Reportagem

Literatura Futebol Clube

Proximidade da Copa estimula lançamentos literários sobre o futebol

PUBLICADO EM 05/06/14 - 16h29
Armando Nogueira, certa vez, declarou que trocaria uma vitória do seu Botafogo por uma crônica de Clarice Lispector sobre futebol. A escritora, em tom sério, escreve de volta ao colega em outra coluna do “Jornal do Brasil”, afirmando que nem um romance seu inteiro sobre o esporte bretão valia uma derrota do time da estrela solitária. “Sou Botafogo, o que já começa por ser um pequeno drama que não torno maior porque sempre procuro reter, como as rédeas de um cavalo, minha tendência ao excessivo”, confessou Clarice, numa das únicas oportunidades em que mencionou o assunto futebol em toda a sua carreira.
 
É sintomático que Clarice, mesmo botafoguense apaixonada, não tenha dedicado outras linhas ao esporte: no país do futebol, a literatura brasileira acerca do tema cabe em poucas estantes. Só agora, quando o maior evento futebolístico do mundo está prestes a ouvir o apito inicial, o panorama dá sinais de mudança. Para virar o placar a nosso favor, lançamentos e reedições se somam à nossa biblioteca, compondo as narrativas sobre uma das maiores mobilizações de massa do país.
 
“Aqui no Brasil, ainda engatinhamos. A Copa induziu o aumento da produção e estamos tendo avanços nos últimos anos, mas ainda é muito pouco. Precisamos ver mais o esporte como retrato de época: ele nos dá plena condição de entender o que acontecia em dado momento histórico. Em termos de biografias dos nossos personagens, ainda estamos a pé, e com relação à ficção, sinto que também podemos evoluir”, opina o jornalista e escritor Pedro Blank, que lança, em Belo Horizonte neste final de semana, o livro “O Príncipe – A Real História de Dirceu Lopes”.
Além de traçar a biografia do segundo maior camisa 10 de todos os tempos no Brasil – o “Baixinho” levou o apelido de “príncipe” por ser considerado o sucessor do Rei Pelé – a obra comenta sobre o contexto histórico do país abordando a mudança da capital federal para Brasília, a construção do Mineirão, o crescimento dos times mineiros e, sobretudo, a relação da Ditadura com o corte do craque do Cruzeiro às vésperas da copa de 70. Dirceu é o princípio norteador do livro, mas questões políticas e outros temas sensíveis ao futebol, como o racismo, o alcoolismo e a superstição também marcam presença.
 
“O Dirceu conseguiu sintetizar, ao longo da carreira, tudo o que o menino sonha quando ganha a primeira bola: vestir a camisa 10, matar a bola no peito, dar chapéu, dar caneta, bater com as duas pernas... Recuperar os anos de ouro do futebol e alinhavar tudo isso com a história do Dirceu são motivos suficientes pra fazer valer essa biografia”, exalta Blank, que lamenta, pelos torcedores, pela seleção e pelos Mundiais que Dirceu não tenha feito parte da lista de Zagallo para defender a camisa canarinho no México.
 
“É tudo muito incipiente, ainda, por aqui”, engrossa o coro o jornalista e crítico Ricardo Ballarine. “O Brasil tem uma lacuna muito grande de literatura esportiva e biografias em geral. Sobre estas até que dá pra entender: que jornalista ou editor quer ter um trabalhão e depois de tudo ainda ter gastos com advogados?”, comenta Ballarine, sobre a lei de direitos autorais e as biografias não-autorizadas, ainda em debate no país.
 
E para reforçar o time de novidades documentais, o Cine Theatro Brasil recebe, a partir das 18h deste sábado (7), o lançamento do livro e documentário homônimos “Narradores, Memórias Afetivas do Futebol”. De Júnia Carvalho e Leandro Bortot, o almanaque traça um quadro de personagens que viveram histórias pelos meios de comunicação no Brasil durante as Copas do Mundo, no período de 1954 até 2014. O registro audiovisual, de 53 minutos, ilustra os depoimentos de Gilberto Silva, Dadá Maravilha, Mário Henrique Caixa, Milton Naves, Wilson Piazza, entre outros. O evento tem entrada franca e o público receberá, gratuitamente, o livro e o DVD.
Enquanto isso, à escassa bibliografia ficcional sobre o tema, acaba de se juntar o novo “Pelada Poética”, com textos inéditos de 26 escritores mineiros. Já na quarta edição (e segundo livro), o projeto belo-horizontino acontece sempre em consonância com as Copas (do Mundo e das Confederações) e homenageia, desta vez, o craque Nelinho –<ET>um dos maiores cobradores de falta de todos os tempos. O próprio assina uma das páginas.
 
Outros destaques da ficção ficam por conta de “Entre as Quatro Linhas”, reunião organizada pelo escritor Luiz Ruffato com contos de autores como Cristóvão Tezza, Flávio Carneiro e Tatiana Salem Levy, e o “Guia Politicamente Incorreto do Futebol”, um almanaque alternativo com vocação para a polêmica. Os autores Jones Rossi e Leo Mendes Jr abordam temas como a Democracia Corintiana, o racismo, a CBF, a Fifa, Batalha dos Aflitos, Copa União de 1987, e as torcidas organizadas para combater as ideias preconcebidas e as verdades irrefutáveis do mundo da bola.
G-4
 
Nelson Motta, Ruy Castro, Paulo Vinícius Coelho e Jamil Chade brigariam pela parte de cima da tabela, caso participassem da Copa de Literatura Brasileira (campeonato on-line, em formato de mata-mata, que acontece anualmente desde 2007). Os dois primeiros lançam, respectivamente “Resenha Esportiva” e “Os Garotos do Brasil”, ambos compostos por crônicas memorialistas. Motta revela suas observações de bastidores de sete Copas do Mundo, duas Olimpíadas e um Pan-Americano, enquanto Castro desvenda sonhos, traços de caráter e miudezas de alguns de nossos maiores ídolos, como Pelé, Garrincha, Bellini e Zico.
 
PVC, como é conhecido o analista mais prodigioso do futebol brasileiro, assina “Tática Mente: a História das Copas Explicada Pelas Cabeças e Pranchetas dos Treinadores”, em que o comentarista explica como jogavam as principais seleções da história dos Mundiais. No embalo, Jamil Chade coloca disponível, a princípio somente em e-book, “A Copa Como Ela É” , sobre todo o processo de escolha do Brasil como sede da Copa do Mundo e de preparação do país para sediar o evento esportivo.
 
Oficiais
 
De um lado, a torcida a favor, a exaltação. De outro, a torcida rival, a vociferar esconjuramentos. “Deuses da Bola, 100 Anos da Seleção Brasileira”, de João Carlos Assumpção e Eugenio Goussinsky, joga na primeira equipe, enquanto “O Lado Sujo do Futebol – A Trama de Propinas, Negociatas e Traições que Abalou o Esporte Mais Popular do Mundo”, dos jornalistas Luiz Carlos Azenha, Amaury Ribeiro Jr., Leandro Cipoloni e Tony Chastinet faz um esquema de marcação acirrada e contra-ataque mortal. Em cima do muro, a obra em dois volumes “Uma história do Futebol, Copas do Mundo e Sociedade”, do historiador Airton de Farias, é apontada pelo jornalista Juca Kfouri, autor do prefácio, como “a melhor história das Copas do Mundo jamais escrita em língua portuguesa”.
 
Os Rodrigues Mais Oito
 
Se, no geral, o brasileiro tem memória curta, que o diga o torcedor de futebol brasileiro. Ele vibra, torce, se empolga. No lance seguinte xinga, esbraveja e promete nunca mais acompanhar o time. Até a próxima rodada, tudo já foi esquecido e só a paixão permanece. Para refrescar a lembrança dos ávidos pela bola e pelas letras, a série de títulos que volta ao catálogo das editoras vem bem a calhar. Entre novidades (“Um Time de Primeira – Grandes Escritores Brasileiros Falam de Futebol”, Nova Fronteira, 2014, R$ 9,90) e reedições, a trinca dos Rodrigues se firma como titular absoluta.
“Se tivermos que escolher um livro fundamental na biblioteca do futebol brasileiro, é este”, afirma o professor e pesquisador Marcelino Rodrigues sobre “O Negro no Futebol Brasileiro” (Mauad, R$ 64,90), clássico indispensável do jornalista e escritor Mário Filho (1908-1966), que ganha nova edição e versão em inglês para ser distribuída entre autoridades e jornalistas estrangeiros durante a Copa do Mundo 2014, como parte da campanha do governo contra o racismo nos estádios. No livro mais importante do gênero, o jornalista que batiza o Maracanã mostra o quanto o futebol do país deve à miscigenação. 
 
“O livro narra a história da fundação do futebol tomando como eixo da narrativa a trajetória do negro. Mário foi o primeiro a apontar o quanto a invenção do estilo brasileiro de jogar bola se relaciona com a capoeira, o samba, a ginga”, conta Marcelino, que apesar de carregar o mesmo sobrenome dos ilustres escritores, não possui nenhum laço com os irmãos. Mário, pioneiro na abordagem popular do futebol, é tema do primeiro livro do pesquisador (“Mil e Uma Noites de Futebol – o Brasil Moderno de Mário Filho”, Editora UFMG) e figura entre os analisados em sua segunda publicação “Quem Desloca Tem Preferência: Ensaios Sobre Futebol, Jornalismo e Literatura” (Relicário Edições, R$ 40), que Marcelino só lança depois da Copa.
 
Os Literatos e o Jornalismo
 
Declaradamente inspirado pelos lançamentos das clássicas antologias de crônicas “À Sombra das Chuteiras Imortais” (1993) e “A Pátria em Chuteiras” (1994), de Nelson Rodrigues (1912-1980), Marcelino resolveu fazer do futebol o seu objeto de estudo a partir do mestrado em Letras (Fale/UFMG) para “fugir do cânone literário” e investigar os modos como a arte escrita muda o modo como interpretamos a arte da bola nos pés.
 
“No Brasil, existe uma coisa interessante que é o fato de que, embora não exista um número grande de obras de ficção sobre o futebol, existe uma histórica presença dos intelectuais e escritores nos jornais fazendo a cobertura esportiva. Meu interesse é pensar as linhas que atravessam os dois campos – literatura e jornalismo – para entender como as narrativas modificam o jeito como nós apreendemos e interpretamos o futebol. Vieram da imprensa os cronistas Armando Nogueira e João Saldanha – este era um esteta e tentava recriar nos textos a emoção estética do futebol. Ele mostrava a poesia no futebol e fazia futebol com as palavras”, conta Marcelino, lembrando que os melhores exemplos são os irmãos Mário e Nelson, narradores da grande saga do Brasil com o futebol. “O primeiro assimilou a chegada e popularizou o esporte aqui, enquanto o segundo deu conta da nossa época de ouro. Mário era o contador de causo, Nelson era o exagerado: tinha verdadeira paixão pelo estapafúrdio”.
 
Às vésperas da Copa, o irmão mais velho ganha mais uma antologia e outra reedição. A coletânea “As Coisas Incríveis do Futebol: as Melhores Crônicas de Mário Filho” (Ed. Ex Machina, R$ 42) tem organização de Francisco Michielin e congrega 25 textos do autor, originalmente publicados nas décadas de 1940 e 1950 na revista semanal “O Globo Sportivo”, dirigida por Mário e Roberto Marinho. “Histórias do Flamengo”, cuja última edição era de 1966, sai pela Editora Mauad por R$ 59,90.
Com título que deu nome à campanha anti-racismo em 2013, à época da Copa das Confederações da Fifa Brasil 2013, “A Pátria de Chuteiras” (ed. Nova Fronteira/BNDES) tem crônicas de Nelson, o “anjo pornográfico”, selecionadas pelo Ministro do Esporte, Aldo Rebelo. Com apoio do governo, o ministro também lançou, em abril, “Somos o Brasil”, que reúne trechos de crônicas de Nelson intercalados à história da industrialização do país e fotografias históricas. Em formato bilíngue (português e inglês), o livro teve tiragem de 5.000 exemplares, distribuídos a parceiros do governo na Copa.
 
Novo Clássico Rodrigueano
 
A principal novidade fica por conta do filho de Nelson, que escreveu o romance aclamado como “a melhor obra de ficção sobre futebol já escrita em qualquer idioma” – segundo Luis Fernando Veríssimo. “O Drible” (Companhia das Letras, R$ 38), do escritor Sérgio Rodrigues, está na sua terceira edição em menos de três meses e conta a história de pai e filho que se reaproximam por meio do esporte. “O livro mostra o lado humano e os laços afetivos que ainda existem nessa fase técnica e mercadológica do futebol. Ele mescla realismo e história para falar sobre encanto e desencanto. O Sérgio é um dos escritores mais brilhantes que temos hoje”, confessa o jornalista Pedro Blank. 
 
E essa é a solução não só para a literatura, mas para que a cobertura esportiva em geral cresça e se reinvente, segundo o jornalista e crítico literário Ricardo Ballarine. “Temos que investigar e humanizar, articular o futebol como uma parte importante da nossa vida. Esse tipo de pauta precisa ser diária”.
 
Outros 11 Livros Campeões de Todos os Tempos
 
1. “Brasil em Campo”, de Nelson Rodrigues. Nova Fronteira, (2012), R$ 34,90.
2. “Anatomia de uma Derrota”, de Paulo Perdigão. Disponível em e-book pela Editora L&PM (1986), R$ 34,90. 
3. “O Trauma da Bola – A Copa de 82”, de João Saldanha. Cosac Naify (2002), R$ 55.
4. “O País da Bola”, de Betty Milan. Ed. Record (2014), R$ 25.
5. “A Dança dos Deuses - Futebol, Sociedade, Cultura”, de Hilário Franco Jr. Companhia das Letras (2007), R$67.
6. “Histórias do Futebol” (ou “Subterrâneos do Futebol”), de João Saldanha. Editora Revan (1994), R$ 45.
3. “Na Grande Área”, de Armando Nogueira. Lance! Publicações (2008), R$ 39.
4. “Veneno Remédio: o Futebol e o Brasil”, de José Miguel Wisnik. Companhia das Letras (2008), R$ 24,50.
7. “A Perfeição Não Existe”, de Tostão. Editora Três Estrelas (2012), R$ 31,40. 
8. “Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado Garrincha”, de Ruy Castro. Companhia das Letras (1995), R$ 70. 
9. “Nunca Houve um Homem Como Heleno”, Zahar (2006), R$ 39. 
10. “Quando É Dia de Futebol”, de Carlos Drummond de Andrade. Cia. das Letras (2014), R$ 34,50.
11. “O Gol é Necessário”, de Paulo Mendes Campos. Civilização Brasileira 
(2000), R$ 25. 
 

Especial para o Pampulha.