A Comissão da Anistia, órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, aprovou na terça-feira (2) a condição de anistiados políticos a nove chineses presos, torturados e condenados a 10 anos de prisão e, depois, expulsos do Brasil, durante a ditadura militar (1964-1985). Eles foram acusados de participar de um plano para implantar o comunismo no país, sem qualquer prova.
Os militares chegaram a apresentar como evidência contra os chineses agulhas de acupuntura encontradas na bagagem de um deles. A acusação dizia que seriam instrumentos para envenenar autoridades brasileiras. Os asiáticos integravam a missão diplomática do governo da China e chegaram ao Brasil em 1964 para negociações bilaterais iniciadas na gestão do presidente Jânio Quadros.
Antes da ditadura militar, o Brasil tinha uma política diplomática pautada no não-alinhamento, ou seja, na possibilidade de manter boas relações comerciais tanto com os Estados Unidos quanto com o bloco comunista. Nesse cenário, em 1961, uma missão chinesa visitou o país, o que se repetiu em 1964. O Brasil se preparava para abrir uma representação comercial chinesa no país (assim como os EUA tinham) e realizaria eventos de aproximação. Os chineses que viriam a ser presos no Brasil estavam envolvidos nessas transações.
O grupo de asiático foi preso em 3 de abril de 1964, três dias após o golpe de Estado que deu início à ditadura militar brasileira. Agentes invadiram dois apartamentos no Rio de Janeiro e prendeu nove chineses sob a acusação de que seriam agentes estrangeiros trazidos ao Brasil para fazer uma revolução comunista. Conhecido como "Caso dos 9 chineses", foi a primeira violação de direitos humanos daquele regime a ter repercussão internacional.
Os militares espalharam que os chineses tinham a missão de envenenar o governador do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda, e os generais Amauri Kruel e Castelo Branco, todos ligados ao regime recém instaurado. Lacerda, um udenista, chegou a afirmar que o grupo comandava um núcleo de revolucionários comunistas de quase 200 pessoas, portando agulhas envenenadas, bombas teleguiadas e uma lista de vítimas para uma revolução no Brasil.
Sob tais acusações, os chineses foram levados ao temido Dops e torturados para que dessem informações que não tinham. Nenhum deles sequer era político. O grupo era formado por um jornalista da agência estatal chinesa, quatro agentes de negociação de uma exposição comercial que aconteceria no país e três comerciantes que vieram ao Brasil comprar algodão.
Em 22 de setembro de 1964, os chineses foram condenados a 10 anos de prisão e expulsos do território brasileiro no ano seguinte. Ficaram impedidos de entrar no Brasil até 2014, quando a expulsão do grupo só foi revogada oficialmente pelo governo brasileiro, após os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV).
Como “prova” de crime nunca comprovado, agentes da ditadura apreenderam dinheiro no apartamento onde os chineses estavam hospedados. A Justiça Militar, por meio de longo julgamento, os condenou por subversão. Diante da pressão internacional, o governo brasileiro decidiu não mantê-los trancafiados no país e os expulsou.
A anistia coletiva aos chineses foi aprovada pela comissão da Anistia por unanimidade. Ao fim da sessão de terça-feira, a presidente do colegiado, Eneá Stutz, fez o pedido de perdão oficial do Estado. Mas, dos nove chineses, apenas um está vivo e saberá disso.
Comissão também pede desculpas a indígenas
Também na sessão de terça-feira, a Comissão da Anistia julgou procedente dois pedidos de perdão coletivo por atos cometidos contra povos indígenas durante a ditadura militar. Foi a primeira vez desde que foi criada, em 2002, que a Comissão da Anistia julgou um caso de reparação coletiva — em que o Estado brasileiro deve pedir desculpas e reconhecer os danos causados pela ditadura – a povos indígenas.
A análise inédita ocorreu na semana em que o golpe de 1964 completou 60 anos. Os dois casos envolvem povos expulsos de seus territórios: os povos Guarani-Kaiowá, em Mato Grosso do Sul, e os Krenak, em Minas Gerais. Os pedidos de reparação foram feitos pelo Ministério Público Federal (MPF).
A Comissão Nacional da Verdade, que foi criada na gestão de Dilma Rousseff e investigou os crimes da ditadura militar, estima que 8.350 indígenas foram mortos por ação do Estado ou por sua omissão nesse período.
Presos em “reformatório” sem acusação formal
Em 1969, a Polícia Militar de Minas Gerais e a Funai inauguram o Reformatório Agrícola Indígena Krenak, em Resplendor, na Região do Rio Doce. Tal construção, que não tinha qualquer previsão legal que o fundamentasse, foi erguida em terra indígena, onde viviam os Krenak, para o confinamento de indígenas classificados como “perturbadores da ordem tribal”.
O “reformatório” chegou a abrigar 94 indígenas de mais de 15 etnias, oriundos de ao menos 11 estados das cinco regiões do país. Eles eram aprisionados por diversos motivos, tais como embriaguez, manutenção de relações sexuais e saída não autorizada da terra indígena. Nada disso era considerado crime. Mas mesmo assim eram motivos para trabalhos forçados, tortura e maus tratos.
Havia ainda uma espécie de solitária no “reformatório”, que os indígenas chamavam de “cubículo”, onde eram mantidos dia e noite com água escorrendo do encanamento. O tempo de permanência nesse ambiente e em todo o “reformatório” era definido pelo responsável pelo estabelecimento, Manoel dos Santos Pinheiro, conhecido como Capitão Pinheiro.
Proibidos de falar a própria língua
Segundo o MPF, “o fato de o presídio ter sido implantado em terras Krenak fez com que o controle militar sobre os membros da etnia que não estavam confinados fosse também muito incisivo”. Além de serem obrigados, inclusive crianças, a trabalhos forçados, policiais militares proibiram qualquer manifestação cultural, incluindo a comunicação em sua língua.
Com o fechamento do “reformatório”, os indígenas ali presos foram enviados à força para a Fazenda Guarani, em Carmésia, também na Região do Rio Doce. Todos os Krenak acabaram expulsos de suas terras e obrigados a viver a 343 km de distância, em uma espécie de campo de concentração.
Ao chegarem na Fazenda Guarani, os Krenak tiveram que conviver com etnias rivais, poucas terras férteis, clima frio a que não estavam habituados, e a ausência do Rio Doce, que era o centro de suas atividades culturais. E lá também havia local destinado ao confinamento dos indígenas “desviantes”.
Já as terras antes ocupadas pelos indígenas em Resplendor, onde eles plantavam e colhiam o que lhe era permitido pelos militares, foram distribuídas a posseiros escolhidos por autoridades da ditadura. Em 1993, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou nulas as transferências das terras habitadas pelo povo Krenak aos posseiros. Os indígenas recuperaram parte do território.
Para o MPF, as graves violações praticadas contra povos indígenas durante o regime militar permaneceram, por muito tempo, invisíveis, o que fez com que a Justiça brasileira não levasse em consideração as especificidades dessas violações e as reparações necessárias.
Intervenções levaram a aumento de suicídios
O outro caso a ser analisado nesta terça-feira pela Comissão da Anistia foi protocolado pelo MPF em 31 de agosto de 2015. Ele envolve povos Guarani-Kaiowá, da comunidade Guyraroká, em Caarapó, a 273km de Campo Grande (MS).
Proccuradores relatam que, na época da ditadura militar e período e pós-guerra do Paraguai, as políticas de povoamento do país, levaram agentes estatais a promover a retirada compulsória dos indígenas de Guyraroká, “provocando genocídio da população e desintegração seus modos de vida tradicionais”.
Segundo o MPF, o propósito era retirar os indígenas das extensas áreas ocupadas por eles e confiná-los em espaços exíguos definidos de forma unilateral pelo poder público. A medida permitiu que as terras indígenas fossem liberadas à ocupação de terceiros, que tiveram a posse dos terrenos legitimados por títulos de propriedade.
Todas as violações praticadas pelo governo brasileiro aos indígenas de Mato Grosso do Sul foram reconhecidas pela Comissão Nacional da Verdade, que esteve em Dourados (MS) e ouviu integrantes da comunidade Guyraroká sobre o processo de confinamento territorial que sofreram.
Em 2004, após anos longe de seu território, indígenas voltaram a ocupar Guyraroká, iniciando pela ocupação da faixa de domínio da rodovia estadual MS-156, posteriormente ocuparam uma parcela do perímetro declarado – 65 de um total de 11 mil hectares.
Conforme o MPF, no pedido de anistia, consta que a principal atividade econômica desenvolvida pelos indígenas Kaiowá é a agricultura, ao serem retirados do seu território pelo governo brasileiro, eles ficaram impossibilitados de exercer todas as suas atividades econômicas, o que corrobora a reparação.
Além disso, a desintegração do grupo e a ausência de acesso ao território tradicional, somada à extrema miséria, provocaram um número significativo de mortes por suicídio na comunidade. Em um grupo de 82 pessoas, registrou-se um caso de suicídio por ano entre 2004 e 2010.
Casos foram negados por Damares Alves
Criada em 2002, no governo de Fernando Henrique Cardoso, a Comissão de Anistia analisa os requerimentos que tenham comprovação de perseguição política sofrida em diferentes períodos da história brasileira.
Mas, no governo de Jair Bolsonaro (PL), que sempre defendeu a ditadura e atacou qualquer benefício às vítimas do regime, os pedidos de anistia passaram a ser negados em série.
Foi o que aconteceu nos casos dos Guarani-Kaiowá e Krenak que chegaram ao Ministério dos Direitos Humanos na gestão da hoje senadora Damares Alves (Republicanos-DF).