Javier Milei é o primeiro presidente da Argentina a se declarar libertário. Adota a visão liberal, ou seja, defende que o crescimento econômico leva por si só ao desenvolvimento social. “Na visão liberal, não há diferença (entre o desenvolvimento econômico e o social). Essa é uma diferença feita pelos marxistas e pelos cepalinos”, compara Adriano Gianturco, coordenador do curso de relações internacionais do Ibmec de Belo Horizonte. 

“Na visão liberal, o desenvolvimento (social) é um fenômeno de baixo para cima (‘bottom-up’), a ordem espontânea, um fenômeno emergente. Não um fenômeno ‘top-down’, fruto do planejamento central compulsório de políticos e burocratas supostamente sábios e competentes, mas que, na verdade, têm incentivos perversos (aumentar o gasto, irresponsabilidade, centralização do poder etc.)”, difere Gianturco. 

A aposta de Milei é na diminuição da participação do Estado na economia, complementa Flavia Loss, professora de relações internacionais do Instituto Mauá de Tecnologia. “(Para o presidente), não é necessária uma intervenção forte do Estado para haver desenvolvimento social”, diz ela. A economia, crescendo, já levaria ao aumento do bem-estar social – tudo aquilo que se relaciona à qualidade de vida, como ter emprego e capacidade de pagar, por si mesmo, serviços de saúde, por exemplo. 

Essa foi a proposta durante a campanha que o levou à Presidência da Argentina, e isso é o que ele tem feito. “Primeiro ele consegue diminuir os gastos públicos em todos os setores, o que afetou muitos programas sociais e políticas públicas. Depois ele tenta fazer com que a economia cresça. Então, ao estancar os gastos públicos, você tem uma melhora da condição econômica – isso, pensando só na economia da Argentina”, avalia a professora. 

Loss adverte, no entanto, que o corte nos gastos públicos leva a uma deterioração das questões sociais e das políticas públicas como um todo. “Essa é uma situação complicada, porque, pelo menos até agora, a gente não tem visto uma melhoria econômica que também melhore a qualidade de vida da população. Segundo o presidente Milei, isso ocorrerá a longo prazo. Mas a pessoa precisa comer hoje, precisa de atendimento médico hoje”, ela diz.
“Geralmente, boas medidas têm efeitos a longo prazo.

Geralmente, efeitos imediatos são o resultado de políticas populistas”, contrapõe Gianturco. “É impossível reverter décadas de políticas erradas em um ano e ter resultado imediatos”, ele afirma.

Para a professora, os indicadores sociais não estão acompanhando a recuperação econômica. Ela cita o índice de Gini, que mede a desigualdade social, da Argentina, que passou de 0,435 em 2023 para 0,467 no primeiro trimestre de 2024. “Quanto mais o índice se afasta do número 0, maior a desigualdade (maior o abismo entre os mais riscos e os mais pobres)”, explica Loss. “A promessa do Milei é que isso vai melhorar a longo prazo. Mas, de novo, a gente está analisando aqui mês a mês”, diz a professora. 

Gianturco afirma que os indicadores sociais estão começando a convergir com os econômicos. “Não há muita diferença entre as duas coisas, mas, de forma geral, os indicadores sociais seguem os indicadores econômicos sempre com um atraso, chamado de ‘lag temporal’ na ciência econômica. Isso é normal e óbvio”, afirma. “Primeiro melhora a economia e depois, o social. É sempre assim”, defende. “Quando se tenta fazer o contrário, termina-se com nenhum dos dois melhorando. E isso acontece pelo simples fato de tentar melhorar as questões sociais à custa da economia”, argumenta Gianturco.

“Todos os países ricos ficaram ricos dessa forma (a mesma Argentina era o país mais rico do mundo quando tinha um sistema econômico desse tipo). Depois que ficam ricos, aí têm dinheiro para gastar. Simples assim”, ele finaliza.

Ajustes afetam relações sociais e sociedade

Os ajustes do governo Milei extrapolam a dimensão econômica e chegam às relações sociais, conforme avalia Esteban Iglesias, diretor da Escola de Ciência Política da Universidade Nacional de Rosário, na Argentina. Iglesias é um dos autores do livro “¿La Libertad Avanza? El Ascenso de Milei y la Derecha Radical en Argentina” (“A Liberdade Avança? A Ascensão de Milei e a Direita Radical na Argentina”). Lançado em outubro deste ano, ele faz uma análise atual do país. 

Os cinco capítulos do livro tentam desvendar os diferentes aspectos do governo de Milei. “Reconhecendo os riscos envolvidos em escrever e pensar sobre a situação atual, ainda mais quando estamos tão envolvidos nela”, admitem os autores. Iglesias assina o segundo capítulo, “Dime cómo protestas y te diré quién eres. Los repertorios de la acción colectiva ante el aluvión Milei” (“Diga-me como protestas e te direi quem és. Os repertórios da ação coletiva diante da avalanche Milei”). Aqui, defende que as Bases Legais e os Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos constituíram a iniciativa estatal mais ambiciosa e a que deu mais energia ao governo. É que, em seu artigo 1º, o documento “decreta emergência pública em matéria econômica, financeira, fiscal, administrativa, de segurança social, tarifária, sanitária e social” até 31 de dezembro de 2025.

“A ambição, os objetivos e a disruptividade dessa iniciativa nos encorajam a pensar que o governo nacional não persegue um ajustamento estrutural limitado à dimensão econômica, mas visa a uma modificação global do sistema institucional que regula as relações sociais na sociedade”, afirma Iglesias no artigo. 

“A diferença com outras experiências governamentais é notável”, diz no livro. “Enquanto Cambiemos procurava uma mudança cultural e a Frente de Todos (FDT) tentava a reparação social, a La Libertad Avanza ativou transformações políticas que questionaram o quadro institucional desde as suas raízes”.