O que é que a Bahia tem?

Salvador contemporânea: onde comer bem na capital baiana

Muito além do dendê e do leite coco, chefs e cozinheiros baianos apontam novas dinâmicas e perspectivas para a culinária local

Por Paulo Campos
Publicado em 19 de março de 2024 | 09:32
 
 
No Ori, os pratos vêm à mesa com muitas cores e sabores Foto: Paulo Campos

No imaginário do brasileiro, principalmente do viajante, a culinária baiana carrega a herança africana, e isso se deve muito ao fato de Salvador ser uma cidade predominantemente negra – 34,4% dos habitantes se autodeclararam pretas no censo do IBGE de 2022 –, embora no dia a dia o baiano se alimente de pratos da culinária portuguesa ou sertaneja. A forte religiosidade associa ainda a capital baiana ao candomblé, orixás, umbanda e terreiros, mas boa parte da população se declara católica (65,3%).

Na Bahia, também, há duas maneiras de preparar pratos afros – sem muito tempero, feito nos terreiros de candomblé, ou carregados de dendê, leite de coco e pimentas, vendidos nas barracas por senhoras vestidas de baianas ou em restaurantes típicos. No livro “Breviário da Bahia”, o historiador Afrânio Peixoto afirma que “a Bahia é um feliz consórcio do melhor de Portugal (sobremesas e pescados) com a Costa da África (óleo de dendê, com temperos e condimentos... e muita, mas muita pimenta benzendo tudo)”.

Há uma culinária baiana, no entanto, que pouca gente conhece e que começa a aparecer pelas mãos de chefs como Fabrício Lemos e Lisiane Arouca, já nominados entre os melhores do mundo no The Best Chef Awards, Edinho Engel, Andréa Ribeiro, Beto Pimentel, Dante e Katrin Basse, Pedro Mesquita e tantos outros, que, utilizando de modernas técnicas, já apontam para novas dinâmicas e perspectivas da cozinha baiana, incorporando não só as matrizes africanas e portuguesas, mas italiana e mediterrânea.

Nesta matéria, abrimos uma seleção de restaurantes para você conhecer em sua próxima viagem uma outra capital da Bahia.

Lafayette

Localizado na marina, o Lafayette tem o cenário perfeito para o viajante degustar cozinha mediterrânea. O salão elegante e envidraçado é um convite a um drink autoral refrescante na hora do almoço ou no final da tarde. Para desfrutar de tudo isso plenamente, peça o drink “Capoeira”, que tem essência baiana não só no nome de batismo: leva vodca, cupuaçu, sumo de limão, xarope de gengibre, creme de umbu e pó de beterraba (R$ 44). Sem se contentar em ser clean e moderninho na decoração, o restaurante convidou Elia Schramm, um suíço com alma carioca, para “construir” o cardápio. Schramm é chef mais disputados do Rio de Janeiro, o Babbo Osteria, em Ipanema.

Muito amigo de Karine Queiroz, proprietária do restaurante, Schramm explica que a proposta do menu especial do Lafayette não tem nada a ver com  Babbo Osteria,  “Eu indico como entrada o polpo alla siciliana, uma caponata siciliana, creme de burrata e vinagrete de polvo, acompanhado de pão italiano (R$ 84), um prato superfresco que é a cara do Lafayette, para comer à beira do mar com um bom vinho branco; como prato principal massa nero di sépia beurre blanc, que a gente serve com vieiras seladas e molho de limão siciliano (R$ 182), algo bem elegante com vinho branco, espumante ou gin tônica e como sobremesa a pana cota esbaiada, que é uma releitura de uma panacota de cajá”, indica o chef.

Além dos pratos de Schramm, experimente o cardápio do chef Peu Mesquita: ragú de cupim ao vinho e queijo parmesão (R$ 38), como entrada, no peixe branco com crosta de castanha com purê de banana da terra, vinagrete de pimenta biquinho e azeite de manjericão (R$ 98), como prato principal, e na torta da vovó, um bolo de chocolate 70%, ganache de chocolate ao leite, crumble e cacau, morango e sorvete de coco (R$ 32), como sobremesa. Com pegada mais comercial, o menu oferece saladas, massas, risotos e grelhados.

Mistura

De uma barraca de praia e do amor com um italianomnasceu o Mistura, restaurante da Andréa Ribeiro, que migrou de Itapuã migrou para avenida do Contorno, no centro de Salvador. A chef mistura bem a gastronomia baiana com a italiana e a mediterrânea, aproveitando os pesados frescos, as massas trazidas da Itália e as misturas diversas para oferecer verdadeiras recriações de pratos da cozinha tradicional. Comece pelo plateau de frutos do mar (R$ 108) como entrada, emende no risoto de funghi porcini (R$ 87) e encerre com o bavarois de laranja com ambrosia (R$ 39). Melhor, talvez, seja não sair de lá sem experimentar o inigualável camarão de rio (R$ 285) com os temperos que só Andréa faz.

No Mistura, arquitetura arrojada, mesa com sabor de ‘quero mais” e uma esplendorosa varanda com vista para baía de Todos-os-Santos se fundem e oferecem, além de comida, afeto. É sentir-se na casa de uma mãe com o sabor do mar de todos os santos. Os drinks, como o Sol Poente (gin, pimenta rosa, acerola, manjericão, maracujá do mato, borbulhante de mel de abelha Jataí) são deleite e, junto com a cozinha originária revisitada, fica impossível não agradar aos que gostam da boa mesa. Um dos carros-chefe da casa Pedra que Ronca, o lombo de badejo com camarões, cuscuz marroquino, folha de acelga e bisque (R$ 135). “Eu acho que a Bahia precisa expandir a gastronomia a nível de conhecimento, porque não é só a moqueca e o ensopado, tem o siri mole e até sorvete de dendê”, comenta.

Ori

Os restaurantes Segretto e Ori são um capítulo à parte na gastronomia soteropolitana. No primeiro, come-se literalmente na cozinha; o segundo é um quintal de delícias de tão criativas e inusitadas. O chef Fabrício Lemos afirma que a proposta de pegar um prato da tradicional culinária baiana e torná-lo contemporâneo é sua missão como estudioso da gastronomia e cultura baiana. “É trazer de volta ingredientes e receitas que estavam caindo em desuso. Os soteropolitanos não têm o costume de ir a um restaurante para pedir uma comida que podem comer em casa”, explica. A maneira que Lemos encontrou de trazer esses pratos de volta é mexendo principalmente na execução, sem perder o fundamento.

No Ori, surgem as entradinhas no irresistível menu-degustação: o acarajé vira o abarajé, bolinhos de vatapá; o taco de camarão acompanha vinagrete, guacamole, queijo meia cura e aioli; os pãezinhos delícia são boa pedida com carne crocante, aioli de páprica, creme de abacate e macã-verde; o steak tartare vem com gorgonzola e cebola caramelizada. No prato principal, o ceviche abandona o peixe para dar lugar ao caju com coco, leite de tigre de licuri e chips de mandioquinha. Se preferir uma massa, o rávioli de vatapá com molho de moqueca, farofa de licuri, camarão grelhado e maturi agrada aos olhos e ao paladar. As sobremesas de Lisiane, como cocada, mousse, brigadeiro e bolo, são invenciones para se comer rezando.

Segreto

Enquanto o Ori combina técnicas novas com memórias afetivas, inventividade com tradição, em duas ambientações com arquitetura despojada, o Segreto chama ao intimismo: o comensal está quase literalmente dentro da cozinha, posicionado em uma bancada como se fosse participar de um ritual. Toda a atmosfera proposta, do shot de boas-vindas à sobremesa, prepara a estada e o paladar para uma viagem sensorial carregada de sabores deliciosamente combinados. Nesse bar secreto, escondidinho nos fundos do restaurante Origem, Fabrício e Lisiane reproduzem o conceito ‘speakeasy’, lugares que viviam na obscuridade anos 1920 por causa da lei seca nos Estados Unidos. Escondidos e descolados, só eram conhecidos por poucas pessoas.

No Segreto, apenas 18 comensais podem participar do ritual, tudo é feito com reserva antecipada. O menu proposto é carregado ao mesmo tempo de sofisticação e simplicidade, ir ao Segreto é dar-se um verdadeiro deleite para a Alma. Merece e muito especial atenção à extensa e acertadíssima carta de vinhos, que “fala” perfeitamente com os peixes, mariscos, carnes e outras delicias.  O menu em sete tempos tem antepastos, 1º e 2º pratos e sobremesa, como manda a tradição francesa. O shot de boas-vindas limpa o paladar, na mistura de tangerina, manjerição, limão siciliano e vodca,

O ritual começa com com o Benvenuto (crispy de queijo, crudo del giorno, ovas de mujol e stracciatella; focaccia com mortadela, pistache, pesto mousse de anchova e rúcula, focaccia com tomate assado e manjericão, grissini, stracciatella, parma, azeite verde e manteiga de limão sicilian), continua com o Antipasti (frutti di mare, bottarga, creme de batata, tomates e peperoncino), emenda no Prime (rávioli de espiral de lagosta, tomate, creme de páprica e vagem; bucatini a carbonara de camarão), e no Secondi (black angus, gnocchi de mandioquinha, fonduta e brócolis; tagliata de magret, risoto de espuma de cogumelos) e finaliza com o Dolci (Bomboloni, um sonho, creme de limão, orangos macerados, doce de leite e sorvete de pistache, e panna cotta de queijo azul, com calda de doce de leite, hóstia, amora e mirtilo macerado e sorvete de morango). Todo esse regabofe cusra R$ 220 por pessoa.

Pepo

O Pepo é uma referência às vilas italianas (Luigi) em Pituba, ao lado de uma cafeteria e um bar de vinho. O cenário é característico: jardins, fonte e ambiente de cantina recriam a atmosfera festiva e própria das vilas gastronômicas da Itália. Pedro (ou Peu) Mesquita oferece a gastronomia contemporânea com forte influência italiana, trazendo um sabor mais adoçado para o paladar baiano. “Eu gosto da ideia de um cardápio mais simples, de um prato com menos ingredientes, porém frescos e orgânicos”, conta o chef. Pequeno (42 lugares) mas aconchegante, o ambiente é um salão de comer onde se misturam vozes em saudável algazarra, como em uma cantina italiana. “A Bahia é turística, tem lugar para todo mundo”, discorre Mesquita. Para ele, até o turista viajado se cansou do dendê, da moqueca, do acarajé. “Muitos chefs estão trazendo outras possibilidades para o turista não ficar refém da comida baiana”.

O cardápio é enxuto, com comida farta e preços convidativos, e pode ser harmonizado com uma bela carta de vinhos ou ou drinks como Mar Rosa (R$ 39). Como entrada, a dica é a Ouva e Funghi, polenta cremosa, ovo perfeito, cogumelos assados e espuma de cogumelos com trufa (R$ 42), seguido do ‘Alfredo’ al Tartufo, gnocchi de mandioquinha, fonduta de grana padano, cogumelo e trufa (R$ 84), ou Riso Nero, risoto com tinta de lula, camarão e lulas grelhados e aioli de páprica (R$ 94). A sobremesa segue à risca os clássicos italianos, como tiramissú, panna cotta e dolce dela nonna, com um toque do chef como calda de café ou sorvete de cappuccino. O canole de atum, explica Mesquita, é feito com massa de pastel, “mais abrasileirado”; o gnocchi leva mandioquinha, queijo italiano e trufa; os peixes são todos frescos e encontrados no litoral baiano, como robalo, vermelho, lula e polvo.

 

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