Reportagem

Vício: comida

Transtorno de Compulsão Alimentar atinge cerca de 1,5% da população em todo mundo

PUBLICADO EM 21/05/16 - 03h00

Em uma sala pequena, localizada em um prédio no centro de Belo Horizonte, anônimos se encontram para uma reunião. O espaço é suficiente e discreto. No ambiente, os membros são alertados para o fato de que aquilo que se vê e ouve ali deve permanecer entre as quatro paredes. O que será discutido no local é o mais comum dos atos: comer. Mas comer muito, compulsivamente, sem moderação. Eles fazem parte do grupo Comedores Compulsivos Anônimos (CCA) e sofrem do Transtorno de Compulsão Alimentar (TCA).

Caracterizado por episódios recorrentes de descontrole, o problema atinge cerca de 1,5% da população mundial e em torno de 8% dos obesos, apesar de o distúrbio não estar ligado, necessariamente, à obesidade. A funcionária pública aposentada Sandra

, 62, integra essa estatística. Antes de encontrar ajuda do CCA, era um hábito comum, por exemplo, comer dez pães franceses de uma só vez. E uma simples ida ao supermercado poderia acionar um “gatilho” difícil de conter diante de tantas possibilidades nas prateleiras.

De acordo com o psiquiatra Alexandre Azevedo, responsável pelo Programa de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP, qualquer pessoa pode ter um caso de compulsão alimentar como o dos pãezinhos, narrado por Sandra. No entanto, o diagnóstico médico leva em consideração a ocorrência de pelo menos um episódio de descontrole por semana ao longo de pelo menos um mês.

“A descrição clínica do TCA é comer vorazmente em um curto período de tempo com a sensação de perda de controle sobre o que e o quanto se come. Contudo, há descrições mais amplas em que se torna difícil separar episódios claros de comer compulsivamente ao longo de um dia. Então, algumas vezes, através do registro do diário alimentar, é possível se diagnosticar TCA desta forma”, pondera Azevedo.

Sandra frequenta o CCA há 23 anos e hoje atua também como voluntária na agremiação. Sente-se melhor e mais segura, mas vive sempre alerta. As idas ao supermercado, por exemplo, ela resolveu abolir. “Às vezes, eu compro mais caro no mercadinho da esquina para não ter que entrar em uma loja maior e cair em tentação”, confidencia. Ela também teve que negociar com a nutricionista a retirada da porção de três castanhas por dia na sua dieta. Acredita que comeria mais de um pacote se tivesse contato com a iguaria.

Emocional

Após tanto tempo, a compulsão na vida de Sandra ainda é um desafio. Ela teve de se adaptar para levar uma vida diferente da que levava. Hoje, com o apoio dos amigos que fez no CCA, sente que, de fato, tem uma vida normal. Acostumada a se trancar dentro de casa e não preocupar-se com a própria aparência, passou a se cuidar e a ser uma mais pessoa tranquila. “Eu comia compulsivamente quando estava triste, quando estava alegre. Não tinha motivo aparente pra isso. No trabalho, eu era uma pessoa rancorosa, brigava com todo mundo. E isso me levava a comer muito”, comenta.

Desajustes emocionais como os relatados por Sandra, como a aflição, a agonia, também são sinais que podem ser observados com o objetivo de identificar o transtorno, segundo Alexandre Azevedo. “O indivíduo (compulsivo alimentar) apresenta o sentimento de acentuada angústia por não conseguir se controlar, além de sentimentos de culpa, arrependimento e fracasso por não conseguir conter o impulso de comer. A presença de sintomas depressivos e ansiosos costuma ocorrer simultaneamente em pacientes portadores de TCA”, exemplifica.

Para o psiquiatra, é natural, nas pessoas portadoras da doença, a ingestão de alimentos que fazem parte do seu dia a dia, mas que normalmente são evitados pelo fato de estarem associados ao ganho de peso. “Os episódios de compulsão alimentar de conteúdo mais desorganizado é mais frequentemente encontrado em portadores de bulimia nervosa”, expõe.

Boa vontade

Frequentadora do Comedores Compulsivos Anônimos desde 2004, a aposentada Ana

, 60, toda vez que se sentia angustiada e passava pelo centro da cidade, entrava em lanchonetes e comia doces e salgados sem limite tolerável do organismo.

“Eu sempre achei que havia um comportamento anormal. Por causa dos problemas emocionais, da vida dura, eu busquei cada vez mais a comida. Aos 27 anos, eu tinha um corpo normal, e aos poucos eu comecei a engordar. Quando eu me aposentei, vi que era a hora de buscar ajuda”, conta.

A compulsão por comer fez com que ela se isolasse das pessoas e se tornasse uma pessoa agressiva. “Eu tentava me conter, mas nem sempre conseguia. Trabalhava em um universo muito masculino, e os homens faziam deboche”, lembra. Para ela, que sempre teve consciência da sua compulsão, qualquer pessoa que é pega no ato falho fica muito irritada.

Depois de ter passado por uma depressão, com consequente perda de apetite, e ter conseguido se recuperar através de terapia e medicamentos, Ana hoje luta contra a vontade descontrolada de comer. A boa vontade, diferentemente da força de vontade, é o lema que carrega consigo. Sua compulsão é por alimentos ricos em carboidratos e açúcares como biscoitos, pão de queijo, empada e coxinha.

Ana usa a escrita para superar a vontade de comer, uma das práticas desenvolvidas no CCA. “Eu escrevo para canalizar o desejo. Existe o passo para fazer um inventário pessoal. Os ganhos, para mim, são no emocional. Eu resgatei minha autoestima. Não é porque eu sou gordinha que vou deixar de me amar, me cuidar”, assegura.

Diferentemente de Ana, que passou à compulsão por problemas emocionais, a psicóloga Maria

, 48, come exageradamente desde a infância. Passar em frente de uma loja de chocolates para ela, um tempo atrás, era um martírio. Além dela, outros membros da família possuem um histórico de TCA. Mas, aos 45 anos, percebeu que poderia mudar. Ela e a mãe, de 78, que passou por uma cirurgia bariátrica, frequentam o CCA.

No momento, Maria sente-se mais segura emocionalmente, mais controlada e menos compulsiva. “Há uma oferta muito grande de comida e de guloseimas na cidade. Hoje eu passo mais tranquilamente perto das lojas. Minha ansiedade, vulnerabilidade e desconforto tem diminuído. Quando tenho vontade de comer algo, eu compro uma porção menor”, assume.

Nomes fictícios

Saiba mais sobre os comedores compulsivos anônimos

Origem A irmandade Comedores Compulsivos Anônimos surgiu em de Los Angeles, Califórnia (EUA), em 1960. O programa é baseado nos princípios dos Alcoólicos Anônimos. A proposta, que ganhou força primeiro nos Estados Unidos, alastrou-se pelo mundo. Apenas no Brasil, o grupo está presente em 12 Estados.

Depoimentos No CCA, que é uma organização independente, as pessoas são convidadas a dar sua contribuição, a compartilhar as suas vivências, com o propósito de rever comportamentos alimentares compulsivos.

Espiritualista

Embora não seja uma sociedade religiosa, o CCA busca a recuperação através de valores espirituais, além dos emocionais e físicos. As reuniões periódicas destinam-se a trabalhar a natureza compulsiva do hábito de comer demasiadamente por meio de 12 passos e 12 tradições. Autossustentáveis, não há a obrigação de pagar qualquer valor que seja. Cada membro contribui conforme pode, o que não o impede de participar.

Preconceito

A oportunidade de ouvir relatos semelhantes e poder ser ouvido, por si só, já representa um ganho para os comedores compulsivos, acostumados a sofrerem preconceito. Para trabalhar os 12 passos sugeridos pelo grupo, com o objetivo de atingir a recuperação, cada pessoa é apadrinhada por uma outra.

Vontade

O único requisito que uma pessoa deve ter para participar do grupo é apresentar a vontade de parar de comer compulsivamente.

Mais informações: www.comedorescompulsivos.org.br

Fator emotivo deve ser tratado

As pessoas que sofrem de Transtorno Compulsivo Alimentar nem sempre têm consciência de que comem em excesso. A gerente de loja Luciana

, 40, precisou passar por uma cirurgia para perceber que havia algo de errado em seu comportamento. Há cerca de dois anos, ela tirou um mioma do útero e, após o período de um ano, era esperado que ela emagrecesse. O resultado não veio. Além de não seguir a dieta, ela comia em grandes quantidades ao longo do dia.

Através de uma busca na internet, Luciana encontrou o grupo de apoio Comedores Compulsivos Anônimos, local que frequenta desde janeiro deste ano. Nesse tempo, ela conseguiu emagrecer 2kg. “Eu sempre fui comedora compulsiva. Achava que não, mas hoje eu enxergo. Na adolescência, quando deixei a casa da minha mãe e fui morar com meu pai, desenvolvi esse transtorno. Eu ia para uma festa de aniversário e comia sem parar. Vomitava tudo para poder comer mais. Sentia, com isso, uma sensação imensa de culpa”, rememora. Segundo o psiquiatra Alexandre Azevedo, a incidência da associação com quadros depressivos e de ansiedade em portadores de Transtorno Compulsivo Alimentar é elevada, sobretudo se seus portadores forem obesos.

“Cerca de 60% dos pacientes obesos portadores de TCA possuem mais um diagnóstico de depressão ou ansiedade. Nestes casos, o tratamento psicoterápico e a associação de medicamentos se faz necessária”, explica.

A regra essencial, para Azevedo, é nunca fazer restrição ou dietas restritivas. “A restrição alimentar certamente será desencadeadora de novos episódios de descontrole alimentar. Portanto, é necessário haver reeducação alimentar, principalmente em relação à disciplina com horários regulares”, observa. As medicações têm um papel importante no tratamento, porém, sempre devem vir acompanhadas de psicoterapia e terapia nutricional.

Obesidade

A psicóloga Cristiane Evangelista Machado, mestre em Cirurgia do Aparelho Digestivo pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), enxerga os episódios de compulsão alimentar, por si só, como responsáveis por aumento de peso. A especialista observou o comportamento de pessoas que, mesmo após passar por uma cirurgia bariátrica, ainda continuam comendo além do recomendável.

“O paciente que passa por essa cirurgia não consegue comer uma grande quantidade de uma só vez. Mas continuam com a vontade incontrolável de comer e fazem isso ao longo do dia. Não podemos dizer que ele é um comedor compulsivo nos critérios psiquiátricos. Mas essas características de descontrole se mantêm. A cirurgia age na redução da fome e não da vontade de comer. O impulso de comer se adapta às novas condições alimentares”, expõe.

Os pacientes submetidos à redução de estômago que apresentavam compulsão alimentar antes e que não trabalharam sintomas como ansiedade, tristeza, nervosismo e estresse permanecem comendo excessivamente. “O comedor compulsivo de antes da cirurgia bariátrica se torna um ‘beliscador’ depois. Ele passa a comer várias vezes durante o dia, em pequenas porções, principalmente alimentos ricos em carboidratos. Eles sabem que não estão com fome. O comportamento ‘beliscador’ tem uma associação com a compulsão. Há uma mudança no padrão da compulsão”, explica Machado.

Avalie seu comportamento alimentar

O grupo Comedores Compulsivos Anônimos desenvolveu uma série de perguntas que levam o indivíduo a refletir sobre seu comportamento alimentar. É importante ressaltar que o questionário não tem valor científico e que qualquer diagnóstico deve ser feito por um médico especializado.

Eu como quando não estou com fome ou deixo de comer quando meu corpo necessita se nutrir?

Faço farras alimentares sem razão aparente, às vezes até me sentir empanturrado ou passar mal?

Tenho sentimentos de culpa, vergonha ou constrangimento em relação à maneira como eu me alimento?

Como sensatamente na frente de outras pessoas e desconto depois, quando estou sozinho?

Minha maneira de comer está afetando minha saúde ou minha maneira de viver?

Quando minhas emoções estão intensas – sejam positivas ou negativas – eu me vejo procurando por comida?

Meus comportamentos alimentares fazem a mim ou aos outros infelizes?

Já cheguei a usar laxantes, vômitos, diuréticos, excesso de atividade física, medicamentos para controle do apetite, injeções ou intervenções médicas (incluindo cirurgias) para tentar controlar meu peso?

Faço jejum ou restrinjo severamente a comida para controlar meu peso?

Eu fantasio sobre como a vida seria muito melhor se eu usasse um tamanho diferente ou tivesse outro peso?

Eu preciso mascar ou ter algo em minha boca o tempo todo, como comida, chicletes, balas ou bebidas?

Já cheguei a comer comida congelada, queimada, estragada, retirada de recipientes no supermercado, ou do lixo?

Existem certas comidas que não consigo parar de comer depois de dar a primeira mordida?

Já cheguei a perder peso com dietas ou períodos de controle, seguidos por períodos de intenso descontrole com a comida e/ou ganho de peso?

Passo muito tempo pensando em comida, discutindo comigo mesmo sobre se comerei e o que comerei, planejando a próxima dieta ou cura através de exercícios físicos, ou contando calorias?

Respostas

Você respondeu “sim” a várias destas perguntas? Caso tenha respondido, é possível que você tenha ou esteja a caminho de ter um problema de comer compulsivo ou de comer além das suas necessidades. Um especialista pode te ajudar a esclarecer suas dúvidas.