Uma viagem para se vacinar nos EUA – único país que oficialmente está oferecendo a imunização aos turistas – resume-se a 21 dias de duração, 14 deles em quarentena obrigatória no México, Costa Rica ou República Dominicana, à escolha, gastos a partir de R$ 18 mil, envolvendo aéreo, hospedagem e teste PCR, e uma boa dose de sorte de pegar a doença no caminho. 

Confiando nessa equação inexata, o agente de viagens mineiro Frederico Fajardo, dono da agência de turismo de luxo Fredtour, embarcou para Miami em abril passado. “Fui só com o intuito de me vacinar”, reconhece. A viagem, por sinal, serviu de experiência para que ele oferecesse depois programas de luxo completos a clientes muito exigentes, com valor de até R$ 50 mil.

Fajardo alerta os viajantes para terem cuidado com os pacotes que adquirirem, principalmente aqueles com promessa de imunização em destinos como Cuba e Ilhas Maldivas. “No momento, só os EUA vacinam com certeza”, afirma. “Só precisei ir ao local de vacinação e apresentar o endereço do hotel onde estava hospedado”, acrescenta.

Onde?

Embora promovam o turismo de vacinas, Cuba e Ilhas Maldivas só vão vacinar os visitantes depois que toda sua população for imunizada. Rússia e Emirados Árabes, que supostamente estariam oferecendo o imunizante, despertam muitas dúvidas, até porque não permitem a entrada de turistas. Israel negou, em entrevista ao portal O Tempo, que vá estimular a prática. Discreto, o Panamá não toca no assunto, mas já deu claros sinais de que seu programa de imunização não pensa em discriminar os turistas.

Também o candidato à viagem deve levar em conta o risco de pegar Covid-19, no aeroporto ou no local escolhido para a quarentena, e não conseguir embarcar para os EUA. O México, o destino mais comumente escolhido para esse tipo de viagem, não impõe nenhuma restrição à entrada de turista, mas já superou o Brasil em número de casos e está com a propagação ainda descontrolada.

Conhecida pelas ruínas maias próximas do litoral, por suas águas cristalinas e seu conceito alternativo, Tulum, um dos pontos turísticos mais visitados do país, realiza festas e raves sem nenhum controle sanitário, o que aumenta – e muito – o risco de contágio. Só em março foram mais de 21 festas privadas no destino, que se mantém em alerta amarelo. 

Vacinado em Miami

Mesmo consciente dos riscos, o empresário Vinícius Moriggi Nunes (foto), proprietário da Agência Fuso, em São Paulo, fez a viagem em março deste ano. No entanto, escolheu um destino mexicano menos badalado, Puerto Vallarta, na costa do Pacífico. “A quarentena precisa ser bem planejada. Vallarta é conhecida por ser frequentada por norte-americanos já vacinados, portanto o risco é menor”, pontua. 

As 15 noites que programou no destino se transformaram em 21 para aguardar a chegada do amigo Rafael. O objetivo dos dois era se vacinar contra a Covid-19 em Miami. Eles aterrissaram no balneário da Flórida em 4 de abril, no memo dia em que o governo local baixava uma norma permitindo a imunização de todas as pessoas, residentes ou não.

 “Passamos por três etapas até a vacinação, o processo todo durou menos de meia hora, não pediram documento nem nada" (Vinícius Moriggi Nunes)

A maioria dos turistas que embarca nos EUA também está à procura da vacina da Johnson & Johnson, em uma única dose, para evitar aumentar os custos da viagem. “A dificuldade foi zero. Escolhemos um local que aplicasse a Johnson & Johnson. Em Miami, eles utilizavam farmácias e uma espécie de hospital de campanha para imunizar a população”, explica Nunes. 

Como viajou bem no início da imunização de turistas, Vinícius e Rafael pegaram uma fila pequena. Hoje, um posto de vacinação já foi instalado no aeroporto de Miami. “Passamos por três etapas até a vacinação, o processo todo durou menos de meia hora, não pediram documento nem nada”, conta Nunes.

Pacote para Nova York

Nos EUA, além da Flórida, do Alasca e da Califórnia, que oficialmente promovem a equidade nas campanhas de imunização contra a Covid-19, redutos republicanos do ex-presidente Donald Trump, como Texas e Novo México, liberaram a vacina para todos. Como parte da população é negacionista e encara com resistência a vacinação, sobram imunizantes.

De olho na oportunidade de negócio, a brasileira Márcia Rosa (foto), que mora em Nova York e tem uma franquia da Flytour Viagens em Salvador (BA), montou um pacote de 21 dias ao custo de R$ 18.782, incluindo hospedagem e aéreo completo. Por conta da demanda, replicou um flyer em uma lista de transmissão de apenas 60 pessoas.

“Está uma loucura a procura. Como as pessoas replicaram para amigos e redes sociais, tem gente do Brasil todo me procurando” (Márcia Rosa, da Flytour Viagens)

Márcia agora só tem pacotes para comercializar depois de 1º de junho, por conta de falta de vagas em voos do Brasil para Nova York. O aéreo na Latam, por exemplo, cita ela, subiu muito nas últimas semanas. 

Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa da Latam se limitou a informar que mantém três voos semanais na rota São Paulo-Nova York. Jaqueline Ledo, gerente de vendas para Belo Horizonte, Brasília, Rio e Porto Alegres da Copa Airlines, que opera o trajeto Brasil-México de cinco capitais, disse que “a companhia aérea teve um crescimento significativo de cotações com esse propósito”.

Nova York vacina turista

Quem impulsionou a demanda pelo destino foi o prefeito de Nova York, Bill de Blasio (foto), que anunciou oficialmente que pretendia vacinar contra a Covid-19 “todo turista” que chegasse à metrópole. Postos de vacinação também seriam montados em atrativos famosos, como a Times Square, o Central Park e a ponte do Brooklyn para atender os visitantes.  

Márcia Rosa, que mora em Hyde Park, a uma hora e 43 minutos de Manhattan, diz que não cobra pela vacina, que é gratuita, apenas facilita o trâmite, agendando a vacinação com pelo menos 25 dias de antecedência antes da viagem. A agência também não dá garantias da vacinação em caso de mudança das regras locais ou se o viajante não tomar precauções. 

Para convencer o cliente a se deslocar para Hyde Park, além de oferecer no pacote seguro-viagem, locação de carro por dez dias no México e teste de antígeno, ela criou um “tour da vacina”, que leva para um passeio nas atrações do distrito, entre elas a mansão do ex-presidente Franklin Roosevelt, hoje monumento nacional cultuado pelos norte-americanos.

Corresponsabilidade?

A lenta vacinação e a falta de imunizantes no Brasil, além da ansiedade, têm levado brasileiros a buscarem doses em outros países. Na maioria das vezes, pessoas com maior poder aquisitivo. Mais crítica em relação ao turismo de vacinas, Mérces Nunes (foto), advogada especializada em direito médico, não concorda com esse privilégio. 

“Eu, particularmente, não considero o turismo de vacinas ilegal, as pessoas têm o direito de ir e vir. Mas os países vão usar a vacina como controle de fluxo e com respaldo jurídico”, afirma. O problema é, segundo Mérces, ético.

“A vacina será utilizada para fazer uma seleção em função do poder aquisitivo, com a desculpa de proteger o sistema de saúde" (Mérces Nunes, advogada especializada em direito médico) 

Oficialmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) não proibiu o turismo de vacinas, mas demonstrou sua insatisfação com a prática. “A vacina será um divisor de águas no turismo”, considera Mérces. “Em breve ter haver resorts oferecendo diárias para vacinados e não vacinados”, opina. E isso já vem ocorrendo em destinos como San Marino, no centro-norte da Itália. 

Questão ética

Para a infectologista Sylvia Lemos Hinrichsen (foto), consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), a OMS ainda não bateu o martelo sobre as vacinas. O próprio passaporte internacional de vacinação – proposto por entidades como a Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata) e a União Europeia (UE) – precisa de um consenso sobre a imunização. 

Hoje, por exemplo, a maioria das pessoas vacinadas com a Coronavac, no Brasil e na China, e com a Sputnik V, na Rússia, não poderá entrar nos países-membros da UE e nos EUA, porque estes só aprovaram até o momento os imunizantes da Moderna, Pfizer/BioNTech, Johnson & Johnson e AstraZeneca.

No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) também não permitiu a importação da russa Sputnik, em uso na Argentina desde dezembro.

“As vacinas levam tempo. Elas têm um prazo para produção de anticorpos, que difere de vacina para vacina”, explica Sylvia. Por outro lado, enfatiza a infectologista, muitos turistas viajam sem saber que são assintomáticos.“Eles não vão contrair a doença, mas podem transmiti-la”, acrescenta. Existe, segundo ela, a questão de corresponsabilidade do destino.

Vírus veio para ficar 

“Vamos supor que você se vacine, volte ao Brasil e apresente efeitos colaterais; não há o controle de quem a produziu. Estamos no meio de um ensaio clínico e vacinando emergencialmente as pessoas”, diz Sylvia, para quem é necessário responsabilizar os governos.

“Não é hora de viajar, muito menos de se vacinar fora de seu país” (Sylvia Lemos, infectologista)

Mais importante do que vacinar rápido, de acordo com a maioria dos infectologistas, é entender que o vírus veio para ficar. “Nem tudo é verdade verdadeira, porque a ciência não mostrou as evidências”, entende Sylvia. “Temos de aguardar as estratégias dos países e o consenso da comunidade científica para vislumbrar o que é ou não é seguro agora”, conclui.