Reaproveitamento

Ressignificar é preciso, descartar não é preciso

Na capital mineira, artistas, coletivos e iniciativas individuais atestam que a onda do upcycling segue em alta, em sintonia com a Europa e os EUA

PUBLICADO EM 27/01/19 - 02h00

Quem passa em frente ao número 1.428 da rua do Ouro, no Serra, fatalmente terá seu olhar cooptado para as letras AU, que adornam a fachada de tijolos aparentes. Na verdade, o “u” era originalmente um “n” da fachada de um tradicional bar da cidade, de onde também veio o “a”. O fato de ter sido colocado “de cabeça pra baixo” fez com que, unidas, as letras se transmutem no símbolo que, na tabela periódica, corresponde ao elemento ouro. O que, por seu turno, remete a garimpo.

E é justamente essa a diretriz dos nomes que formam o coletivo que atua ali: André Cota da Glória, 38; Henrique Pirani Gomes, 38; Mariana Falcão Duarte, 35, e Daniel Ribeiro Corrêa, 39. No entanto, os objetos de cobiça no garimpo do quarteto são móveis e artefatos antigos que, por um motivo ou outro, foram descartados. Ali, eles ganham nova roupagem e, por vezes, novos usos.

Surgido em 2016, o coletivo AU endossa um movimento que vem arregimentando cada vez mais adeptos mundo afora. Cada um com seu estilo, os signatários dessa corrente empregam com facilidade palavras como “reúso”, “upcycling”, “sustentabilidade” e outros termos afins. É gente como o artista português David Arranhado, que, hoje, mora na capital mineira. “O que me atrai no antigo é imaginar as histórias por trás do objeto. E perceber a forma como foi feito, tentar entender sua finalidade”. Em sua cidade natal, Lisboa, David era frequentador assíduo de feiras como a da Ladra, de antiguidades, na Alfama.

E, junto a essa curiosidade, ele, que estudou no Instituto de Artes e Ofícios da Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, em Portugal, e chegou a trabalhar com restauração, também enxerga nesse movimento de resgate um alento para tempos em que é sabido que o planeta está saturado de lixo. “Em relação à forma como caminha o mundo, acho sempre bom reutilizar. Penso que é uma forma de estar na vida. Dar novos usos a objetos é uma maneira de solucionar problemas, é criar com o que se tem à mão e é, principalmente, desenvolver nossas capacidades técnicas e manuais – acho tudo isso muito importante”, advoga.

História

O Coletivo AU teve seu debut em abril de 2016, em outro endereço, também no Serra. À época, com interesse mais direcionado a mobiliário assinado, André já comercializava algumas peças de madeira online. E foi no Carnaval daquele ano que ele, Mariana e Daniel começaram a vislumbrar um caminho em conjunto. “Como todo mundo nutria essa vontade de trabalhar com mobiliário, começamos a conversar – e nos juntamos para viabilizar essa história”, relembra Daniel. “Eu já garimpava peças, mas mais por hobby. A nossa casa (ele é casado com Mariana) foi mobiliada por meio de garimpo, a do André também. E o Henrique a gente encontrou na sequência e comentou o projeto. Ele tinha um plano antigo de fazer mobiliário – no caso, autoral. E topou (aderir ao coletivo). Na verdade, a gente até tentou trazer mais gente, mas logo vimos que íamos tomar conta de tudo”, diverte-se Daniel.

No início, as atividades eram mais delimitadas. “Mas, com o tempo, fomos descobrindo novos campos do design e do reaproveitamento de mobiliário, como a questão do upcycling, que é trazer uma peça de volta ao ciclo de vida”, pontua o arquiteto. De pronto, ali, nas dependências do AU, naquele 2016, um gaveteiro ganhou ares de porta-vinil – e fez sucesso.

Junto, o grupo passou a esquadrinhar iniciativas afins no Brasil (à época, mais pontuais), na Europa e nos EUA. “Ao fim, foi uma descoberta para todos nós”, analisa Henrique, acrescentando que cada um agregou um pouco com o seu olhar.

 

Maior parte do público são mulheres, de perfil antenado

Depois dos gaveteiros, atualmente, a menina dos olhos dos quatro integrantes do coletivo AU são os antigos armários de farmácia. “Mas, no geral, a verdade é que a gente fica com o olhar sempre atento a uma portinha com várias bugigangas penduradas”, brinca Daniel.

André acrescenta: “Com o tempo, os clientes também passaram a nos avisar (quando veem coisas interessantes)”. Daniel soma a esse rol os fornecedores (os topa-tudo, ferro-velhos) que já ligam para eles, aviando: “Olha, chegou uma leva aqui que é a cara de vocês”.

Mas o arquiteto frisa. “Às vezes, a gente pede para mandar previamente uma foto, pois há produtos que não se afinam com a nossa proposta. O bom é comprar do primeiro proprietário da mesa, pois, se for de uma loja, já passou por várias etapas”, diz, referindo-se a eventuais ágios.

Mesmo assim, a rua Itapecerica, na Lagoinha, é um point sempre visitado. Henrique adiciona. “A verdade é que está a cada dia mais difícil achar peças como os tais armários de farmácia. É que as pessoas não conseguem enxergar o valor agregado ao objeto e já mandam para o ferro-velho, para o desmonte. E, veja, não é só questão da reciclagem, é parar para ver o objeto de novo, dar a ele o seu valor correto”.

Cumpre frisar que alguns serviços são terceirizados, caso da marcenaria de acabamento, da serralheria pesada de acabamento (embora eles tenham máquina de solda), dos estofados. E, aí, a preferência recai para profissionais locados no entorno da loja “Mas o que a gente consegue fazer aqui faz”, afiança André.

Quanto ao perfil da clientela, eles dizem que 65% é de mulheres, “apesar de o industrial ter uma pegada mais masculina”. “Mas são muitos casais criativos, tatuadores, gente normalmente com a cabeça mais aberta, nada conservadores. É um perfil bem parecido com o da gente. Não é uma galera que tem grana, são recém-casados, com filhos pequenos”, diz Daniel. Henrique adiciona os clientes comerciais, como cafés e barbearias.

 

‘É questão também de reciclagem’

Arquiteta de formação, embora hoje esteja atuando mais como artista plástica, Letícia Lanza Maciel, 25, começou a pensar em novos usos para objetos quando foi morar no Edifício JK com uma amiga. “À época, éramos estudantes e tínhamos geladeira e fogão. A gente precisava de mesa para estudar, estantes...”, relata.

De início, se depararam com paletes que seriam descartados – com eles, fizeram uma mesa. A etapa seguinte incluiu os conhecidos e multifuncionais caixotes de feira. “A gente usou como lixo, estante de chão, móvel para banheiro”. Hoje, morando com a avó e o irmão, ela segue firme no ideal do reaproveitamento. “Acho que a gente produz muito lixo, e é possível adaptar móveis. Tenho uma mesa que usava quando tinha 7 anos, portanto, era mais baixa, mas coloquei rodas. Tudo se adapta, as coisas não precisam ser descartadas. Às vezes, uma simples tábua pode virar outra coisa – ainda mais que, hoje, a gente tem a facilidade de furar, cortar (madeira). E, querendo ou não, é uma questão de reciclagem”, enfatiza.

Para iniciar o garimpo

“Caçambeiros”

O termo já foi incorporado ao vocabulário de profissionais que lidam com decoração de interiores. Em programas como “Mais Cor, Por Favor” e “Decora”, os apresentadores – Thalita Carvalho e Maurício Arruda, respectivamente – se assumem como caçambeiros. Portanto, a primeira dica é ficar de olho em caçambas.

Rua Itapecerica

A via, que fica na Lagoinha, é conhecida por ter vários comércios de móveis usados e antiquários, que acabam recebendo lotes de famílias de quem faleceu ou se mudou da cidade.

Outros

O caçador de preciosidades deve ficar atento a sites de vendas, topa-tudo, feiras de objetos de segunda mão e mesmo antiquários mais refinados, como os da região do Lourdes. Casas de avós também costumar ser minas.