Reportagem

Semente  do amanhã 

Equidade - Mães, pais e filhos colocam em prática premissas do feminismo em prol da igualdade

PUBLICADO EM 05/12/15 - 03h00

Aos 7 anos, Cecília reivindicou tanto junto aos meninos que conseguiu quebrar um tabu e inserir as meninas nas partidas de futebol no recreio da escola. Sua motivação era menos a vontade de jogar que a inconformidade com a proibição das amigas participarem dos jogos. João, também de 7, costuma responder com ironia a quem zomba de sua bolsa. “Olha lá, ele acha que existe coisa de menino e coisa de menina”, disse certa vez. O gaúcho Vinícius, 9, também já sabe que não é exatamente errado gostar de costurar e de usar batom.

Ainda que não tenham plena consciência, Cecília, João e Vinícius já lutam pela equidade de gêneros e fazem pouco da máxima: “isso é coisa de menino, isso é coisa de menina”. Com naturalidade, eles não só exploram as inúmeras possibilidades de comportamento como exercem e respeitam o direito que têm de serem livres e iguais, em direitos, perante o sexo oposto. Boneca, carrinho, rosa, azul, bola e batom se misturam na vida de todos graças à ideia de igualdade que norteia o modo como eles vêm sendo educados. Nesse sentido, o empoderamento feminino e o combate à cultura machista se faz presente.

“É sempre bom lembrar que criar alguém dentro dos moldes feministas não significa não dar limites, mas libertar dos padrões que impostos. Eles limitam e programam a criança, que muitas vezes sofre e reproduz a opressão no futuro”, conta a gaúcha Jéssica Castency, 23, moderadora da página “Empoderamento Infantil”, no Facebook, e irmã de Vinícius.

Jéssica conta que a página foi criada no intuito de divulgar matérias que elucidassem, para os pais, como aplicar ideais de igualdade já na infância. “O objetivo é mesmo romper com o sexismo que nos rodeia. E isso é mais simples do que se imagina: criar uma criança livre de barreiras é mais fácil do que cerceá-la a todo momento. Dar liberdade de escolha sobre o brinquedo, a roupa, a cor, o corte de cabelo que quer é ensinar sobre autonomia, é testar capacidades. A internet é uma boa ferramenta para difundir essa filosofia. É na internet que o movimento está acontecendo, mas é com as crianças que isso vai se consolidar no futuro. Não vejo horizonte à frente sem que estejamos focados nessa nova geração”, defende.

De berço

A ativista dos direitos humanos Adriana Torres Ferreira, 43, apresentou Leon, 3, ao movimento feminista antes mesmo de ele nascer. Desde a barriga o filho participa de protestos como a Marcha das Vadias, que clama contra a opressão machista. “Eu fui organizadora das primeiras marchas aqui em BH e penso que, desde pequeno, Leon precisa ver que estamos em um mundo em conflito por questões de raça, de gênero, de classe. Inseri-lo na luta é mostrar que ele também precisa fazer parte dela”, comenta Adriana, que busca desconstruir, em casa, os estereótipos de gênero para educar pelo exemplo.

“Meu marido, por exemplo, lava louças. Com isso, Leon já entendeu que não deve esperar que a mãe ou outra mulher resolvam tudo. Ele adora passar pano nas coisas, junta seus próprios brinquedos – que inclusive também quebram paradigmas. Tem carrinhos, mas também tem cozinha cor de rosa da Peppa Pig. Se quero um mundo justo, é ensinando ao meu filho sobre igualdade que posso começar”, afirma Adriana.

Natural

A atriz Cris Moreira, 31, é outra que tenta passar valores na prática ao filho João. Ela esteve em cartaz, este ano, com o espetáculo “Rosa Choque”, que aborda as formas de violência da cultura machista contra a mulher e João pôde assistir à peça várias vezes. “Com a gente não tem tabu”, declara Cris, contando que ela e Rogério, seu marido, não dividem funções por distinção de gênero. “Tanto que a primeira vez que eu flagrei o João lavando as louças aqui de casa não foi porque a gente pediu, mas porque ele acha natural que todo mundo faça um pouco de todas as tarefas”, diz.

“Tentamos passar pra ele a noção de autonomia, independentemente de qualquer coisa. Se eu não mostro pro meu filho que homem também cuida das tarefas domésticas, daqui a pouco ele vai brigar comigo porque eu não fiz o almoço”, sustenta Cris, que já presenteou o menino com uma boneca e permite que João use o cabelo, a roupa e a bolsa de sua preferência. “João é super bem resolvido e acha a maior bobagem quando alguém comenta algo sobre suas roupas rosas ou seu cabelo grande. Ele entendeu que não precisa existir valor entre X ou Y e defende o direito de se vestir como quer. Acho que com esse tipo de educação, que pressupõe o respeito, nós vamos colher amor no futuro. Estamos precisando ter mais amor pela diversidade”.

Lições

O termo “desconstrução”, que se repete no discurso dessas mães, talvez tenha sido um dos mais citados, ao lado do “empoderamento”, neste ano em que tanto se falou sobre o feminismo – questões da mulher foram abordadas no Enem, marchas em prol de pautas feministas ocorreram em todo o país, capas de revista abraçaram a causa e o Facebook foi palco de denúncias, alertas e desabafos com as campanhas #primeiroassédio e #meuamigosecreto. Desconstruir é, nesse caso, desmistificar os estereótipos do que seriam as tais “coisas, lugares, papéis de homem” e “coisas, lugares e papéis de mulher”.

Para Carlos Mendonça, professor do departamento de comunicação social da UFMG, desconstruir é preciso, já que o que entendemos por identidade de gênero é um construção social. “O gênero não é natural, é social. Não existe um comportamento que já vem no DNA, mas sim uma série de procedimentos de linguagem engendrados para que você seja considerado homem ou mulher”, comenta. “Desmontar as estruturas hegemônicas e opressoras é fundamental pra garantir direitos, liberdades e qualidade de vida para todos nós”, conclui, confirmando na teoria o que Cecília já aprendeu na prática.

De tanto ouvir a mãe, a rapper e MC Bárbara Sweet, 29, fazendo rimas feministas e comentando sobre o assunto em casa, Cecília, 7, liderou o movimento que agora permite que as meninas também joguem bola no recreio. “Ela agora passou a questionar tudo. Não gostava de ver que aquele era um espaço que as meninas não ocupavam, então foi lá e brigou pelo direito delas. É a centelha mágica da mudança. Acho que quanto mais cedo as meninas enxergarem e se rebelarem contra todas as opressões, mais cedo vão ensinar os meninos a pensar duas vezes”, decreta Bárbara.
 

“Pra que prender a princesa na torre?”

 

Não é à toa que as mães mais críticas se mantenham atentas ao modo como os filhos se relacionam com o consumo e com a televisão: a publicidade infantil, os produtos e os programas destinados às crianças são, atualmente, os veículos mais sedutores a serviço do binarismo de gênero. É importante, então, que cada família saiba dosar os estímulos e seguir, cada uma a seu modo, com a missão de questionar e desconstruir os discursos hegemônicos e opressores. 
 
Quando Maria, de 2 anos e 3 meses, ganhou de presente da avó uma fantasia de bailarina “rosa e brilhante”, a solução que sua mãe, a estudante de direito Joana Maciel, 23, encontrou para que ela não ficasse deslumbrada e “se achando ‘a’ própria princesa” foi fantasiar toda a família. “O jeito que achamos para contornar isso e explicar para a Maria que a princesa nem é tão especial assim foi vestindo até o pai dela de tutu”, descreve Joana, que sempre se preocupou em frear o ímpeto consumista que envolve esse tipo de personagem. 
 
Cris Moreira, 31, mãe de João, 7, também se rotula como “chata para essas coisas” e já tenta preparar o filho para ser um consumidor consciente. “Sempre fazemos as festas de aniversário do João aqui em casa, para amigos próximos. Ele ama desenhar, então o que a gente mais compra é tinta, cartolina, tela, pincel e a decoração das festas fica por conta dele. Como ele diz que vai ser oceanógrafo quando crescer, o último tema foi o fundo do mar”, conta.
 
A mãe de Leon, 3, Adriana Torres Ferreira, 43, é mais incisiva e tenta controlar até o tempo permitido de televisão durante a semana. “Minha opinião sobre a publicidade infantil é a pior possível. É um absurdo o que eles fazem, principalmente em canais fechados. É propaganda atrás de propaganda e é chocante o sexismo: para menina é tudo rosa, só coisas que ensinam a lavar e a cozinhar. É uma separação muito nítida de gênero. Evito que o Leon assista televisão, acho que não faz bem para as crianças em geral, mas quando estou por perto costumo até mudar de canal na hora do intervalo”, declara.
 
Já a rapper Bárbara Sweet, 29, faz o oposto: não faz questão de controlar nada do que Cecília, 7, vê na televisão, mas tenta sempre questionar a filha sobre o que ela assiste. “Não filtro nada. Prefiro que ela veja e que depois a gente converse sobre o que aquele programa ou novela propõe. Eu não tenho como controlar tudo do mundo dela. Não tem nada que eu proíba, mas eu comento sobre o que penso, a gente conversa e assim ela vai aprendendo conforme os questionamentos que surgem”, diz. 
 
“Quase toda menina quer ser princesa, mas quando eu senti que ela estava amadurecendo passei a questionar as histórias. ‘Por que o príncipe fez isso? Pra que prender a princesa na torre?”, explica Bárbara. 
 
Passos lentos
Para o professor Carlos Mendonça, do departamento de Comunicação Social da UFMG, isso acontece porque a publicidade é um espelho da sociedade. “A publicidade não transforma e nunca será pioneira na transformação de nada. Ela lida com o dinheiro alheio, então a perspectiva é sempre financeira, binária e conservadora por natureza”, define Mendonça, se mostrando muito pouco esperançoso em relação a avanços nessa área. 
 
“As propagandas só mudam porque se não mudarem perdem sua função, que é vender cada vez mais. Ela, às vezes, tem que se adequar ao mundo contemporâneo, e por isso traz alguns temas pra dentro dela. Mas mesmo essa pequena ‘mudança’ segue padrões conservadores e nessa discussão do gênero nas propagandas infantis eu tenho pouca fé numa transformação”, confessa, citando como exemplo o comercial norte-americano da Barbie, que pela primeira vez incluiu um menino brincando de boneca. 
 
“Você viu como as pessoas reagiram a esse comercial? Parece o fim do mundo na caixa de comentários”, afirma o professor, que vê com olhos mais otimistas – mas não sem ressalvas – o segmento dos desenhos e dos filmes infantis.
 
De acordo com ele, os desenhos animados têm recuperado determinadas perspectivas – gêneros não definidos, seres híbridos e espécies imaginárias – do mundo infantil que há muito estavam ocultas. “Os filmes da Disney sempre foram altamente disciplinares. A Branca de Neve foi feita para ensinar a mulher a ser mulher, dona de casa e mãe. Agora a empresa revê alguns de seus clássicos e refaz as versões das histórias. Hoje, a Branca de Neve tem outras questões”, comenta Mendonça sobre os remakes e novos filmes que trazem personagens femininas em papeis de protagonismo ou em condição de igualdade.