SUPERPRODUÇÃO

Ópera  de preto 

Com elenco formado somente por solistas negros, obra-prima da produção operística norte-americana ‘Porgy and Bess’ é montada em BH

Marly Montoni (foto), que interpreta Bess, e todo o elenco da produção é formado por solistas negros nascidos no Brasil | Foto: Paulo Lacerda/Fundação Clóvis
PUBLICADO EM 14/10/17 - 03h00
Quando o Theatro Municipal do Rio de Janeiro realizou, em 1986, uma montagem da ópera “Porgy and Bess”, do compositor norte-americano George Gershwin (1898-1937), que pressupõe um elenco formado integralmente por solistas negros, foi necessário “importar” profissionais de outras nacionalidades, uma vez que o Brasil não dispunha de cantores negros em quantidade suficiente para suprir a necessidade da ópera.
 
Três décadas depois, Fernando Bicudo, que era o diretor artístico do Municipal à época, celebra a mudança no cenário operístico do país. Ele é o diretor cênico da montagem da Fundação Clóvis Salgado, que fica em cartaz no Palácio das Artes a partir do próximo sábado (21) e, desta vez, todos os solistas são brasileiros.
 
“Naquela época, trouxe 12 solistas da América do Norte para cantar essa ópera. Hoje, por alegria nossa, temos condições de ter um elenco inteiramente brasileiro. E com artistas excepcionais”, afirma Bicudo. “É uma alegria muito grande que eu tenho particularmente que, ao longo desses 30 anos, a ópera tenha se democratizado e deixado de ser uma coisa das elites brancas. Era tanto apresentada quanto consumida pela elite branca brasileira e hoje não é mais. Houve uma democratização tanto de sua produção como do acesso”.
 
“Porgy and Bess” estreou em 1935, com libreto de DuBose Heyward (1885-1940) – também autor do livro “Porgy”, em que a ópera é baseada –, e letras de Heyward e Ira Gershwin (1896-1983), irmão do compositor. Considerada a obra-prima da produção operística norte-americana, conta a história de Porgy, um mendigo, deficiente físico que vive nas favelas de Charleston, na Carolina do Sul. Trata de sua tentativa de resgatar a amada Bess dos braços de Crown, um homem violento e possessivo, e do traficante Sporting Life.
 
 
Folk opera
 
Visionário, Gershwin mesclou a tradição europeia à linguagem de musicais e ao jazz, ritmo originalmente negro nos Estados Unidos, como explica o maestro Silvio Viegas, diretor musical e regente da montagem. “Ele usa essa linguagem jazzística para colorir, desenhar a ambientação da ópera que constrói, criando uma harmonia muito rítmica, pulsante, dançante. Ela tem muito da música gospel também, que é uma das influências do jazz. Por isso, a orquestra tem instrumentos como o piano, a bateria e o saxofone, que até existem nesse contexto, mas não são comuns”, diz.
 
Outra característica particular desta peça é o modo como interagem coro e solistas. “Há grandes números musicais e a relação dessas duas partes é muito próxima e personificada. O coro tem elementos, pessoas, não é simplesmente um grupo, e muitas vezes se dissolve em personalidades que estão ali presentes. É algo muito característico dos musicais da Broadway. E é uma mescla de gêneros que faz com que o discurso musical operístico seja muito difícil pra gente”, comenta Viegas sobre o desafio.
 
É relativamente comum que grandes árias caiam no gosto popular e sejam popularizadas quando muda-se seu gênero, em termos de interpretação. Mas Gershwin compôs essa ópera com tantas características rítmicas e possibilidades de leituras que muitas das árias de “Porgy and Bess” acabaram sendo facilmente absorvidas pela música popular, na voz de intérpretes como Ella Fitzgerald, Billie Holiday, Sarah Vaughan, Louis Armstrong, Miles Davis, John Coltrane e Janis Joplin. Estes gravaram músicas como “Summertime”, “Bess, You is My Woman Now” (que inclusive tem uma versão de Marisa Monte), “It Ain't Necessarily So” e “I Got Plenty o’ Nuttin”. 
 
Além da complexidade musical, a ópera de Gershwin é também muito rica dramaturgicamente, como observa Fernando Bicudo. “É uma das óperas mais difíceis de serem encenadas, há uma quantidade grande de elementos dramatúrgicos, de personagens. São quase 20 solistas interpretando personagens importantes para a trama, um coro completo, um corpo de baile e também 15 crianças. É uma superprodução isso que o Palácio das Artes está fazendo e acredito que a produção mais importante do ano no Brasil”, afirma.
 
 
Comunidade
 
Em vez de ambientar a encenação no sul dos Estados Unidos, à época da Grande Depressão, Bicudo optou por trazê-la para o Brasil dos dias de hoje. “Como a história se passa numa comunidade pobre que ocupou uma área aristocrática, trouxemos a ação para uma comunidade brasileira atual, que podia ser no Rio, em São Paulo, Belo Horizonte ou qualquer outra grande cidade brasileira. Os problemas e dificuldades são idênticos aos que vivemos hoje e a cenografia que eu e Desirée Bastos criamos juntos é espetacular”, diz.
 
Luiz-Ottavio Faria, que Bicudo classifica como o Pavarotti dos baixos hoje no mundo, pretendia não mais se envolver com montagens de “Porgy and Bess” e retirou da biografia em seu site (www.ottavio-faria.com) as mais de 120 apresentações que já fez da ópera, em diversos papéis. Embora a produção tenha sido responsável por viabilizar sua carreira internacional – hoje ele mora em Nova York –, receava perder oportunidades de fazer coisas diferentes.
 
Quando foi convidado para ser Porgy na montagem do Palácio das Artes, aceitou no ato. “Jamais negaria fazer parte desse projeto no Brasil, em Minas, em Belo Horizonte que é minha cidade favorita. Sou do Rio, mas minha mãe nasceu no Vale do Jequitinhonha, tenho muitos familiares. Se pudesse, trocava Nova York por BH – e pretendo fazê-lo, quando me aposentar”, declara.
 
Ele ressalta a importância de uma iniciativa como essa, sobretudo a preços acessíveis. “Eu tinha 16 anos e nunca tinha assistido a uma ópera, mas um professor meu me levou e me mostrou um baixo cantando e me disse que eu poderia ser como ele. Fiquei maravilhado com a possibilidade e fui estudar música, mas antes de consolidar minha carreira, também fui técnico de eletrônica industrial. Por que eu fui direto? Porque não tinha um modelo, não conhecia ninguém, principalmente da minha raça, que me mostrasse que era possível”, conta. 
 
Em tempos em que o próprio Palácio das Artes vem sendo vítima de intolerância, o maestro Silvio Viegas aposta no potencial transformador de uma montagem como essa. “É muito importante colocar o negro como protagonista absoluto, num mundo em que a cor da pele, a religião ou a escolha política fazem com que as pessoas sejam discriminadas. ‘Porgy and Bess’ trata de assuntos como ‘Romeu e Julieta’: amor, traição, decepção, discórdia, aceitação, coisas comuns a todos nós independentemente do que possamos acreditar ou da cor da pele”, conclui.
 
 
Porgy and Bess
- Ópera de George Gershwin
Palácio das Artes (av. Afonso Pena, 1.537, centro, 3236-7400). Dias 21, 23, 25, 27 e 31, às 20h, e 29 (domingo), às 19h. R$ 60 (inteira).
 
 
- Trechos da ópera serão apresentados gratuitamente dentra da programação do Festival de Arte Negra (FAN) e da série Concertos no Parque. Parque Municipal (av. Afonso Pena, 1.377, centro). Neste domingo (15), às 9h30.