Reportagem

BH na vida  e na obra 

Referência - Berço de grandes escritores, BH influenciou e está inserida nos escritos de todos eles

PUBLICADO EM 26/09/15 - 03h00

Artistas são mortais. Sua obra, no entanto, permanece. E uma espécie de elo desse par são os lugares em que viveram, locais por onde passaram, espaços em que moraram. Estes locais, ainda que se transformem ao longo do tempo, conservam rastros, vestígios, evidências de quem foram aquelas pessoas, ao mesmo tempo em que são (ou foram) matéria-prima para a expressão de sua linguagem.

Nesse sentido, Belo Horizonte tem papel fundamental na literatura brasileira. A cidade é berço de grandes escritores da língua portuguesa, como Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Pedro Nava (1903-1984), Henriqueta Lisboa (1901-1985), Cyro dos Anjos (1906-1994), Fernando Sabino (1923-2004) e tantos outros que, ainda que não tenham efetivamente nascido na capital, passaram anos cruciais de sua formação aqui.
 
Drummond, por exemplo, viveu em BH entre 1919 e 1934. “Foi aí que tudo aconteceu. Ele conheceu sua mulher, os amigos com quem manteve contato pelo resto da vida, participou do grupo que fundou ‘A Revista’ (publicação de afirmação do modernismo em Minas), teve dois filhos (o primeiro faleceu pouco depois do parto). Saiu com pouco mais de 30 anos”, diz o escritor mineiro Humberto Werneck, 70, que embora deixado Belo Horizonte há 45 anos, também passou a juventude aqui. “É diferente passar 15 anos em um lugar na idade que tenho hoje e fazê-lo no início da vida. Quando se é jovem, as coisas ficam impregnadas de uma outra maneira”.
 
A forma como Belo Horizonte impregnou esses escritores – desde os modernistas até os mais contemporâneos – e como isso se reflete em sua literatura é o fio condutor do livro “Uma Cidade se Inventa – Belo Horizonte na Visão de seus Escritores”, do escritor e jornalista Fabrício Marques, que será lançado neste sábado (26). “É um conjunto de várias pequenas biografias que trazem o que esses autores pensam sobre a cidade, somando um amplo painel de significados que ela assume sob a ótica deles”, diz Fabrício.
 
O livro é também, segundo o autor, uma forma de chamar a atenção para a importância de determinados lugares e para o fato de que precisam ser preservados. “Se não há o reconhecimento do que representam esses espaços, eles podem acabar destruídos e, assim, se tornam tão mortais quanto nós”, adverte.
 
Ressignificação
Por outro lado, mesmo que deixem de existir, a própria dinâmica da vida urbana pode ressignificá-los, mantendo sua relevância. Como aconteceu com o edifício na esquina da rua da Bahia com avenida Augusto de Lima. Ali funcionava o Grande Hotel, cujo restaurante chegou a ser retratado no poema “Noturno de Belo Horizonte”, de Mário de Andrade, que lá se hospedou e se aproximou de Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava e Emílio Moura (1902-1971). Demolido em 1957, deu lugar ao Edifício Arcangelo Maletta, inaugurado em 1961, que com seus bares, restaurantes e inferninhos se transformou em núcleo da boemia na cidade. Foi lá, inclusive, no bar Lua Nova, que outra geração, formada por Murilo Rubião (1916-1991), Jefferson de Andrade (1947-2013), Roberto Drummond (1933-2002), Luiz Fernando Emediato e Fábio Lucas conceberam o “Manifesto Contra a Censura”, assinado em 25 de janeiro de 1977. 
 
“É por isso que o livro se chama ‘Uma Cidade se Inventa’. Nós morremos e renascemos todo dia, a cidade também”, diz o autor. “É um livro de história, mas também é de geografia. O fato de os escritores terem vivido e circulado por determinado lugar é muito importante, porque de algum modo vai afetar o que eles escrevem”.
 
A perspectiva de Fabrício é reforçada pela pesquisadora e professora de geografia Flora Sousa Pidner. “Qualquer prática cultural é espacial primeiro porque todos nós temos uma vivência que é do espaço. A arte tem um fundamento que é a própria realidade em que o artista está inserido e essa realidade também é geográfica, mesmo quando o que produz é ficção”, explica. “Um bom exemplo disso é o Gabriel García Márquez, quando escreve ‘Cem Anos de Solidão’. Por mais que Macondo seja uma cidade fictícia, há vários elementos identificados como de sua cidade natal, Aracataca, na Colômbia. Ainda que seja uma ficção científica que se passe no espaço. A perspectiva é sempre de alguém que está na Terra”.
 
Uma Cidade se Inventa
Lançamento do livro “Uma Cidade se Inventa – Belo Horizonte na Visão de seus Escritores”, do escritor e jornalista Fabrício Marques.
Livraria Scriptum (r. Fernandes Tourinho, 99, Savassi). Neste sábado (26), às 11h. O livro será vendido a R$ 65 no dia do lançamento. Do dia seguinte em diante, passa a custar R$ 75.
 
O efeito das montanhas
O motivo porque Belo Horizonte deu origem a tantos escritores, de alguma forma, talvez seja o mesmo que fez muitos deles deixarem a cidade rumo ao Rio de Janeiro ou a São Paulo: o tédio. Embora seja a capital do Estado, em suas primeiras décadas não oferecia muitos atrativos. Por conta disso, o escritor e jornalista Fabrício Marques entende que isso acabava fazendo com que as pessoas se voltassem muito para si mesmas. “Acredito que esses autores encontraram na escrita uma forma de se relacionar tanto consigo mesmos quanto uns com os outros. E faziam isso com paixão, era algo vital”, diz.
 
O fato de serem numerosos acabava justamente por multiplicá-los, como analisa o escritor Humberto Werneck. “Por sua própria presença, acabavam servindo de exemplo para as novas gerações que iam chegando”, afirma. “A partir do modernismo, as gerações literárias mineiras meio que se engatam umas nas outras, sem necessidade de ruptura. É possível que isso seja consequência do espírito conciliador mineiro, que teria sido moldado pela geografia montanhosa: já que somos obrigados a conviver uns com os outros, vamos tratar de nos entender”.
 
Pontos de encontro
Além de conviverem, tanto eles quanto seus personagens circulavam preferencialmente por determinados espaços: rua da Bahia, viaduto Santa Tereza, Bar do Ponto, Café Estrela, Livraria do Estudante, Leiteria Celeste, Grande Hotel, Edifício Maletta, rua Erê (no Prado), bares Saloon, Cantina do Lucas, Lua Nova, Praça da Liberdade, salão Vivacqua, Livraria Alemã. Locais como esses – muitos já extintos – não só eram onde os escritores se reuniam para conversar, beber, trocar ideias, como também foram cenário de muitas de suas histórias.
 
Em uma de suas crônicas mais recentes no jornal “Estado de S. Paulo”, Werneck, que trabalha atualmente numa biografia de Carlos Drummond de Andrade, se diverte com a hipótese de o poeta estar no prédio da maternidade onde nasceu, o Hospital São Lucas, na hora de seu parto. Não seria impossível, já que dona Julieta Augusta, a mãe de Drummond, residia no hospital naquela data. “Fiz essa brincadeira porque o que ele escreve tem muito a ver comigo, uma afinidade unilateral muito grande, que imaginei que seria divertido que no dia 10 de fevereiro de 1945 ele estivesse lá”, diz. 
 
Embora Werneck tenha feito apenas uma brincadeira, Fabrício Marques enxerga na possibilidade de reconhecer e estar num lugar outrora frequentado por alguém que admiramos algo de potencial efetivamente transformador. “Acredito que os locais por onde passamos de alguma maneira vão nos marcar, seja pela afirmação ou pela negação. Uma prisão, por exemplo, tem uma carga negativa. Já esses lugares por onde passaram os escritores em BH adquiriam a capacidade de criar sentido de pertencimento nas pessoas, para além até da questão da literatura”, comenta.
 
Roteiro literário
E é em função disso que o escritor e gestor cultural Afonso Borges conduz um projeto que pretende mapear as residências, locais de trabalho, de escrita e de diversão dos escritores, criando um roteiro literário na cidade. O recorte da proposta, por ora, envolve três décadas do século XX, de 1915 a 1945. “A primeira etapa do projeto engloba, além do levantamento das informações, a criação de um mapa online que as torne disponíveis para consulta”, explica Afonso. “Num segundo momento, serão colocadas placas, totens e referências nas paredes para identificação desses lugares. Futuramente, esse roteiro pode virar uma coisa mais ambiciosa: o primeiro museu literário a céu aberto do Brasil”.
 
O projeto, conduzido com apoio da Fundação Municipal de Cultura, deve ficar pronto antes da próxima edição do Festival Literário Internacional de Belo Horizonte (FLI-BH), em 2016. “A ideia é trabalhar com a autoestima do cidadão de Belo Horizonte, mostrar a importância incomum da cidade para a literatura, coisa que dessa forma não se vê em nenhum outro lugar do Brasil”, diz.
 
Memória a ser preservada
Na esquina da rua Congonhas com Leopoldina, no bairro Santo Antônio, fica um imóvel que já abrigou um dos mais badalados redutos da boemia da cidade, o extinto Bar do Lulu. Décadas antes disso, porém, a casa já havia entrado para a história da capital: foi residência de Guimarães Rosa (1908 -1967), logo que casou-se com Lygia Cabral Penna. Depois de anos de abandono e depredação, a casa encontra-se cercada de tapumes, desde que foi incorporada a um empreendimento imobiliário que será erguido ali.
 
Por meio de nota, a Fundação Municipal de Cultura informou que o imóvel faz parte do conjunto de casas da rua Congonhas que foram tombadas e é objeto de um projeto de restauração e de construção de nova edificação.
 
No entanto, integrantes do movimento Salvemos a Casa de Guimarães Rosa em Belo Horizonte ainda temem que seja preservada somente a fachada da casa e que seu uso não seja garantido a toda população. “Nosso medo é que não só a casa onde Guimarães Rosa viveu, mas todas do entorno acabem como salão de festas ou estacionamento de um prédio”, diz o diretor do movimento, Sávio Leite. “O que propomos é que ela seja preservada integralmente e que seu uso seja aberto à população, em forma de museu ou centro cultural”.