 16 anos, e logo veio o primeiro filho. “Meu marido era muito bom, mas bebia muito, chegava em casa e quebrava as coisas, brigávamos muito. Depois ele foi pro Iraque trabalhar e eu tive que ser pai e mãe. Então não deu tempo de estudar”, afirma.

Assim, ela acabou deixando pra lá. A mudança veio recentemente, por incentivo de uma neta. “Ela foi morar em Portugal, mas antes de ir embora disse que não iria sem me ver estudando. Hoje mesmo ela mandou uma mensagem me incentivando a continuar. E eu estou melhorando cada vez mais, já sei escrever boneca e chapéu. Meu sonho é conseguir olhar uma linha inteira e ler tudo. E também me ajudou a me soltar mais, porque eu sou muito tímida e às vezes tenho vergonha de falar as palavras errado. A etapa mais difícil era entrar na escola, agora que estou aqui, vou correr atrás e vou vencer”, conclui.