Contas públicas

Entre penalidades frouxas e avanços, LRF completa 20 anos

Não há dados sobre punições a gestores que tenham descumprido a lei

Por Pedro Augusto Figueiredo
Publicado em 11 de maio de 2020 | 03:00
 
 
TCE Foto: TCE / Divulgação

Proposta pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) completou 20 anos de sua promulgação na última semana. A legislação mudou a forma como as contas públicas eram administradas: foram criados limites para o gasto com pessoal e para o endividamento público, com exceção da União, além de medidas a serem tomadas caso as despesas saiam do controle. Presidente, governadores e prefeitos foram obrigados a se preocupar com a transparência dos gastos públicos. Embora a norma tenha apresentado avanços para a administração do dinheiro público, seu descumprimento não significa necessariamente uma penalização do gestor.

Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU) não há um banco de dados sistematizado que aponte quantos gestores públicos foram punidos por descumprir a LRF nos últimos 20 anos. Segundo o órgão, cada tribunal de contas encaminha ao respectivo Tribunal Regional Eleitoral, nos anos em que se realizam eleições, a lista dos gestores que tiveram as contas julgadas irregulares pelo descumprimento de várias leis, não só a LRF. Em 2018, a lista que o TCU entregou à Justiça Eleitoral reuniu 12.469 contas irregulares (um gestor pode responder por mais de um processo). 

Já o Tribunal de Contas do Estado (TCE-MG) explica que seu papel é de acompanhamento dos relatórios enviados pelas prefeituras e pelo Estado. Os documentos são analisados e, caso algum problema seja encontrado, a Corte alerta o gestor. Segundo o Tribunal, a única punição aplicada são multas para quem “não envia os dados ou envia dados inconsistentes”. De acordo com a Corte, desde a vigência da lei, 2.196 processos geraram multas – cada processo pode ter dezenas de gestores envolvidos. Não há dados sobre quantas multas foram pagas, quanto foi arrecadado ou quantas prescreveram.

A Lei de Responsabilidade Fiscal estabelece, por exemplo, que os Estados e os municípios gastem no máximo 60% da Receita Corrente Líquida (RCL) com pessoal. Para a União, o índice é de 50%. Já em relação ao endividamento, o limite é de 200% da RCL para Estados e 120% para municípios. De acordo com a Secretaria do Tesouro Nacional, a dívida consolidada de Minas Gerais em 2019 alcançou 191%.

Caso esses limites sejam extrapolados no caso da despesa com pessoal, a legislação impede a concessão de aumento ou reajuste salarial e a criação de cargos. Além disso, possibilita a redução da jornada de trabalho e salários do funcionalismo. Já para controlar o endividamento, os gastos ficam limitados, e os empréstimos, proibidos.

Os responsáveis pela fiscalização dos dispositivos previstos na lei são o Tribunal de Contas da União (TCU) e os Tribunais de Conta Estaduais (TCEs), no caso dos Estados e dos municípios. Alguns Estados possuem ainda um tribunal de contas específico para os municípios, como a Bahia e o Pará. Ligado ao Legislativo, cada tribunal pode ter uma interpretação específica da Lei de Responsabilidade Fiscal e de como deve ser feito o cálculo da despesa com pessoal.

Na avaliação do professor do Ibmec e analista político Bruno Carazza, a lei é positiva. “Hoje, você chega a uma prefeitura do interior, e há um conhecimento sobre RCL, restos a pagar, sobre o que se pode e o que não se pode fazer. Os gestores públicos, de certa forma, têm consciência de que, se descumprirem a LRF, podem vir a ter dor de cabeça no futuro”, analisa.

A avaliação é corroborada pelo professor e diretor do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da UFMG (Cedeplar), Frederico G. Jayme Jr. “A lei conseguiu disciplinar minimamente os governos, evitando que eles cometessem desatinos em termos de gastos públicos”, disse.

Minientrevista: Maria Tereza Fonseca Dias - professora da Faculdade de Direito da UFMG

A Lei de Responsabilidade melhorou a gestão do dinheiro público?
Essa é uma pergunta difícil de responder. O problema é que a Lei de Responsabilidade Fiscal não ataca a qualidade do gasto. Ela diz respeito ao controle de despesas e receitas. Você tinha um descontrole muito grande das contas públicas, e a lei vem em 2000 e estabelece o que a gente chama de “regra de ouro”, que é não gastar mais do que se arrecada. Há três pontos importantes na Lei de Responsabilidade Fiscal: essa regra de ouro; o planejamento das contas públicas – ela estabelece metas de arrecadação, metas de gasto, limite de despesas –; e um terceiro ponto é que ela foca a transparência, que foi uma coisa muito bem-vinda.
Mas isso diz respeito a um controle que é muito mais numérico e quantitativo do que da qualidade. Você pode ter um município, por exemplo, que cumpre fielmente a Lei de Responsabilidade Fiscal e, no entanto, tem uma qualidade de gastos péssima, porque gasta mal e em coisas que não são prioritárias, compra superfaturado e faz licitação ruim. E você pode ter outro município que eventualmente tenha ultrapassado algum limite da lei e tenha uma melhor qualidade de gastos. A gestão pública ainda continua com os mesmos desafios, no meu entendimento, que ela tem desde que a Lei de Responsabilidade Fiscal foi editada.

Como a senhora vê a Lei de Responsabilidade Fiscal durante a pandemia?
No momento atual, ela tem uma coisa que é, em certo sentido, inteligente, porque no artigo 65 ela contém o germe da sua própria destruição. O que eu vejo agora, nos 20 anos da Lei de Responsabilidade Fiscal, é a possibilidade de ela ruir dentro dos seus próprios propósitos. Ela não atacou a qualidade dos gastos e corre sério risco de perecer em um momento de crise como esse – de maneira que a estratégia que ela adotou lá atrás, que era também um período de crise, de conter gastos, não funcionou. Qual é a perspectiva dela para os próximos 20 anos? Ela não responde aos efetivos problemas de gestão pública porque analisa só sob essa perspectiva de controle do gasto. E agora, que eu preciso gastar mais do que eu arrecadado, preciso dar comida para as pessoas, garantir saúde, senão todo mundo vai perecer? Ela adota uma estratégia formal de controle de contas e não trata da questão material, das necessidades. Ela não é uma lei, vamos dizer assim, humana.

A falta de uma interpretação unificada dos tribunais de conta sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal é um ponto a ser aperfeiçoado?
Eu diria que o problema não é dos tribunais de contas. O problema é da questão da própria natureza do direito. O direito está sujeito a interpretações. Quando se fala em Receita Corrente Líquida, a gente acha que é um cálculo matemático, mas, na verdade, isso é um conceito, no qual você tem que pegar as receitas propriamente ditas e descontar determinados valores que entram no caixa – porém não vão constituir receita, porque terão que ser transferidos. O IPVA é um bom exemplo: ele ingressa no cofre do governo estadual, mas o governo é obrigado a repassar aquele valor. Como a gestão pública é muito complexa, você vai ter “n” valores que vão fazer esse trânsito dentro do orçamento. É claro que o legislador e os regulamentadores podem sempre tentar deixar tanto mais claro quanto possível isso, mas eu não acredito que ele vá conseguir eliminar toda essa diferença interpretativa.
A questão da contabilização dos inativos, por exemplo. As contribuições que entram já têm o destino de saída, que é pagar as aposentadorias. Elas estão vinculadas a essas receitas. Eu vou considerar que isso é disponível, para contabilizar como Receita Corrente Líquida? Não estou tomando posição se é ou não é, só estou dizendo que gera discussão.